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Um expresso forte com canela...

25 de Maio de 2020 às 17h35

Ana Cecília Novaes

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                - Não... s-sim! Não é bem assim! T-tudo bem! Ora, não seja dramática! Não! Mas que absurdo! Escut... escute... Tente me escut... Mas é claro que NÃO, TITIA! – Acabei por falar muito mais alto do que havia planejado, fazendo com que meia dúzia dos clientes daquela pequena (e acústica) lanchonete local me encarassem com olhos inquisidores. Me desculpando com um meio sorriso constrangido, respirei fundo, cobri o espaço entre minha boca e o bucal do telefone e disse no tom mais baixo e audível possível: - Titia, faça-me o favor! É claro que Garibaldi Feliciano não está com crise de rinite alérgica felina por saudades da minha pessoa, mesmo porque esse seu gato e eu temos uma relação de terror mútuo! Então não vou interromper a minha viagem só para voltar até aí e dar um abraço nele, tenha SANTA PACIÊNCIA! – Vi a garçonete me olhar de cima a baixo, julgando silenciosamente meu tom novamente muito mais alto do que deveria, e me apressei a encerrar  conversa, antes de sr expulsa dali no mesmo dia que chegara: - Veja, titia... conversamos depois, tudo bem? Ligo para a senhora assim que conseguir um lugar com linha de celular, será melhor... Até mais!

                E desligando, quase pude sentir o convite para me retirar vindo do olhar frio da balconista Ivete que, com muito custo, havia me permitido usar o único telefone da cidade que fazia chamadas de longa distância. Eu não poderia exigir demais, é verdade, já que fora opção minha entrar no primeiro trem da estação e pular na última parada sem saber onde eu estava indo, numa proposta (supostamente insana, agora percebo) de me aventurar no desconhecido. Acabei por parar naquela cidadezinha com menos de mil habitantes, sem rede decente de celular e um único telefone útil que, aparentemente, ficava no point das fofocas locais, de onde já deveriam estar saindo as notícias sobre a forasteira escandalosa que chegara com nada mais do que uma mala de mão e muitos pedidos de café.

                Já me sentindo exausta em plena manhã após mais uma conversa com titia, me dirigi até o balcão e afundei no banco, dando um longo suspiro e me dirigindo à Ivete, que estava de costas aguardando um pedido da pequena cozinha nada industrial:

                - Por favor, você poderia me trazer um expresso forte com canela, grande?

                - Outro? – ela perguntou, sem se virar.

                - Ammm... – murmurei constrangida, me lembrando que era a quarta xícara que eu pedia só naquela manhã... – sabe como é... um pouco de energia para começar o dia... – falei, tentando imaginar a expressão por detrás das costas frias de Ivete.

                - A canela acabou na última caneca que você pediu. – Comentou, ainda sem me olhar.

                - Tudo bem... – comentei, rapidamente. – Pode ser só o expresso mesmo...

                - Ok. – respondeu.

                Me perguntando quanto tempo demoraria para passar o primeiro trem para qualquer lugar, desde que eu conseguisse sair daquele fim de mundo o mais rápido possível antes que a comunidade local enterrasse meu corpo sob o coreto central com o argumento legal de incômodo à imaculada rotina pública, mal percebi quando um vulto ao meu lado murmurou alto o suficiente para que eu o notasse e baixo necessário para que as costas de Ivete não o notasse:

                - Não se preocupe... não costumam receber gente nova por aqui... E como você sabe... tudo que é novo traz o medo da mudança.

                Olhei para o lado e me deparei com um homem alto, com cerca de trinta anos, cabelos bem penteados e um colete impecavelmente alinhado. A postura excessivamente segura chegava a exalar uma energia um tanto perturbadora, mas a intensidade do seu olhar agia como uma espécie de magnética, confortando e fazendo com que eu sentisse uma necessidade incontrolável de responder àquele completo estranho...

                - Bem... não sei ao certo se o medo da mudança justificaria tanta resistência ao novo... – comentei, mantendo o tom baixo da voz. – Antes mesmo de se disporem a me conhecer, se fecham à minha presença... É perturbador...

                - Ora, minha cara... mas não é exatamente o que fazemos diante aquilo que não podemos controlar, como forma de defesa íntima? – ele falou, com um sorriso indagador nos lábios. – A própria situação com sua tia exemplifica muito bem isso.

                Agora sentindo minha face corar imaginando o quão alto eu estava falando, tentei me justificar:

                - Mas titia está agindo dessa forma extremamente infantil, usando o bendito gato como forma de chantagem só para que eu retorne!

                - Não estou falando do comportamento dela, e sim, do seu.

                - C-como é? – indaguei, agora absolutamente confusa, percebendo que não havia dado tantos detalhes ao telefone sobre mim ou mesmo sobre titia. Com aquele homem poderia estar falando disso?

                - Você reage com resistência ao chamado dela exatamente porque, tanto quanto ela, ou qualquer pessoa dessa cidade, morre de medo do desconhecido.

                - O senhor vai me desculpar, mas se me conhecesse, saberia que eu represento exatamente o contrário! – falei, me endireitando no banco de forma a falar firme com ele, me sentindo extremamente desconfortável com a audácia daquele completo estranho. – Para sua informação, eu venho viajando de cidade em cidade há meses, apenas com minha mala, para absorver e aprender com pessoas diferentes, lugares desconhecidos e situações inusitadas! Minha vinda para cá mesmo foi um mergulho no desconhecido: peguei um trem aleatório e me aventurei, me dispondo a ir para onde ele me levasse. Posso saber onde tem medo nisso?

                - A coragem não está na travessia, mas na disposição de vivenciar a perda do que se deixa, e enfrentar os desafios para onde se vai...

