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Reflexos...

12 de Janeiro de 2020 às 17h15

Ana Cecília Novaes

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                - É só um s-s-sapo... uma sapo g-gosmento e m-molhado, m-mas só um sapo... – sussurrei para mim mesma, não sabendo ao certo porque sussurrava, já que não havia ninguém além de mim e vários anfíbios e insetos à espreita naquele fim de mundo. Honestamente, eu deveria ganhar o prêmio das ideias mais estapafúrdias, porque só eu mesma para me propor a fazer uma trilha no meio da mata! Logo eu, que não aguento ver uma joaninha pousando no meu braço que já saio em plena alvoroça em uma cena ridicularmente patética de exposição social. Mas não! Eu e minha mania de ser levada pelo bom e belo tom das ideias alheias resolvemos aderir à sugestão da simpática senhora madame Gorete do programa “Relaxe e viva feliz” do canal onze sobre conectar-se com a natureza para encontrar a própria conexão consigo... Revirei os olhos enquanto afastava algo parecido com musgo do meu sapato (nada adequado para a ocasião) e imaginei se Gorete alguma vez já teria ela própria tentado a tal conexão natural com rãs e relvas antes de ficar dando conselhos por ai. Eu poderia estar sentada no meu sofazinho com uma grande e quente caneca de cappuccino nesse exato momento, ao invés de estar sendo encarada por dois olhos esbugalhados de um sapo (provavelmente mutante) que, tenho certeza, estava maquinando naquele cerebrozinho verde formas diversas de me atacar...

– Ok, respire... – disse para mim mesma, tentando manter a calma e a sanidade. – Lembre-se do que Gorete diz: deixe que o ar da vida entre profundamente pelo nariz e liberte as amarras mentais por meio de uma calma mas intensa expiração pela boca... – e tentei embarcar na minha técnica preferida de relaxamento, com os olhos fechados, quando, em meio à minha concentrada inspiração profunda, sinto um completo e absoluto... entalo!

- M-mas que p-p-porcaria é e-essa!!!!!!!! COF; C-C-COF!!!! – Comecei a tossir e gritar ao mesmo tempo (o que resultou em grunhidos bizarros) quando percebi que uma mosca (provavelmente mutante também) havia entrado no meu nariz. Era só o que me faltava!

Em completo desespero e sensação iminente de morte (não me julguem! A mosca estava sambando nas minhas vias aéreas!), não percebi quando pisei em uma área de umidade, perdendo o equilíbrio e caindo, lançando o corpo completamente na lama ao redor...

Imagino que a própria mosca deva ter pensado que aquilo já era humilhante demais para uma pessoa só, e resolveu pousar em outras gargantas, enquanto eu permaneci sentada na lama por um tempo até que conseguisse parar de me xingar mentalmente por ser eu mesma a responsável por estar naquela situação. Tentando me erguer sem dar o gostinho ao destino de cair novamente, escutei um barulho ao longe, mas intenso, e abri um sorriso de alívio: uma corrente de água!

Considerando que já fora mais do que suficiente minha conexão com a natureza, decidi que poderia tirar um pouco da lama do corpo antes de iniciar o caminho de volta. Seguindo o som que se tornava cada vez mais forte, cheguei até uma diminuta clareira onde minava água de uma fresta entre pedras, acumulando-se em um pequeno lago cercada por alguns arbustos e árvores daquela mata fechada. Me aproximei com cuidado, debrucei sobre o lago e comecei a lavar o rosto, deixando que a água fria, mas agradável, tocasse minha face cansada e dolorida. Foi quando escutei um farfalhar da vegetação ao meu lado.

Sentindo uma corrente de ar frio passar por todo o meu corpo, abri os olhos lentamente, com receio de me deparar com um animal selvagem (ou pior, com um sapo) a me espreitar, mas qual não fora a minha surpresa quando vi, ao meu lado, uma velhinha sorrindo.

Digo velhinha para que você, meu caro, tenha uma percepção mais verídica do que meus olhos observavam! À minha frente estava uma senhora que deveria beirar os noventa e oito anos, com menos de um metro e meio de altura, a pele tão enrugada que se dobrava uma sobre a outra por cima de seus olhos, cabelos ralos e brancos por sob a cabeça pequenina mas um sorriso... um sorriso tão grandioso e ausente de dentes que minha reação natural foi simplesmente... sorrir carinhosamente de volta.

- Ah! A menina sabe rir, além de reclamar das coisas de uma natureza que não pediu que ela viesse, mas a recebeu sem se incomodar...

- E-eu... e-eu... o que? – gaguejei, absolutamente espantada e constrangida! – E-eu cai! E tinha um sapo, e uma mosca, e musgo, e lama! – Tentei me justificar, sem entender ao certo de onde vinha aquela minha necessidade de me explicar para aquela senhora.

- Não se preocupe, menina! A natureza entende criança que está começando no mundo! Chora por qualquer coisa, até que lágrima vira aprendizado, e aprendizado vira crescimento!

- Criança? Ora! – falei, indignada. – Eu não sou nenhuma criança! – disse, me sentindo ridícula ao notar que cruzara os braços e fizera um bico com os lábios.

