Buscando manter a proposta de ampliar as formas pelas quais essas crônicas chegam até vocês, segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!
https://open.spotify.com/episode/19ZukmcLXadQccA3xihgQ4?si=2dW_IwbXTCKN3jkK7KMuXQ
- AAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!! - Senti que meus pulmões fossem explodir, tamanha a intensidade dos meus gritos. Mas muito maior do que a minha exaustão era a vermelhidão nas grandes e rechonchudas bochechas daquele garotinho de oito anos à minha frente, que competia junto comigo pelo urro mais alto, sem perder o fôlego. - CERTO, EU DESISTO! - Gritei, ou pelo menos tentei, já que a rouquidão da minha voz emitia somente uma espécie de miado. - Não sei mais o que fazer! Se quiser, ficar acordado, fique! Se quiser correr pela casa, corra! Se quiser gritar, grite! Porque eu simplesmente NÃO AGUENTO MAIS! Para mim, CHEGA!!!!
Não, não ouse ter dó daquele protótipo de ser humano! Acredite, eu sou a vítima aqui! Era para esse ser um calmo e relaxante final de semana na pequena cidade de minha prima de segundo grau Charlote, e estava tudo indo bem com meus planos de ter um tempo só para mim em meio aos jardins de seu aconchegante sobrado, quando por detrás dela, em minha chegada, saiu uma cabeça redonda, seguida por um corpinho redondo, revelando um ser pequenino e redondo, com um olhar curioso.
- Esse é Pablito, meu mais novo visitante! - disse minha prima, com um enorme sorriso no rosto e as mãos unidas em plena satisfação. Eu já tinha ouvido falar que Charlote transformara sua casa em uma espécie de lar temporário para crianças órfãs ou que haviam sido retiradas de seus pais por algum motivo judicial. O pequeno abrigo da cidade não tinha espaço para cuidar de todas as crianças e jovens necessitados e, por isso, minha prima cujo enorme coração eu sempre invejei (de uma forma boa, se é que há uma boa forma de se invejar), se ofereceu para receber uma ou duas crianças de tempos em tempos, até que elas conseguissem um lar definitivo. Tendo recebido a autorização das autoridades (o que não foi difícil, já que sempre fora uma cidadã modelo, sendo conhecida por todos por seus trabalhos em prol da comunidade), sua vida de solteira foi modificada completamente com a presença frequente de crianças e adolescentes que, de tempos em tempos, se tornavam seus hóspedes.
Não, meu coração não é feito de pedra, e eu não tenho problemas com crianças. Elas quem não vão muito com a minha cara… Por isso eu usualmente fico desconfortável perto delas e, provavelmente, farejando meu coração disparado, com certeza identificam uma presa fácil. Eu não estou sendo dramática, eu juro! Foi exatamente o que aconteceu quando meus olhos cruzaram com os de Pablito que, ao lado da minha prima, não falou uma palavra, e só ficou a me observar.
- Não se preocupe! - Disse Charlote, sorrindo, e passando o braço ao redor dos ombros dele. - Esse pequenino é um pouco tímido, mas logo serão grandes amigos, tenho certeza! Venha, vamos colocar sua mala no quarto que preparei para você!
Abri um meio sorriso e engoli um seco, tentando identificar em qual parte da nossa comunicação prévia eu havia perdido a importante informação de que ela estava, nesse período, com uma criança em sua casa. Afinal de contas, eu havia comentado que estava precisando ardentemente de um descanso, e foi nessa sequência que ela ofereceu suas acomodações “tranquilas e relaxantes”. Eu claramente não incluíra dividir meu espaço com um ser de oito anos em meu cardápio de atividades “tranquilas e relaxantes”.
