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Tempo de recomeçar...

01 de Maio de 2019 às 17h30

Ana Cecília Novaes

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                - Ela realmente... hum... vai sentir muita falta de você, não é mesmo? – disse, com um olhar compreensivo, mas que não conseguia esconder o constrangimento, uma senhora que embarcava ao meu lado.

                Não posso julgá-lo... Àquela altura as minhas bochechas queimavam tanto de vergonha que poderiam ferver água suficiente para fazer um expresso fumegante... Não era para menos... Eu sabia que a notícia da minha partida iria afetar titia, mas fora exatamente por isso que eu a havia avisado (e preparado) há cera de um mês... Tivemos algumas cenas de “é lógico que você tem coisas melhores para fazer do que ficar com uma velha rabugenta como eu”, as quais eu heroicamente combati tentando lhe explicar que eu havia ficado mais do que o planejado exatamente por sua preciosa companhia, mas que havia ainda muito caminho a ser percorrido até que eu chegasse onde precisava... Ainda tive que escutar como minha consciência iria adormecer tranquila sabendo que deixara Garibaldi Feliciano com o coração despedaçado... O bendito do gato com olhos de duas cores que muito provavelmente mal esperava minha partida, já que eu implicava com a quantidade excepcionalmente excessiva de bolacha que titia dava a ele, a julgar pelo tamanho de seu abdome felino. Mas foram longos dias de consolo e diálogo paciente, e eu realmente achava que passaríamos por aquele momento de despedida de uma forma equilibrada e humanamente normal... Mas não... estamos falando de titia Gertrudes, não é mesmo? E de forma a honrar seu histórico de drama teatral, é lógico que ela teria que fazer um escândalo na plataforma do trem de sua cidade, entrecortando seu escândalo de “não sou amada” com soluços guturais de um choro agudamente profuso...

                Não me tome por insensível, por favor, não é esse o caso! Lógico que meu coração estava apertado por deixá-la, principalmente após tanto tampo de convivência (e, devo admitir, aprendizado) ao seu lado. Estava até começando a gostar de Garibaldi (que ele não me ouça dizer isso... Aquele gato tem uma prepotência que assusta...), mas já era ora de partir e continuar a jornada que eu havia iniciado... Quando cheguei à estação de trem com ela, meu olhos estavam repletos de lágrimas, mas logo elas foram substituídas pela necessidade urgente de acalmá-la e reduzir o número crescente de olhares que eram dirigidos até nós, tendo em vista o choro copioso (e escandaloso) de titia. Quando, no entanto, ela se deixou cair no banco de espera com a mão em sua testa e um lancinante suspiro de “como eu sofro nessa vida”, percebi que era hora de seguir (e ajuda-la a seguir) em frente. Dei meu abraço mais apertado nela, dois tapinhas carinhosos na cabeça de Garibaldi (que, posso jurar, também tinha lágrimas naqueles olhos coloridos), peguei minha mala e subi no trem, sem olhar para trás.

                Sentando no lugar que estava marcado em meu bilhete, deixei finalmente escorrer as lágrimas que estavam brigando com meu sentimento de independência e confiança, e senti o peito apertar em um misto de saudade do que estava deixando para trás e medo do que me esperava pela frente. Constrangida por aquele momento (eu raramente choro em público), virei meu rosto para a janela tentando disfarçar o melhor possível meu estado, quando escutei ao meu lado:

                - Não deixe represar o que precisa sair...

                Olhei em direção a voz e vi um senhor de idade, cabelos brancos e uma barba tão alva que era quase translúcida. Estava com uma boina xadrez, usava óculos de garrafa antigos e no paletó repousava um relógio de bolso dourado, cujo tic-tac eu podia ouvir de onde estava. O senhor estampava um feição solidária, e havia estendido em minha direção um lenço tão braço que reluzia... timidamente aceitei a oferta e sequei os olhos, comentando:

                - Sabe como é... despedidas são sempre muito tristes...

                - Despedir-se do que se conhece, do que é seguro, para embarcar no desconhecido... Faz parte do apego humano...

                - Apego? Não creio que seja apego... Quando temos carinho por uma pessoa se torna difícil deixá-la... É sentimento de amor, não de apego...

