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Trilogia: Uma longa viagem... (Parte I)

08 de Novembro de 2020 às 13h25

Ana Cecília Novaes

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         - Não OUSE dizer “Eu avisei”!!!!!! - Rosnou a até então doce titia Gertrudes, enquanto se agarrava à Garibaldi Feliciano como se sua vida (ou sanidade, eu diria), dependesse disso.

- Tudo bem, tudo bem, titia… - Disse, tentando simular um sorriso que escondesse a minha vontade de pegar aquele gato e jogar nos braços da atendente do guichê da companhia aérea que, já há dezessete minutos, esperava a longa, dramática e completamente desnecessária despedida entre uma senhorinha potencialmente insana e seu gato petulante. Garibaldi, é claro, estava amando aquela cena toda, me encarando com seus olhos de duas cores e, posso jurar, esboçando um sorrisinho audacioso por debaixo daqueles bigodes perfeitamente escovados por titia.

É claro que eu, com certeza, TINHA AVISADO! Quando recebi a notícia de que a querida e adorada tia-avó Petúnia de titia havia falecido (com seus surpreendentes cento e vinte e dois anos), abandonei meus planos de viagem, peguei o primeiro trem de volta à sua cidade e, carinhosamente abraçada a ela, disse que poderia contar comigo no que precisasse. Eu sabia o quão passional a titia poderia ser, e receava que mergulhasse em uma tristeza irrecuperável, considerando que sua tia-avó havia lhe criado desde os cinco anos de idade. Mas qual não foi a minha surpresa quando, ainda abraçada a mim, ela disse em meio aos soluços: “Ah, minha querida… que bom que está aqui, e vai poder me levar à sua casa para que eu sinta pela última vez o cheiro das lembranças que tenho com ela, antes que seus filhos sangue-sugas resolvam vender a propriedade”.

Ignorando o ciúmes que titia sempre teve dos filhos de Petúnia, que a viam como irmã, e surpreendida pelo pedido (já que titia simplesmente achava a idéia de longas horas de viagem simplesmente “repugnantes e sem propósito”) logo providenciei duas passagens de trem e avisei que partiríamos naquele mesmo dia, já que teríamos que cruzar quase todo o continente para chegar até a área isolada onde ela havia morado por mais de vinte anos. No entanto, olhando para as passagens na minha mão com olhos arregalados, ela chiou: “Você não espera que eu entre em um trem e me submeta a quase dez horas de viagem, não é? Eu sou uma mulher do século XXI, minha querida! Compre imediatamente passagens de avião para que todos nós tenhamos o conforto que merecemos!”.

Perplexa com o comentário (e um pouco ofendida, porque sempre adorei o ar bucólico e atemporal de viagens de trem, e por isso sempre as preferi em relação a qualquer outro meio de transporte), fiz o que ela me pediu… No entanto, não esperava que o termo “nós” incluía o bendito gato da titia, que nesse momento simplesmente se recusava a permitir que ele fosse no compartimento de carga, conforme as determinações da empresa aérea (considerando o tamanho daquele gato que engordava a cada dia com os verdadeiros banquetes que titia preparava de manhã, de tarde, de noite e, se bobear, de madrugada…).

- Titia… - Comecei a falar da forma mais doce que conseguia, já sentindo o olhar fuzilador dos demais passageiros que já estavam fartos de esperar na fila que só aumentava… - Eu só havia avisado que trens têm menos burocracias que aviões, e por isso temos que respeitar as regras que a gentil… - ergui os olhos em direção à já irada atendente do guichê da companhia aérea, e li seu crachá - … Tertuliana… é esse seu nome, moça?… - Deixei escapar, já me arrependendo… - … que a gentil, prestativa e paciente Tertuliana nos explicou! - Logo me apressei em dizer. - Garibaldi é muito grande para ir conosco na parte de cima do avião, mas não se preocupe! Tenho certeza que Tertuliana o deixará muito bem acomodado lá embaixo, não é? - Insinuei em desespero para a moça à nossa frente.