- Menina então acha que sabe quem é?

- Mas é claro! – respondi com mais energia do que planejado. – Eu seria uma tola se não soubesse quem sou, ora essa!

- Ah... menina falante, menina inteligente, não é? Pois então, menina... olhe para as águas do lago e me diga o que vê...

Permaneci alguns segundos encarando seu rosto, sem conseguir entender exatamente se eu seria mais insana do que ela por manter essa conversa, mas seu sorriso banguela (que ainda estava estampado no seu rosto enrugado) me fez consentir e olhar para baixo. Deparei com meu rosto ainda manchado de lama em alguns pontos e, revirando os olhos, perguntei a ela:

- Certo, eu sei que esse é o meu rosto, mais sujo do que o usual...

- Olhe mais a fundo, menina... e me diga o que vê...

Suspirei alto, sem entender em absoluto o propósito de tudo aquilo, mas decidindo que, quanto mais rápido em o fizesse, mas rápido sairia dali. Olhei novamente para as águas, resolvendo contar alguns segundos para que ela se desse por satisfeita, quando notei algo diferente... Fixei melhor o olhar, e com o movimento suave e quase imperceptível daquele ponto do lago, notei que minha fisionomia discretamente se modificava, mas de forma tão sutil que quase poderia não existir. Atentando-me mais ao que via, observei que naquele momento discreto, eu expressava tristeza, alegria, raiva, decepção, gratidão, expectativa, dúvida, medo... por um instante, em meio a tantas faces, não me reconheci naquele turbilhão de sentimentos em efusão num mesmo reflexo sob as águas e, sentindo um desconforto profundo, desviei o olhar e a encarei.

- A menina percebe agora? – ela perguntou, sorrindo. – Percebe como não se reconhece no mundo?

- O que deveria significar isso? – pergunto, sentindo o tom de angústia na minha voz. Aquela situação fez brotar em mim uma sensação de incerteza extremamente incômoda. – Eu sei quem sou, e o que vejo aqui... parece que sou eu, mas ao mesmo tempo não me reconheço em nenhuma das faces que vejo...

- Exatamente porque você busca se encontrar em cada uma dessas faces, quando na verdade, você se encontra na junção de todas elas. Nessa aquarela multicolorida de sensações, experiências, percepções, ações e reações diante a vida e o mundo... você está ali, exatamente na interseção entre o branco e o preto, a luz e a escuridão, a tristeza e a alegria, a gratidão e a revolta, a dúvida e a fé, a força e o desânimo, a entrega e o medo. Você está no ponto incômodo de ser, pura e absolutamente, humana, assim como todo e qualquer ser andarilho desse vasto universo.

“As pessoas têm uma tendência de se rotularem em extremos, criando fantasias que passam a ser espetáculos de expectativas criadas diariamente. Colocam sorrisos quando querem chorar, bradam segurança quando temem a queda, se escondem quando querem voar. Não se permitem serem esse caldeirão de sentimentos e emoções que ainda marcam a sua caminhada humana, e por isso se distanciam cada vez mais de quem são, verdadeiramente, e passam a ser apenas o reflexo do que desejam mostrar ao mundo. Perdem o sentido de sua própria existência em prol de expor máscaras, e se esquecem que, ao final da jornada, as águas da consciência não terão piedade ao refletir a verdadeira pandora de cada um.

“A verdadeira beleza do humano, menina, é reconhecer as suas imperfeições, as suas particularidades, as suas potencialidades, as suas belezas e limitações. Encará-las de frente, enfrenta-las com o olhar aberto, pois só dessa forma as turvas águas de uma falsa perfeição darão lugar às veredas de mansidão que se abrem a quem mergulha em si próprio para encontrar a verdade, e crescer. Isso se chama libertação, e só é liberto que conhece a si mesmo. ”

Com os olhos marejados em lágrimas, voltei lentamente minha face para as águas cristalinas daquele lugar de serenidade e plenitude. Olhei o contorno do meu rosto, onde se escondiam cicatrizes, mas também onde brincava a esperança. Admirei o canto dos meus olhos, no qual a tristeza e a alegria brincavam de esconde-esconde. Observei as marcas suaves da minha pele, onde o medo bailava com a fé. E por fim, deixei meus olhos repousarem em meus lábios, onde súbita e inesperadamente se abriu um sorriso tímido, discreto, mas presente. Um sorriso de aceitação, com sabor de renovação e gotas de motivação.

Olhei para o lado, em direção à senhora, mas ela já não estava mais ali. A clareira estava em absoluto silêncio, e eu podia ouvir ao longo o coaxar do sapo que, provavelmente, me aguardava voltar. Olhei novamente para meu reflexo na água, e a lama não pareceu me incomodar tanto quanto antes. O vento passou mais forte, e as águas dançaram uma valsa junto com ele, fazendo borrar meu reflexo por alguns instantes, mas logo retornando à minha face novamente. Dessa vez, percebi que havia algo diferente... não era lama, não era medo, não era incômodo... era passado com marcas de presente e potenciais de futuro... era honestidade... era metamorfose... era gratidão.