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Trilogia: Uma longa viagem... (Parte III)

15 de Dezembro de 2020 às 21h00

Ana Cecília Novaes

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       - Isso é carma… - murmurei para mim mesma. - Só pode ser carma, valha-me! Ugh… - completei, com cara de nojo, enquanto empurrava uma teia de aranha que provavelmente era tão antiga quanto a casa da tia-avó Petúnia de titia Gertrudes, considerando a sua resistência em abrir espaço para que eu pudesse passar em meio ao mar de objetos, móveis, caixas e baús incrivelmente empilhados no porão de Petúnia. É claro que iria sobrar para mim a missão de encontrar o bendito Garibaldi Feliciano que aparentemente não gostou do fato de estar recebendo menos atenção de titia enquanto ela participava ativamente do velório da sua tia. E eu digo ativamente porque claro, sendo titia, uma boa dose de drama nunca é demais.

- Oh!!! Oh, como a vida nos prega peças! - guinchava ela, enquanto teatralmente abria espaço entre as pessoas que, em pequenos grupos, dialogavam silenciosa (e normalmente, devo acrescentar). - Não faziam dois dias que eu e minha querida Petúnia estávamos trocando lembranças sobre o tempo maravilhoso que passamos juntas! - E deixando-se escorrer na cadeira ao lado do filho mais velho de Petúnia (que imediatamente revirou os olhos), comentou: - Os tempos incríveis em que vivemos tão unidas, como mãe e filha…

Eu, por outro lado, já estava exausta da cena que havíamos vivido assim que descemos do avião, quando titia, em um urro, jurou que seu bendito gato estava morto pelo tempo em que ficou na cabine de bagagens (o que obviamente não era verdade, já que ele veio alegremente ronronando no colo do nada contente comissário de bordo que o havia impedido de fugir quando sua casinha "acidentalmente" teve a portinhola aberta - tenho lá minhas dúvidas quanto à suposta inocência desse gato…). Por isso, na primeira oportunidade que tive, saí de fininho da sala onde Petúnia estava sendo velada e fui em direção à cozinha, em busca de uma grande e merecida xícara de café.

Andei pela casa lentamente, lembrando das incontáveis vezes que, quando criança, fui com titia visitar sua amada tia-avó, que simplesmente adorava me ouvir contar as histórias que eu inventava quando via uma sombra diferente na parede, ou um grilo remexer suas flores, ou mesmo quando o silêncio nos incomodava demais. Ela dava grandes e boas gargalhadas, batendo palmas de incentivo, dizendo que eu nunca perdesse “o brilho de quem decide acreditar”. Eu lembro de olhar para seu rosto já repleto de rugas, sem entender o que ela queria dizer, mas simplesmente me deleitando com sua alegria e carinho, enquanto titia Gertrudes jogava baralho com suas antigas amigas. Sempre achei que havia algo de mágico nela, uma luz diferente quando se movia, mas sabe como criança é: o mundo é gigante para os olhos pequeninos.

Creio que foi por essa imersão às lembranças do passado que eu acabei errando as portas do corredor e, acidentalmente (eu juro que foi acidental!), abri o quarto onde eu e titia havíamos nos instalado e, é claro, onde também estava Garibaldi Feliciano. Ele, nada bobo, aproveitou imediatamente o meu lapso e saiu pelo quarto afora, me deixando com um enorme problema.

Evidente que titia não poderia chegar no quarto em busca do consolo de seu inseparável companheiro e não encontrá-lo. E dada a relação, digamos, um tanto quanto conturbada que eu tenho com ele, a explicação “ele simplesmente saiu sem eu perceber” não iria colar. Comecei, então, a busca pelo gato, da forma mais discreta que se pode procurar um gato em meio a um funeral.

Já havia olhado em todos os quartos, salas, escritório e biblioteca, e antes de me aventurar pelo quintal afora, sabendo que Garibaldi não era lá fã de ar livre (já que passa a maior parte do tempo deitado sob os pés de titia, comendo e roncando), resolvi olhar no porão, cuja porta entreaberta me levou a pensar que talvez ele tivesse passado por ali. E foi assim que cheguei a esse momento empoeirado e cheirando a mofo, no meio do porão de Petúnia, tendo ao meu redor um mar de lembranças e memórias.

Fazendo o meu melhor para ignorar as diversas teias (com suas potenciais aranhas escondidas em prontidão, imagino), percorri o olhar vagarosamente pelos itens que estavam ali. Três baús grandes e antigos, de madeira, entalhados com cuidado e curiosamente preservados, ocupavam uma boa parte do espaço. Um deles estava aberto e, me aproximando e sentando ao seu lado, pude ver várias fantasias antigas que lembro de ver Petúnia usando enquanto me ensinava novas formas de imaginar. Subitamente me veio à mente um dia em que eu disse que estava triste demais para brincar de faz de conta, e ela, muito séria, pegou minha mão, me levou até seu colo e me disse: "Não deixe que a tristeza derrube seus sonhos e os deixe longe demais da realidade. Tudo é possível se você se permitir fechar os olhos e sentir…”. Nesse instante, fechou os meus olhos com uma mão e fez cócegas em mim com outra, e em meio a muitas gargalhadas, naquele dia criamos um mundo de magia e encanto.