Revirando os olhos e dando um suspiro profundo, ela respondeu de volta, secamente: 

- É claro, senhora.

- Viu? E assim que descermos Garibaldi estará lindamente lhe aguardando já no saguão de desembarque, não é, Tertuliana?

Nesse momento jurei que a doce Tertuliana ia arrancar Garibaldi Feliciano dos braços de titia e lançá-lo direto na esteira de rolagem, mas ela respirou fundo (graças damos às poderosas técnicas de relaxamento espalhadas pelo mundo), e respondeu:

- É claro, senhora.

- Perfeito! Então, que tal deixarmos Garibaldi entrar na caixinha que deve ser super confortável e embarcar, para que também possamos fazer o mesmo? - 'Sem precisar acompanhá-lo no compartimento de carga colocadas em dois caixões pela multidão de passageiros que se acumulava atrás de nós', pensei…

Visivelmente contrariada e com os olhos transbordando em lágrimas, titia finalmente disse:

- Tudo bem… - E colocando Garibaldi na altura de seu rosto, de frente para ela, finalizou: - Meu pequeno, vai ficar tudo bem, eu prometo… Logo estaremos juntos! - E o colocou na caixinha de transporte, permitindo que (a não tão doce e gentil) Tertuliana o despachasse com as  nossas malas.

Quase podendo ouvir o som dos aplausos silenciosos dos demais passageiros enquanto nos afastávamos do guichê de check-in, deixei uma abalada titia no banheiro, para que pudesse se recompor da “traumática separação entre uma mãe e seu filho”, como ela fez questão em dizer em alto e bom som, e fui em direção à mais próxima cafeteria do aeroporto porque, venhamos e convenhamos, eu merecia uma boa e grande xícara de Macchiato depois daquele estresse todo…

Depois de fazer o pedido, sentei em uma das cadeiras do saguão de espera, reservei o lugar de titia com a minha mala de mão e, inspirando profunda e deliciosamente o aroma do meu café, me permiti um suspiro profundo…

- Tem muito silêncio transbordando daí de dentro, não é? - ouvi atrás de mim.

Ignorando o comentário já que, muito provavelmente, nenhum ser humano normal iria lançar uma frase do nada para uma completa estranha, voltei minha atenção ao meu café e à deliciosa espuma que pairava encima dele… Observando atentamente aquele pequeno mar branco que fazia suaves ondulações à medida que o ar quente se debatia para se libertar da xícara fumegante, me perdi em meio ao leve balançar do café, quando ouvi a mesma voz,  novamente, vindo atrás de mim:

- Se eu fosse você, não deixaria que a sua falta de aconchego fosse substituída pelo calor artificial desse café… você pode se acostumar demais com o que não tem, e deixar de lutar pelo que pode ter.

Percebendo que aquele comentário absurdamente ousado era, definitivamente, para mim, me virei para confrontar a origem daquela voz intrometida e me deparei com uma figura tão peculiar que me fez engasgar com todas as palavras não muito gentis que eu estava pronta para lançar como uma metralhadora.

Claramente se tratava de um homem adulto, apesar da altura de criança contradizer totalmente as suas feições maduras. Sua pernas não alcançavam o chão, mas isso claramente não o incomodava, já que balançava de forma marota seus pequenos pés que pendiam da cadeira. A roupa jovial até que combinava com seu sorriso arteiro, que claramente estava direcionado a mim, mas a maleta antiga ao seu lado remetia a tantas décadas atrás quanto fosse possível manter um objeto tão bem conservado. Por fim, sua boina azul marinho combinava com seus olhos que, misteriosamente, me fizeram sentir muito, muito menor do que a palma de sua mão.

- O gato comeu a sua língua? - brincou ele, de forma irreverente. - Ou se acostumou tanto com o silêncio que desistiu de falar com o mundo?

