Blogs e Colunas

Trilogia: Uma longa viagem... (Parte II)

26 de Novembro de 2020 às 22h30

Ana Cecília Novaes

ver todas as postagens »

        - Mas que absurdo! Quanta audácia! Isso é uma verdadeira infâmia! - Grunhia uma titia Gertrudes extremamente revoltada. Eu, que só tentava me afundar o máximo possível na poltrona do avião, já estava com inveja de Garibaldi Feliciano que, há essa altura, já devia estar dormindo confortavelmente, bem longe dos chiliques de titia…

- Titia… - sussurrei, tentando induzí-la a falar tão baixo quanto eu. - Entenda, por favor… a passagem da senhora dizia que o assento é no corredor, e não na janela… Portanto, a senhora não pode simplesmente querer que esse simpático senhor se levante e lhe ceda o lugar… - finalizei, lançando um sorriso altamente constrangido para o homem de bigode e uma feição nada amigável que estava sentado ao lado dela.

Não posso julgá-lo, devo dizer… Depois de ser surpreendido com uma senhorinha irritadiça que, sem muito decoro, exigia que ele lhe cedesse o lugar, considerando sua “artrite, artrose e deficiência de vitamina D…”, como ela fez questão em insistentemente repetir, eu também estaria com cara de poucos amigos, silenciosamente desejando que uma emergência súbita fizesse com que aquela maritaca tivesse de descer de imediato do avião… E ao que parece, o destino ouviu o pedido dele, mesmo que de forma torta…

- Senhor… - disse a aeromoça que, muito gentilmente, dedicou alguns vários minutos do vôo (que até então, tenho certeza, achara que ia ser tranquilo) para explicar (ou convencer) titia que seu assento era, definitivamente, o do corredor. Provavelmente (e com razão) se apiedou do pobre moço de bigode que teria de viajar ao nosso lado, e por isso trouxe a notícia: - Tivemos uma ausência algumas fileiras à frente, no assento da janela. Caso queira, pode se sentar lá. - E se dirigindo à titia, completou, claramente exausta: - E a senhora poderá se sentar na janela.

- Ah, que maravilha!!! - Disse titia, sem conseguir (ou mesmo tentar) esconder a sua felicidade por ter conseguido o que queria. Levantamos as duas para deixar o homem passar, sem conseguir esconder seu sorriso de alívio por trás do longo bigode, e deixei que uma titia encantada se pusesse a observar a vista da janela.

“Agora sim, um pouco de paz…”, pensei, principalmente quando notei que titia, poucos minutos depois de ter ganho a “briga”, entediou-se e, colocando sua máscara de olhos (estilo gatinho) para repousar. Revirei os olhos e suspirei, pensando que, definitivamente, eu merecia uma xícara de café.

Acionei o botão para chamar a aeromoça, pedi um expresso puro e bem forte, e fechei os olhos por alguns instantes, fazendo uma pequena retrospectiva daquele dia… Claramente eu estava sofrendo de fadiga extrema, o que provavelmente tinha mexido com a minha mente a ponto de me fazer ter uma… como é que chamaram naquele livro de auto-ajuda?… uma percepção alterada da realidade! É isso! É óbvio que aquela suposta conversa com Ofredo foi uma forma da minha mente me falar que eu preciso parar um pouco de viajar e descansar… Talvez passar alguns dias com titia e, mais tarde, pegar um trem para algum destino desconhecido e repleto de novas descobertas…

- Mas continua teimosa, não é?… - ouvi uma voz masculina no acento ao meu lado.

Senti meu coração acelerar e minhas mãos suarem frio, e apertando os apoios laterais do acento, apertei forte meus olhos que já estavam fechados. Fiquei assim, imóvel, por alguns minutos, imagino, mas para mim pareceram horas. Se pudesse, esconderia inclusive o som da minha própria respiração, de forma a ficar, literalmente, invisível, ou tornar invisível o que eu temia estar ali do meu lado, novamente.

- Quando você era menina tentou ficar invisível várias vezes, e sabe muito bem que não dá certo… - ouvi novamente. - Já não acha que é hora de enfrentar a realidade à sua volta, ao invés de tentar evitá-la?

Dando um longo suspiro de rendição, vagarosamente abri um olho… e depois o outro… e virei a cabeça para o lado… e ali estava ele. Sua boina azul marinho combinando com seus grandes olhos, os quais contrastavam com seu corpo pequeno e pés de criança que, matreiramente, pendiam do acento, como se estivessem desafiando a gravidade. Me olhava com atenção, claramente estudando cada detalhe do meu rosto, ou mesmo (ouso dizer), da minha alma. Percebendo as feições de terror que claramente se desenhavam em mim, abriu um meio sorriso piedoso, e disse, com gentileza:

- Ora, ora, minha querida… também não é para tanto… eu sei que sou feio, mas foi você quem me fez assim… - finalizou, com um risinho maroto.

- P-p-por f-f-avor… o que quer de mim? E-e-eu só posso estar ficando louca…

- Loucura nunca foi um defeito… - disse, olhando carinhosamente para titia Gertrudes, que tranquilamente roncava alto ao seu lado. - O grande problema é não saber domá-la e, sim, deixar-se domar por ela. - E, me encarando novamente, com as feições mais sérias, comentou, solene: - Como lhe disse, estou aqui em uma missão, e não pretendo ir embora até cumprí-la.