                Franzindo a testa, observei quando ele se virou contra o balcão e passou a observar a janela que expunha a rua daquela pacata cidade, me convidando com o olhar a compartilhar o que seus olhos viam. Ainda incomodada com seus comentários, segui seu olhar, impaciente, esperando uma explicação mais lógica para seu comentário. Quando estava prestes a dizer que ele não tinha nada a ver com a minha vida, ele falou:

                - É fácil se dispor a seguir estradas, perpassando tantos caminhos e jornadas. Durante as travessias as conexões feitas são passageiras, momentâneas e solúveis... Podem ser feitas amizades, inclusive relações que se leva consigo no próximo destino, mas são relações que não exigem o moldar diário da convivência, que traz o desgaste natural de um aparar de arestas. É possível inclusive que naturalmente se crie uma armadura emocional protetora, que impede que conexões tão intensas sejam formadas, já que logo em breve será hora de partir... E na busca pela proteção das dores da perda, da separação, do abandono, a cada dia menos se dispõe a permanecer, e mais rápido se deseja partir, de forma a não correr o risco de se permitir receber um pedaço do outro, enquanto se doa uma parte de si mesmo.

                “A permanência é desafiadora e muitas vezes dolorosas, porque envolve se desnudar ao outro, abrir mão, ter empatia, ceder, e tantas vezes se posicionar. Envolve desgastar-se para chegar a um acordo, reconhecer os próprios erros, oferecer suas habilidades e aprender com as qualidades mais reluzentes de quem contigo compartilha o estar. Permanecer é se doar, mas em um movimento tão saudável de receber que não há perda, mas construção. E por isso há dedicação de energia, há investimento emocional, há entrega de si. É um trabalho árduo, mas muito valoroso. Tão valoroso que não tem como ser substituído. Mas também tão árduo que muitos preferem não se dedicar a ele, e se lançam ao eterno passar. Passam pela vida de muitos, de forma superficial, e seguem destino, com a desculpa de agregar pegadas, quando na verdade têm verdadeiro pavor das raízes...

                “E o chegar também é um recorte de muita coragem, não pelo simples fato de se permitir aventurar no novo, mas se permitir intensa e verdadeiramente mergulhar naquilo que o novo lhe oferece. Não se trata de trazer seus conceitos prontos e tentar moldar a nova realidade àquela que você traz consigo, mas se permitir receber novos traços dessa aquarela tão bela e multicolorida que é a vida. Quantas novas realidades, novos conceitos, novas percepções podem ser cultivadas nesse vasto solo que é a alma humana? Porque a arrogância em se enrijecer diante o novo, não permitindo que alvoradas novas reluzam em seu próprio horizonte? Quanta coragem há em se desnudar ao novo, fazendo uma verdadeira confluência de energia entre sua essência e aquilo que você pode oferecer, e a essência do novo e tudo aquilo que ele pode lhe ensinar. Trata-se de um verdadeiro mergulho de humildade e fé... E quão difícil é esse movimento a uma humanidade que brada coragem para se lançar ao novo, mas de forma prepotente não se permite mergulhar nele, e sim chover sobre ele... Não há coragem, mas medo de se desconstruir para se fazer renovado.

                “E afinal, o que estamos fazendo aqui senão buscando nos moldar diante um propósito maior? Não é essa metamorfose o objetivo maior de nossas jornadas? Estar verdadeiramente, no tempo de estar... partir com garra, no tempo de ir... e chegar com a alma aberta, no tempo de se renovar... Não é a esse constante movimento de lucidez e entrega que deveríamos estar focados? E o que tanto nos limita? O medo... medo de deixar para trás... medo de não controlar o desconhecido...

“Quando o ser humano perceber que a verdadeira coragem esta no humilde fato de assumir seus próprios medos e mergulhar neles, permitindo-se estar, atravessar, e chegar, conseguirá da vida a reciprocidade de construção, criando uma realidade sólida de aprendizados e verdadeiros saltos de evolução. Até lá, permaneceremos seguindo sem rumo, fugindo de nós mesmos e chegando a lugar algum.”

                Totalmente envolta pela a segurança com a qual aquele homem falava, mal escutei quando, atrás de mim, Ivete falou:

                - Seu café.

                Me virei para ela e, movida por uma energia diferente, falei:

                - Muito obrigada, Ivete. Agradeço a gentileza e gostaria de lhe perguntar um pouco sobre essa linda cidade. Me parece que você é uma moradora experiente daqui, e pode me ensinar um pouco sobre a realidade de vocês. Quando tiver um tempo, ficaria muito feliz em conversar.

                Perplexa, Ivete me fitou com os olhos arregalados e comentou, sem jeito:

                - N-nossa... c-claro! Que curioso você se interessar! A maioria das pessoas que chegam aqui no acham caipiras de uma cidade do interior. Mas aqui é um dos locais mais lindos para se viver! Se você visse o amanhecer no topo do morro das Gaivotas, nossa! E tem a hospedaria da Maria das Graças que existe há...

                E Ivete se apoiou no balcão e se pôs a falar, com um brilho tão intenso nos olhos que, naquele momento, percebi quanta vida havia onde antes eu só via escuridão. Realmente, quem precisava de novos óculos era eu... Olhei para o lado enquanto ela falava e não mais vi o homem, mas não me surpreendi. Sabia que ele sim, estava apenas de passagem. Enquanto eu? Bem... eu precisava aprender a chegar e permanecer, antes de seguir. Mergulhei verdadeiramente nas histórias de Ivete, e mais tarde ligaria novamente para titia... talvez fosse hora de olhar para trás e fortalecer laços, de forma a estar preparada para olhar para frente e criar outros novos. Afinal, esse é o sentido da vida. Aprender a mergulhar em si, de forma a nadar no vasto oceano do infinito.