Blogs e Colunas

Sob a chuva...

24 de Janeiro de 2022 às 15h15

Ana Cecília Novaes

ver todas as postagens »

Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!

https://open.spotify.com/episode/4HbuwklMFrGJocRfR9NCVw?si=f1d89b8137d24bfc

        - Que... idéia... ridícula... eu... fui... ter... – falei comigo mesma, escutando os “splash, splash” dos meus tênis absolutamente encharcados enquanto eu tentava (em vão) proteger da tempestade a minha cabeça com a pobre, e agora destruída, bolsa artesanal de palha colhida nos vastos campos do leste que eu havia ido buscar para titia Gertrudes. Honestamente, eu tinha sérias dúvidas se eu estava com mais medo de me perder em meio ao caminho daquela estrada, já que a forte chuva não me permitia ver mais do que cinco passos à frente, ou da própria titia quando visse o estado da sua bolsa.

            Francamente, eu não sei como sempre acabo em situações como essa. Bem, talvez a minha incapacidade de dizer não (principalmente para titia Gertrudes), tenha alguma coisa a ver com isso, mas não imaginei que um simples passeio no campo terminaria dessa forma. Naquela mesma manhã quando titia se jogou dramaticamente em sua poltrona (quase esmagando o pobre Garibaldi Feliciano que ali tirava sua soneca matinal) falando que “oh céus, que tragédia Grega! Não poderei buscar a linda bolsa artesanal de palha colhida nos vastos campos do leste que encomendei da prima de segundo grau da filha de minha querida Dolores pois minhas juntas estão me matando”, sabia que ia sobrar para mim. Ainda cogitei dizer que naquele dia em especial eu esperava aproveitar as preciosas horas do meu tempo para avançar em minha leitura do livro “Café hoje, café amanhã, café para sempre: aprenda 97 formas diferentes de servir esse precioso grão”, mas tinha certeza de que perderia uma discussão com titia onde a pauta era a importância de sua bolsa artesanal de palha colhida nos vastos campos do leste versus meu peculiar interesse (e gosto) por cafés.

            Bem, pelo menos posso aproveitar o ar puro dos campos, pensei enquanto saia de casa a pé com minha roupinha leve e meu tênis de caminhada, já que a casa da prima de segundo grau da filha da Dolores era em um bosque não muito afastado da cidade, conectado por uma pequena estrada. Não posso reclamar da ida, é verdade, já que o passeio fora muito agradável. Mas assim que peguei a bolsa de titia e sai da casa da moça senti uma brisa diferente e, olhando para o céu, me espantei com as pesadas nuvens que indicavam uma tempestade que se aproximava.

            Apressei o passo, na esperança de chegar em casa ainda sã, salva e seca, mas não foi o caso. Ainda nem havia chegado no meio do caminho quando a água começou a cair do céu, com o objetivo aparente de alagar o mundo e varrer a minha pobre alma molhada dele.

            E lá estava eu: encharcada da cabeça aos pés, sem ver um palmo à minha frente e tremendo todos os ossinhos do meu corpo, seguindo por uma estrada que parecia não ter fim. Enquanto me perguntava se titia ficaria mais frustrada quando encontrassem meu corpo congelado ou sua bolsa encharcada, subitamente vi uma claridade embaçada alguns metros à frente. A vaga lembrança do que era sentir-se aquecida me invadiu de tal forma que simplesmente ignorei o fato de que não havia notado aquela construção no meu caminho de ida, apressei o passo e segui até lá.

            Guiada simplesmente pelo borrão de luz, fui me aproximando até chegar perto o suficiente para perceber que se tratava de uma pequena lanchonete antiga. Com um largo sorriso de alívio em meu rosto, abri e fechei a porta rapidamente atrás de mim, deixando que a sensação de calor e conforto invadissem cada pedacinho do meu corpo molhado, e quase chorei de emoção quando respirei fundo e senti o cheiro de: CAFÉ!

            Não podia ser melhor! Me aproximei com cuidado, ainda pingando, e me sentei no balcão antigo, aguardando ser atendida por alguém que, provavelmente, estava na parte de trás da lanchonete. Uma música de fundo tocava, e sem saber ao certo o motivo, simplesmente comecei a prestar atenção na letra e, involuntariamente, sorri, sussurrando, para mim mesma:

            - Ninguém, ninguém, ninguém te vê... Ninguém, ninguém acreditaria em você... Só Deus sabe o que você passou... Só Deus sabe o que dizem sobre você... Só Deus sabe como isso está te matando... Mas há um tipo de amor que só Deus sabe... Só Deus sabe o verdadeiro você... Há um tipo de amor que só Deus sabe...