Devo admitir que durante o primeiro dia eu realmente achei que fôssemos conseguir coexistir na mesma casa, já que o garoto não falava uma palavra e se limitava a me encarar de longe. Ok, estranho, mas suportável. Mas o caos foi instaurado quando na noite do primeiro dia minha prima simplesmente apareceu na porta do meu quarto, enquanto eu tomava uma deliciosa xícara de café com avelã, toda arrumada informando que teria de dar uma “rápida saída”, e que deixaria Pablito aos meus cuidados.
- Como é que é??? - perguntei, com os olhos arregalados, já sentindo meu estômago embrulhar e o suor escorrer pela minha testa.
- Tenho de comparecer a uma pequena festa beneficente que ajudei a organizar. Não é um grande evento, mas toda doação é útil aos centro comunitário da cidade. Chamei Pablito, mas ele se recusa terminantemente a sair… E sabendo que você com certeza vai preferir ficar em casa, sei que posso contar com sua ajuda para ficar de olho nele!
- M-m-mas Charlote! Você sabe que eu não sei lidar com criança! E principalmente com essa! Ele nem fala comigo!
- Ora, minha querida! Não se preocupe! Sei que vocês vão se entender! Afinal, têm mais em comum do que imagina!
E sem me dar tempo de sequer entender sua fala, seguiu em direção à porta e foi embora.
Tenho a sensação de ter ficado horas paralisada, com medo de respirar alto demais e ser ouvida pela criança que deveria estar espreitando pela casa. Mas ao ouvir a movimentação da Igreja que ficava perto da casa da minha prima, soube que não haviam passados mais de alguns minutos do meu pânico.
“Ok, meu único trabalho é garantir que a criança esteja aqui quando Charlote chegar”, pensei. “Não deve ser muito difícil… basta deixar que ele fique por lá, e o tempo logo vai passar”. Estava me sentindo extremamente orgulhosa da conclusão que havia chegado, quando senti meu estômago roncar. Foi quando percebi que era hora de jantar, e o garoto devia também estar com fome… Era o que me faltava…
Unindo toda a coragem que havia me restado, levantei-me devagar e andei pelo corredor, tentando fazer o mínimo de barulho possível, até chegar no quarto onde Pablito estava instalado. Respirando fundo, dei três batidinhas na porta e esperei alguma resposta. Nada. Dei novamente três batidinhas na porta e aguardei novamente. Nada. Me sentindo desconfortável pela ausência de sinal de vida vindo do outro lado, dei mais três batidinhas na porta e girei a maçaneta vagarosamente à medida que colocava meu rosto para dentro do quarto.
Percebi que minha prima havia transformado aquele cômodo em um verdadeiro paraíso infantil. O papel de parede revelava um céu imenso com vários balões coloridos voando entre pássaros e nuvens. No chão claro um tapete representando o mapa de uma cidade imaginária formava uma rota que levava da cama até o pequeno guarda-roupa onde havia uma espécie de mural com a foto de várias crianças com a minha prima, provavelmente aquelas que já haviam passado por aquele lar temporário. Uma cômoda abrigava vários brinquedos, e do outro lado uma prateleira com livros infantis e uma poltrona aconchegante completavam o cenário. Por fim, uma janela grande com uma linda cortina branca deixava a brisa fresca da noite entrar, enquanto uma criança pequena e redonda tentava pular para o lado de fora…
- Espera, o que?!!! - Exclamei, quando vi o corpinho rechonchudo de Pablito se esforçar para dar um impulso para o outro lado enquanto equilibrava a pequena e velha mochila em suas costas. Corri em sua direção e o agarrei por trás, fazendo um esforço contra sua determinação em pular para fora. Por fim, consegui vencer e ambos caímos no chão do quarto, fazendo um grande estrondo.
- O que você fez????? - Gritou o menino revoltado em minha direção, mostrando pela primeira vez sua voz para mim. - Eu estava quase conseguindo!!!
- Você está completamente louco??? - Indaguei, passando a mão pelo meu ombro, por cima do qual acabei caindo. - Esse quarto está no segundo andar, menino! Você podia ter se machucado feio!