Engraçado como as lembranças parecem adormecidas até que, súbita e inesperadamente, ressurgem como uma avalanche, trazendo à tona sentimentos, sabores, cores, tons, sons e cheiros que há muito estavam desaparecidos…

- É porque lembrança é sentimento que fica guardado na alma, até ser chamado para participar da vida novamente.

Nesse instante eu não mais me surpreendi, e nem me sobressaltei. Sabia quem era e, apesar de não saber o porque estava ali, me senti confortável com sua companhia.

- Tivemos ótimos momentos aqui, não é, Ofredo? - falei, virando-me em direção à voz, para encontrá-lo sentado em uma das mesas empoeiradas, seus pequenos pezinhos pendentes e seus olhos profundos e ternos.

- É, minha querida… - respondeu ele, me olhando profundamente. - Tempos em que você se permitia ser, em essência, deixando que a vida se descortinasse gradualmente enquanto se entregava ao palco da existência.

- Coisa de criança… aqui, com tia Petúnia, tudo parecia possível. Sonhar era fácil, e acreditar nos sonhos era delicioso, por mais patético que possa parecer hoje…

- Patético? E desde quando acreditar se tornou algo patético?

- Ora, Ofredo… Venhamos e convenhamos. Você, melhor do que ninguém, sabe bem o quanto me custou acreditar. Sonhos são meras fantasias que usamos quando crianças para nos preparar para o mundo frio e cruel que se chama realidade.

- Ah… você não acredita mesmo nisso, não é? - Disse Ofredo, pulando da mesa onde estava sentado e se aproximando de mim com seus passinhos curtos, mas precisos. Senti seu cheiro de algodão-doce, algo que fazia parte do meu processo de imaginá-lo, e permiti que ele tocasse o meu rosto, secando uma única lágrima que escapara do meu olho. - Não é porque a realidade não se faz fantasia diariamente que devemos deixar de fantasiar aquilo que queremos que seja real.

E sentando-se ao meu, continuou, sereno:

“A vida, minha querida, é uma constante metamorfose. Altos e baixos, risos e lágrimas, dores e curas, angústias e libertação… Somos convidados diariamente a bailar essa insana valsa de, apesar de tudo, simplesmente continuar. Continuar a despertar em um mundo repleto de flagelos, dedicando-nos a operar grandes pequenos milagres ao nosso redor, num simples ato de ouvir, calar e olhar. Continuar a seguir adiante, mesmo quando as dores de nossos pés calejados insistam em nos lembrar o quão árdua foi a jornada. Continuar a arriscar vôos rasantes, em meio a tempestades e vendavais, na certeza de que mesmo não chegando ao topo, teremos alcançado o mais alto que nos foi possível. Isso, minha querida, essa insistência em permanecer e continuar, resume o doce e caótico movimento de viver.

“Mas nada seria possível se ficássemos presos e algemados pelo medo de sonhar. E sabe porquê? Os sonhos nos elevam a esferas inimagináveis, gerando um vórtex intenso de energia criadora que nos motiva e nos permite criar. Acreditar além do que se vê, do que se toca, do que se sente. Acreditar no suposto impossível, que apenas está atrás da porta criada, muitas vezes, por nosso medo de falhar. Acreditar em um propósito muito maior do que um simples estar no mundo. Acreditar que podemos fazer a diferença, ser presença, e permanecer. Acreditar que quando ousamos sonhar, a nossa realidade pode sim ser completamente modificada, porque muito além da concretude de nossas limitações estão as possibilidades de nossa alma sideral, que se expande em magnânima potência, vencendo barreiras de tempo, de espaço, de impossível.

“Afinal, diga-me, minha querida… tia-avó Petúnia foi menos feliz ao acreditar? Não que ela tenha me dito…”

E nesse instante, envolvida pela força magnética das grandes palavras daquele pequeno homem, me sobressaltei ao ouvir atrás de mim um miado familiar. Afastei algumas caixas e vi Garibaldi Feliciano ronronando e lambendo as patas, completamente alheio ao mundo que potencialmente se explodiria lá fora com a sua ausência.

Pegando-o no colo com cuidado, passei a mão delicadamente na sua cabeça e sorri. Sorri grande, sorri genuíno, sorri gostoso. Como há muito tempo não o fazia. Dei uma boa gargalhada e, respirando fundo, deixei que se fosse o peso da realidade, me permitindo envolver em meio à leveza do sonhar. Olhei novamente para o lugar onde Ofredo estava sentado, mas sabia que ele não estaria lá. Afinal, ele já havia cumprido sua missão: trazer de volta o brilho de quem decide acreditar.

Encaminhei para a saída com Garibaldi no colo quando, subitamente, uma frase de Ofredo me fez arrepiar: “não que ela tenha me dito”… E realmente, todas as vezes em que juntas nos deleitávamos no imaginar, tia Petúnia conversava e ria junto com Ofredo, olhando-o diretamente e até tomando-o nos braços e bailando de forma brincalhona. Será que ela realmente só fingia acreditar?… Bem, aquilo não mais importava… Havia muito mais a fazer, a crer, a sonhar.

E com esse sentimento de pura renovação na alma, voltei à sala onde velavam tia Petúnia que, serena em suas feições, exalava um peculiar e tão familiar cheiro de algodão-doce…