            - Que idiotice... – ouvi, ao meu lado.

            Talvez mais espantada pelo tom áspero e grosseiro da voz do que pelo fato de não ter notado a presença da pessoa ali, virei meu corpo em sua direção e me deparei com um homem de meia idade, cabelos extremamente alinhados e discretamente grisalhos, uma barba muito bem feita e uma camisa combinando com uma calça social impecável, ou melhor, devia ter estado impecável até alguns minutos atrás, quando ele deve ter passado pela chuva para entrar na cafeteria, encharcando a barra dela. Notei que ele, na verdade, nem me olhava. E agradeci por isso, pois suas feições fechadas e pesadas, junto com sua postura de braços cerrados e apoiados no balcão, me fizeram ter pena da pobre xícara que ele estava encarando.

            Imaginando (e honestamente, desejando) que não tinha sido comigo que ele havia falado, desviei o olhar e observei o restante da cafeteria, que estava vazia. Tentando me distrair do fato de estar sozinha com um provável homem das cavernas, comecei a cantarolar baixinho junto com a música, que ainda tocava, o refrão que tanto havia gostado, enquanto aguardava a pessoa para me atender. Foi quando ouvi novamente:

            - Você quer fazer o favor de parar de murmurar essas baboseiras???!!! – bradou ele, finalmente me lançando um olhar austero e gelado.

            Sentindo-me afundar no banco, senti minha boca abrir para falar alguma coisa, mas não saiu nenhum som. Na segunda tentativa frustrada, fui interrompida por ele, mas em um tom um pouco mais baixo do que anteriormente, apesar da seriedade:

            - Não há nada de produtivo em acreditar em idiotices como essas, enquanto o mundo lá fora está transbordando daquilo que pessoas sensatas chamam de realidade. E a realidade é repleta de mentiras, dor, falsidade, perdas. Não é nada saudável acreditar em ilusões, e de saúde eu entendo bem. Tome isso como um conselho médico.

            Sentindo as minhas cordas vocais darem sinal de vida, mas ainda assim me mantendo a uma distância segura de onde ele estava, gaguejei:

            - O-o senhor... o se-senho é médico?

            - Sou. Muito além de médico, sou um homem das ciências. Um homem que só aceita a realidade de fatos, evidências, provas e comprovações. Lido com vida e morte diariamente, e sei que milagres não existem, e muito menos uma força maior, um Deus, ou seja lá como queiram chamar, já que tudo é uma questão de palavras, não passa de uma criação humana para justificar aquilo que não tem justificativas. Francamente, isso é uma grande perda de tempo, e o que eu definitivamente não tenho na minha vida para perder é tempo. Já basta meu pneu ter estourado no meio desse dilúvio bem quando eu estava a caminho do trabalho. Quanto eu vou perder hoje, francamente... A sorte foi que estourou bem na frente dessa lanchonete, e não estraguei minha roupa. – Falou, se olhando.

            - Sorte? – murmurei, deixando escapar um sorriso suave, mas me arrependendo no segundo depois, já que ele se virou para mim, inquisidor.

            - O que está insinuando?

            - Desculpe, não quis ofender. Só acho curioso o senhor preferir chamar de sorte algo que pode ter sido acaso, destino, ou providência... Mas tudo é uma questão de palavras, não é mesmo?

            Senti seu olhar me perfurar silenciosamente, enquanto seus lábios se moviam lentamente:

            - Mas quem você acha que é para falar assim comigo?

            - Eu? Eu sou apenas alguém que escolhe acreditar. Acreditar que existem tantos e tantos mistérios que ainda não podemos explicar e muito menos entender, mas isso não invalida o fato deles existirem. Sou alguém que escolhe acreditar que o mundo é imenso demais para que eu tenha a audácia de achar que posso controlar suas leis, suas regras, ou mesmo compreendê-las por completo, já que sou simplesmente humana, e como tal, limitada. Sou alguém que escolhe acreditar que o universo é incrivelmente maravilhoso não pela obra do simples acaso; e que estamos imersos nessa realidade não pela sorte, mas por um motivo muito maior do que nossa vã consciência. Sou alguém que sabe, simplesmente sabe, que o mundo não é perfeito. Não precisa ser um gênio para observar quanta dor assola as almas, quanta tristeza invade os corações, quantas ausências, quantos gritos de silêncio... Pessoas que sofrem doenças por vezes incuráveis, às vezes desde tenra idade, sem um motivo aparente. Tantos de bom caráter que se vão em acidentes tolos, e quantos ainda perdidos na ausência do bem, permanecem. Quantas doenças que nem entendemos dizimam populações, e quanto ainda somos tão frágeis diante uma natureza tão imensa. Mas é exatamente por essa fragilidade que eu sou uma pessoa que escolhe acreditar.