Ainda estarrecida com a energia que vinha daquele pequeno corpo como uma avalanche, tentei me recompor e ordenar os pensamentos na minha mente, respondendo vagarosamente:

- Eu… Hum… Eu não sei do que está falando…

-Não sabe, ou deixou que a sua mente mergulhasse tanto nessa xícara que acabou perdendo o caminho de volta?

Já me sentindo ofendida com tanta ousadia, cerrei os olhos e respondi com mais energia:

- Me desculpe, mas o que lhe dá o direito de falar assim comigo? Faça-me o favor! O senhor nem me conhece!

- Não conheço? Tem certeza?

Agora extremamente intrigada, me virei na cadeira para vê-lo melhor, quando subitamente um lapso de reconhecimento invadiu o meu ser, e arregalei meus olhos…

- N-não p-p-pode ser… - murmurei com uma voz tão fina quanto meu pavor mesclado de surpresa permitiam.

- Ora… até onde eu me lembro, a garotinha que eu conhecia achava que o impossível morava exatamente onde os sonhadores abandonavam sua ousadia de sonhar…

- M-mas c-c-como?! Você não é real! Nunca foi!

E só naquele instante percebi que estava falando alto o suficiente para chamar a atenção dos demais passageiros que, naquele momento, provavelmente estavam se perguntando o que uma mulher estaria fazendo falando sozinha com a cadeira de trás…

Porque com certeza era o que eles deviam estar vendo, já que aquele que “falava"comigo era, ninguém mais ninguém menos, que meu amigo (não tão) imaginário Ofredo… Lembro de tê-lo conhecido (ou criado na minha mente, seja lá o que os psicólogos prefiram definir) quando tinha cinco anos e, na escola, era zombada por ficar lendo na hora do recreio ao invés de brincar com as crianças. Ofredo, desde então, passou a me fazer companhia não só nos recreios, mas na ida e volta da escola, na hora das tarefas, das brincadeiras e, principalmente, dos faz-de-conta. Ele era, assim como eu, diferente, e por isso ambos não nos importávamos com as nossas esquisitices. Ele me acompanhou por anos a fio, e com o tempo aprendi a esconder nossas conversas do restante das pessoas que, com o tempo, passaram de “que fofinho, ela tem um amiguinho imaginário”para “já passou da hora dela crescer… acho que devia ver um médico…”. Mesmo escondido, Ofredo nunca deixou de fazer parte da minha vida, e se tornou meu melhor amigo. Até que já na adolescência, com cerca de quinze anos, fui vista por umas colegas de turma falando com Ofredo baixinho, e virei a piada de toda a escola pelo resto do ano. Dali em diante decidi que Ofredo não mais faria parte da minha vida, e o ignorei por tempo o suficiente até que ele, simplesmente, desapareceu. E com o passar do anos, até a sua lembrança foi ficando vaga na minha mente, até aquele instante…

- Ai meu Deus… - sussurrei, virando para frente e falando comigo mesma. - Isso não está acontecendo, não está… Nada disso é real! Só estou cansada, exausta! - murmurei, e virei toda a xícara de café em um gole só. Sentindo o líquido ainda quente descer pela minha garganta, fechei os olhos e assim fiquei por uns instante. Percebendo que eu não escutava mais nada ao meu redor além da conversa usual das pessoas no saguão, respirei fundo, aliviada, e abri os olhos. À minha frente dois grandes olhos azul marinho me encaravam, e um sorriso estampava aquele rosto que claramente se divertia com meu pânico.

Acabei dando um grito involuntário, e novamente chamei a atenção que não desejava. Simulando que algum inseto qualquer havia me picado, sorri constrangida e me afundei na cadeira, tentando ficar o mais longe possível daquele ser que, serenamente, se sentou na cadeira ao meu lado, confortavelmente.

- Você não costumava ser tão escandalosa… Mas imagino que isso seja o resultado do silêncio que vem cultivando há tanto tempo… Quando resolve falar, acaba transbordando…

- Mas o que raios está acontecendo? Você deixou de existir há muito tempo…

- Deixei de existir ou você deixou de se permitir me ver, assim como deixou de sentir verdadeiramente tantas coisas na sua vida?