- Missão? Como assim? E afinal… - disse, olhando de relance para os lados para me certificar de que ninguém estaria encarando uma mulher conversando com um acento vazio. - Você não pode ser real… Pode?

- A realidade é definida por tudo aquilo capaz de impressionar nossos sentidos… O vento que acaricia nosso rosto em uma fresca tarde primaveril… O aroma de hortênsias desabrochando em meio às montanhas… A singular e tão bela vista de um entardecer sob a copa de uma árvore… O som calmo e sereno de ondas que balanceiam e embalam a alma… O sabor indescritível de um bolo deliciosamente saído do forno… O fato é que o homem se esquece que, muito além desses cinco sentidos, temos resguardadas percepções aguçadas que nos permitem desenhar com ainda mais detalhes a verdadeira realidade que nos cerca. A nossa intuição é um sentido forte, que urra por entre o silêncio dos pensamentos, tentando mostrar aquilo que os olhos não conseguem descrever com exatidão. O silêncio interior é outro sentido, que poucos conhecem, capaz de revelar segredos tão impactantes do mundo íntimo, os quais a nossa audição não consegue captar. A energia que cada ser vivo emana do seu campo mental muitas vezes impacta mais do que aquilo que o nosso tato consegue apreender. E o que dizer do gosto das realizações e do aroma das vitórias? Nos alcançam com intensidade ímpar, ocasionalmente vencendo nosso paladar e nosso olfato físicos… E esses tantos sentidos, minha cara, se mesclando e multiplicando a nossa percepção, constroem uma realidade muito mais ampla que aquela que, no automático, nos acostumamos a aceitar diariamente. Mas ainda falta um… um último sentido, talvez o mais sublime de todos eles, pois é capaz de conectar todos os mundos cujas realidades tentam nos alcançar incessantemente: a imaginação…

“Imaginar nos permite sonhar, ousar, acreditar e arriscar sermos muito mais e muito além do que nossos corpos nos limitam. Imaginar nos dá asas para vôos rasantes, nos dá forças para enfrentar medos, nos dá poder de encarar o maior inimigo que temos: aquela voz interna que diz que não somos capazes. A imaginação lança essa voz para bem longe, nos capacitando para crer que temos o potencial da plenitude, já que somos filhos da luz! Somos frutos de um universo magnífico, e só nos resta, portanto, a magnitude como fim e objetivo final. E veja que não me refiro à magnitude expressiva, aquela cujo orgulho e prepotência se apropriam para camuflagem… Não… Me refiro à magnitude do ser, que se permite expressar em sua mais íntima pureza e competência, dedicando-se a se mostrar melhor a cada dia, tanto na doação ao outro quanto na ascensão íntima.

“Isso, minha cara, é a verdadeira realidade. Aquela construída pela valsa complexa de todos os nossos sentidos, e temperada com a doce e tão maravilhosa arte da imaginação. A doçura da criança, afinal, emerge justamente da sua capacidade de crer muito além do que vê; esperar muito mais do que consegue tocar; e desejar muito além do que os limites humanos lhe estabelecem. A criança embarca nessa aventura que é se permitir imaginar, e cria, verdadeiramente plasma ao seu redor um mundo maravilhosamente mágico e colorido, trazendo para si alegria, leveza e tanta verdade. O problema é que, ao crescerem, a vida começa a lhes cobrar pés no chão, e elas se esquecem que um dia podiam voar… São exigidos resultados e obrigações, e elas se esquecem que um dia o mundo apenas lhes pedia para serem, verdadeiramente. E é por isso que, comumente, se perdem na estrada, e passam a andar em círculos, em busca de um tesouro perdido no caminho…

“Por isso, minha pequena grande amiga… se sou real?… Só você poderá me dizer…”

- Seu café expresso, senhora. - ouvi ao meu lado, e me virei, deparando com a aeromoça que estendia uma xícara fumegante em minha direção.

Pegando a louça e agradecendo, virei-me novamente para o acento ao meu lado, mas não mais vi Ofredo. Cheguei a olhar embaixo do banco, na fileira de trás e na da frente, mas nada… Por fim, me acomodei novamente e resolvi tomar o meu café, deixando que as suas palavras pairassem em minha mente como os aviõezinhos de papel que eu costumava fazer com ele, desejando (ou melhor, imaginando…) que cada um deles alcançava uma estrela diferente no céu. Naquela época eu não parecia me incomodar com o curto alcance de seu vôo ou com a pilha de aviões que se formava à minha frente… Para mim, eles haviam chegado lá…

Olhei para o lado e vi através da janela que titia havia deixado aberta. A noite já se anunciava, e as estrelas, brilhando, saudavam o céu poente. Sorri, decentemente, ao imaginar meus pequenos aviões em cada uma delas, e nesse instante não me importava se havia tido uma conversa real ou não com Ofredo. Naquele instante, eu só sentia paz… e deixei que ela me invadisse.

Ouvi um barulho acima de mim, onde havia colocado a tal mala de titia com os supostos utensílios de Garibaldi, e sorri… Imaginário ou não, era bom, depois de tanto tempo, reencontrar um amigo…