            “Eu escolho acreditar que todo dia haverá um motivo para continuarmos seguindo, acima e apesar de tudo que não podemos explicar ou compreender, porque diante a nossa pequenez há uma força gigantesca e arrebatadora que controla o inexorável e têm um propósito muito maior do que a nossa pequenez pode perceber. Eu escolho acreditar que as dores, as perdas, as decepções são degraus, saltos de evolução para que alcancemos um estágio no qual talvez, e só talvez, estaremos mais capacitados a minimamente começarmos a compreender aquilo que é tão distante de nossa lógica pequena e humana. Eu escolho acreditar que cada um tem uma missão nesse mundo, e quando efetivamente nos conectamos com o propósito dessa missão, nos sentimos libertos de nós mesmos, e passamos a verdadeiramente existir, ao invés de simplesmente sobreviver.

            “Eu sei como deve ser difícil e doloroso, no seu dia-a-dia, se deparar com tanta dor e decepção, e se torna mais fácil desacreditar do que insistir em crer. Mas honestamente, o dia em que você se permitir se conectar com seu propósito, garanto que se tornará muito mais valorosa a estrada de pedregulhos que você percorre com pés descalços. Afinal, não somos todos andarilhos maltrapilhos, trilhando um caminho e esperando que o rumo se desenhe a cada passo, já que em nossa pequenez não sabemos a direção? Pés descalços, mãos desnudas, nos ferimos a cada passo, nos cortamos a cada escalada, mas seguimos, não pelo acaso, mas por uma certeza de que o destino é valoroso. E sabe o que nos dá essa certeza? A fé.

            “Portanto, senhor, eu sou essa pessoa que escolhe ter fé muito acima de minhas limitações e imperfeições, porque eu não acho, mas eu sei que tem uma força incrivelmente maravilhosa e absurdamente poderosa que rege a minha vida e a de todos. E em seus braços eu repouso a minha alma, e sigo. Eu sou, sim, essa pessoa. E o senhor?”.

            Observei que ele me encarava estarrecido, e quando puxou fôlego para falar alguma coisa, a porta da lanchonete se abriu em um estrondo, e uma criança entrou correndo por ela. Ambos nos viramos e encaramos uma menina com intensos olhos de esmeralda se aproximar de nós, praticamente sem fôlego para falar.

            - Minha... mãe... ajuda... um... médico... Por... favor...

            O homem à minha frente olhou em direção à porta, onde a tempestade ainda caia forte, e em seguida para sua roupa. Virou-se para mim, e me observou por alguns segundos. Na sequência, se levantou, pegou seu casaco e se virou para a criança, falando:

            - Me leve até ela, rápido.

            Observando os dois se moverem para a porta, instintivamente me levantei e os segui, há tempo de notar o pneu furado enquanto ele pegava uma maleta em seu carro parado à frente da lanchonete. Caminhamos cerca de um quilômetro na chuva, e sentindo a água escorrer pelo meu corpo me perguntei como aquela criança estava sabendo se guiar em meio à escuridão. Foi quando chegamos em um pequeno chalé, que se escondia no meio das árvores.

            Ao entrarmos, nos deparamos com uma sala pequena e muito simples. O homem seguiu a criança até o que deveria ser um quarto, e me aproximando vagarosamente pude ver por detrás de seu ombro que na cama estava uma mulher extremamente emagrecida e pálida, imóvel. Sentindo meu corpo gelar me perguntei se não havíamos chegado tarde demais, mas observando o homem verificar seu pulso, respirei aliviada quando ele olhou para mim e disse:

            - Vou precisar da sua ajuda. Temos muito a fazer.

            Ali passamos a noite cuidando da desconhecida que, a cada hora, ganhava mais cor e vida. O homem não saiu de seu lado, e nem eu, e em silêncio compartilhamos o desejo de que o sol nascesse com raios de esperança. Aos primeiros indícios da manhã, enquanto eu molhava os lábios da mulher com um pano úmido e o homem checava sua pressão, ouvi, baixinho:

            - Obrigada.