- O que? Isso não faz sentido algum…

- É exatamente por isso que eu voltei… Para que você volte a achar o sentido que perdeu no meio do caminho… Acho que de tanto correr, você passou a andar em círculos, e nem percebeu…

- Mas que loucura é essa? Primeiro, eu tenho muito sentido e direção sim! Se você realmente me conhecesse saberia que eu venho viajando de cidade em cidade, há bastante tempo, para conhecer o mundo, as pessoas, a vida! Sei exatamente para onde vou, e de onde vim! E segundo… Ah, meu Deus! O que é que estou fazendo! Me justificando para uma criatura que nem existe!

- Em primeiro lugar, você pode até achar que tem direção, mas não percebeu ainda que quanto menos determinar para onde vai, e quanto mais permitir que a vida te leve, mais conseguirá realmente chegar aonde precisa. Em segundo lugar, se você acha que eu não existo, com certeza se perdeu no meio do caminho, o que faz a minha missão ainda mais urgente.

- Missão? Como assim, missão?

- Ora, você não acha que eu sou como você, que fica por ai andando sem propósito ao invés de aproveitar toda e qualquer oportunidade para impactar positivamente o mundo… Eu não, minha cara… eu vim com um objetivo muito claro!

- Que é…

- Que é te trazer de volta a você.

- Como é que é???

- Por hora basta saber que você terá um acompanhante especial nessa viagem: eu! 

- Há! Não mesmo! Você é um mero fruto da minha imaginação, e do mesmo jeito que apareceu, subitamente, vai sumir! E vai ser AGORA! - finalizei, com ênfase, levantando com energia e seguindo em direção à outra ponta do saguão, pisando firme.

Quando terminei de atravessar, ouvi atrás de mim gritos exasperados, e suspirei aliviada ao reconhecer a fina voz de titia, que se aproximou de carregando desajeitadamente as nossas malas…

- Ora, francamente! - disse ela. - Já não basta eu ter de viver um trauma emocional com a separação de Garibaldi, você ainda larga nossas malas em uma cadeira qualquer, me fazendo correr no meio desse aeroporto! Logo eu, com minha artrite, minha artrose, minha falta de vitamina D…

- Desculpe, titia… - falei sorrindo, pegando as malas de suas mãos e agradecendo por estar conversando com alguém real. - Acabei me distraindo…

- Ora, querida… eu sei que você também está estarrecida com a notícia de que Garibaldi vai passar um período horrendo debaixo daquele avião… Mas vamos, já estão nos chamando para o embarque, e quero ser a primeira a entrar, para ganhar aqueles salgadinhos chiques que anunciam nas propagandas! - disse, toda animada, uma titia não mais tão abalada assim… - Ah! E por favor, meu bem… Pegue aquela minha mala de mão que está mais pesada, sim? Sabe como é a minha coluna…

Olhei para a direção onde ela apontou, e franzi o cenho, dizendo:

- Mas titia… não me lembro da senhora trazendo essa mala de casa…

- Ora, como você é avoada… É claro que eu trouxe! Ai que estão os utensílios de Garibaldi! - disse, apressada. - Agora venha, rápido! - E se virou, indo em direção ao portão de embarque.

Me aproximei da tal mala de mão e a peguei. Sentindo o peso dela, murmurei para mim mesma:

- Mas que raios de utensílios esse gato precisa para pesar tanto essa mala, pela misericórdia!

Foi quando senti algo se mover lá dentro e, abrindo o zíper devagar, prendi a respiração quando dois olhos azul marinho me encararam, lançando um sussurro:

- Não é dos mais confortáveis, mas sendo desse tamanho, eu me adapto em qualquer lugar. - E me encarando com um sorriso arteiro, Ofredo disse: - Se eu fosse você me acostumaria rápido… Afinal, vai ser uma longa e valorosa viagem…


(E continua…)