                - Minha querida, os sentimentos humanos se confundem nessa esfera tão dinâmica que é a existência... O apreço pelos que nos são caros ao coração faz com que cultivemos no na alma a imagem deles e as experiências que compartilhamos. Dessa forma, as pessoas especiais ficam marcados em nossa alma, e se pensarmos bem, onde quer que formos eles irão conosco. Não importa a distância física, não importa o tempo que passe, não importa as circunstâncias que ocorram... eles estarão conosco porque cada passo que cruza nossa estrada deixa uma pegada que irá nos acompanhar em nossa estrada, enquanto permitirmos que essa presença realmente seja presente em nosso ser. O tempo perde seus limites de antes e depois, e esses seres especiais passam a fazer eternamente parte de nossa consciência inconsciente de vida. Todas as pessoas que cruzam nossa vida são flores que podemos ou não cultivar, deixando que permaneçam ou não. E é nossa escolha permitir que o perfume ou os espinhos se destaquem para nós. Mas uma vez fazendo nossa escolha, levamos conosco, eternamente, os que são especiais em nossa vida... Portanto, se os levamos para onde formos, porque o sentimento de perda? O que efetivamente estamos perdendo, se os levamos conosco?

                “Saudade sim, é o sentimento que traduz a vontade de poder estar perto e a impossibilidade de fazê-lo... mas aquele aperto na alma, o vazio no coração... vem do apego. Apego à realidade conhecida, compartilhada por aquela pessoa que deixamos para trás... Apego aos sentimentos que brotavam quando compartilhávamos o tempo; ou apego às lembranças criadas quando os dias eram preenchidos por aquela pessoa. Apego, apego, apego... apego que aprisiona, no final das contas, tendo em vista que estagnamos no passado, no desejo de viver tudo novamente, e mais uma vez, com aquele ser, sem compreender que estamos levando aquela pessoa querida em um local onde não há presente nem passado, só eternidade: nosso coração.

                “E em associação direta ao apego, temos o medo... o pavor do futuro, o famoso desconhecido que pode não vir com as mesmas emoções já vividas; com as mesmas doces e alegres experiências compartilhadas... O futuro é como uma janela aberta para o crepúsculo, através da qual nada enxergamos, a não ser que aguardemos o amanhecer... Mas muitas vezes queremos controlar tanto o inacessível que o simples fato de não sabermos o que vai ocorrer nos paralisa, e corremos para o nosso lugar seguro: o apegado passado.

                “E eis a grande beleza da vida: a oportunidade de viver, intensa e plenamente, o presente que temos, criando memórias e lembranças indeléveis que iremos levar conosco, sendo motor propulsor para nossa caminhada em direção ao futuro. Não se trata de ficar preso ao passado ou desejar que o presente nunca passa. O segredo se encontra em aprender com o que foi, deleitar-se com o hoje e usar a força proveniente dos passos já trilhados para dar o grande salto em direção ao amanhã! Se trata de ousar mergulhar na escuridão do porvir, na certeza de que, seja lá o que venha, será bem-vindo, pois fará parte de nossa caminhada pessoal de melhoramento e crescimento. Nada acontece por acaso, e a vida finda por ser um misterioso paraíso de “se” e “talvez”. A única certeza que temos, e sobre a qual devemos nos agarrar, é a de que o tempo passa, mas o que foi vivido em seu intercurso, não. E o tempo chega, e o que ele traz consigo é sempre um presente de renovação.”.

                Permaneci estarrecida com as palavras daquele senhor, e estava pronta para lhe perguntar seu nome, quando, de repente, a luz do trem apagou e houve um grande estrondo. Ficamos cerca de alguns segundos na escuridão, quando a iluminação retornou e a voz do maquinista soou:

                - Desculpem o transtorno... tivemos uma falha na energia mas foi prontamente restaurada, e seguiremos viagem conforme planejado.

                Respirando aliviada, olhei para o lado para continuar a conversar com o senhor, mas ele não estava mais ali. Olhei em volta, levantei-me e procurei no corredor. Nada.

                Quando retornei ao meu banco, estarrecida e sem compreender o que havia ocorrido, percebi que no lugar onde ele estava sentado havia algo. Me aproximei e percebi que era o relógio de bolso que eu havia visto em seu paletó. Peguei o objeto com delicadeza e examinei, em busca de alguma informação em relação ao seu dono. Nada encontrei, a não ser uma inscrição em seu verso...

“Tic-tac... tic-tac... O tempo deixa o passado e traz o futuro para onde o presente sempre deve estar. Deixe correr o ponteiro, sem apego ou medo, que chegará onde deve chegar”.