            Percebi que ela havia aberto os olhos, tão verdes quanto os da filha, e deixei que um sorriso de alívio e gratidão invadisse o meu rosto.

            - Seja bem-vinda de volta! – murmurei, apertando sua mão e me enchendo de alegria ao sentir que ela, levemente, retribuía o aperto.

O médico, à minha frente, com os olhos cansados e as roupas amaçadas, se jogou na cadeira ao seu lado, em claro alívio. De forma leve e gentil, falou com a mulher:

– Agradeça à sua linda filha que cruzou uma tempestade em busca de ajuda! Aliás, onde está a linda mocinha? Não a vimos a noite toda. – falou, olhando para mim após inspecionar o cômodo.

Percebi que a mulher franziu a testa e, na sequência, deixou que abundantes lágrimas escorressem pelos seus olhos.

- Não se preocupe, vamos chamá-la. – falei, secando suas lágrimas com o pano. - Ela deve ter dormido, depois de tanto esforço, pobrezinha.

Lançando-me um olhar de dor, a mulher murmurou:

- Eu... eu não tive forças para levá-la... Cai na cama, e não consegui mais levantar... Adoecemos juntas, e ela é tão magrinha... era... – e começou a chorar copiosamente. Entre soluços, dizia: - Não pude, não pude salvá-la... minha filhinha...

Olhei para o homem à minha frente e reconheci a mesma confusão que me envolvia, mas subitamente percebi que, curiosamente, até onde eu me lembrava, a menina não estava molhada da chuva quando chegara na lanchonete. Cuidadosamente soltei a mão da mulher e me levantei, seguindo para fora do quarto. Notei que além do banheiro só havia mais um cômodo, que estava fechado. Segui vagarosamente até ele, e tocando a maçaneta, não precisei abri-la para saber o que veria. Com os olhos repletos de lágrimas, me afastei e deixei que o homem tomasse o meu lugar. Quando abriu o quarto, percebi em sua face o olhar de espanto, de tristeza, de incompreensão. Vi que abundantes lágrimas cobriram sua face quando se aproximou da cama para cobrir o pequeno corpinho deitado, gélido e imóvel, cujas pálpebras cerradas escondiam as esmeraldas que se fizeram brilhar em nome do amor.

Se virando para mim, o homem simplesmente murmurou:

- Por Deus... como isso é possível?

Reunindo forças, respondi, com a voz embargada:

- Você mesmo já deu a resposta... Deus.

E só então notei que havíamos passado a noite toda com o pequeno radinho da sala ligado. Nesse momento, ele tocava a canção que, em forma de oração, coroava o milagre que havíamos testemunhado. E não me refiro ao fato de nunca mais termos visto aquela lanchonete, ou ao fato do pneu do carro do homem misteriosamente não estar mais furado, quando retornamos. E nem ao que vivenciamos naquela noite, naquele chalé... Me refiro ao pequeno milagre, aquele que sutilmente brilhava nos olhos do homem naquela sala, após fechar a porta do quarto da menina e se sentar na sala, para ouvir, em abundantes lágrimas, a canção.

 

Toda vez que eu tentei seguir sozinho

Toda vez que de pé cai em pleno caminho

E as estradas solitárias que caminhei

Jesus estava

 

Quando a vida que construí veio ao chão

Nenhum amigo, só ali, a solidão

Eu não pude vê-lo, mas agora eu vejo, sim

Jesus estava

 

Na espera, na procura

Na cura e na amargura

Como bênção enterrada no meu naufrágio

Num minuto, e instante

Pra onde eu fui e a diante

Mesmo quando eu não sabia ou não o via

Jesus estava

 

Para aquele que precisa de um milagre (mmm)

Por perdão a um preço que não se pague (mmm)

Não sou perfeito, então agradeço a Deus

Jesus estava (Jesus estava)

 

Na espera, na procura

Na cura e na amargura

Como bênção enterrada no meu naufrágio

Num minuto, e instante

Pra onde eu fui e a diante

Mesmo quando eu não sabia ou não o via

Jesus estava

 

Na montanha e nos mares (Jesus estava)

E nas sombras, desses vales (Jesus estava)

No fogo, no dilúvio (Jesus estava)

Sempre foi nosso refúgio

Não, eu nunca estou sozinho (nunca estou sozinho)

Ele sempre está lá

 

Na espera, na procura

Na cura e na amargura

Como bênção enterrada no meu naufrágio

Num minuto, e instante

Pra onde eu fui e a diante

Mesmo quando eu não sabia ou não o via

Jesus estava

Jesus estava

Jesus estava