- Eu não sou burro! - Retrucou ele, enquanto tentava ficar de pé, fazendo contra-peso com a mochila que parecia pesada. - Por isso fiz uma corda com os lençóis!
Virei o rosto em direção à janela e vi a ponta de um lençol amarrada no batente, claramente com um nó frouxo demais para sustentar de forma segura um ser humano, mesmo que pequeno, para baixo.
- Não seja ridículo! Aquilo ali não ia te aguentar!
- E o que te importa isso?! - Retrucou, com uma audácia impressionante para um garotinho. - Você tem a sua vida e devia cuidar dela! Eu posso me cuidar sozinho, e é isso que vou fazer! Não preciso de ninguém!
E falando isso, foi em direção à porta, cambaleando com sua mochila, me deixando atônita ainda no chão. Tratei de me levantar rapidamente e fui atrás dele, a tempo de vê-lo tentar alcançar a fechadura superior da porta da frente.
- Mas o que é que você tem na cabeça, garoto?!!! - Perguntei, enquanto o empurrava para longe da porta e me certificava que estava tudo devidamente trancado. - Qual o seu problema?
- O meu problema?!! O meu problema é você, que está me atrasando! Daqui a pouco o único trem noturno sai e eu tenho que estar nele!
- Ora, faça-me o favor! Você não acha realmente que eu vou te deixar sair assim e ir embora, sem mais nem menos?!
- Você não precisa deixar… - disse, com o olhar desafiador, e subitamente correu para a cozinha. Fui mais rápida e consegui chegar na porta de trás antes dele, passando a chave duas vezes e colocando-a no meu bolso, com um sorriso de vitória no rosto.
Bufando, ele olhou para os lados e, de repente, saiu em disparada para a sala de estar. Indo atrás, cheguei a tempo de puxá-lo da janela aberta pela qual estava tentando pular. Fechando-a com um estrondo, segurei-o pelos ombros, me abaixei em sua altura e perguntei:
- Mas afinal de contas, menino! Pare de tentar fugir!!! Aqui é o melhor lugar para você estar nesse momento!!!
Ao ouvir minha fala, o garoto pareceu se transformar. Aumentou a frequência da sua respiração de uma forma estranha, e subitamente começou a berrar.
- AAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!
Colocando as mãos nos meus ouvidos, eu implorava:
- Para de gritar!!!!
Mas ele parecia não me ouvir, e continuou, cada vez mais alto…
- AAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!
Me sentindo absolutamente impotente e cansada, olhei para ele em desespero e, sem aguentar, simplesmente cedi, e comecei a gritar junto…
- AAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!! - Senti que meus pulmões fossem explodir, tamanha a intensidade dos meus gritos. Mas muito maior do que a minha exaustão era a vermelhidão nas grandes e rechonchudas bochechas daquele garotinho de oito anos à minha frente, que competia junto comigo pelo urro mais alto, sem perder o fôlego. - CERTO, EU DESISTO! - Gritei, ou pelo menos tentei, já que a rouquidão da minha voz emitia somente uma espécie de miado. - Não sei mais o que fazer! Se quiser, ficar acordado, fique! Se quiser correr pela casa, corra! Se quiser gritar, grite! Porque eu simplesmente NÃO AGUENTO MAIS! Para mim, CHEGA!!! - E dando as costas, passei por todas as portas e janelas e peguei as chaves. Por fim, virei-me para ele, que estava tentando recuperar o fôlego, e falei: - Mas você NÃO VAI SAIR DAQUI! Não me importa o que você pensa, mas tem alguém que se importa o suficiente por você para merecer o seu respeito, então você vai FICAR! - E subindo as escadas, entrei no quarto e bati a porta com força, sentindo toda a minha frustração ressoar com a fechadura.
Me jogando na minha cama, senti que todo o meu corpo tremia. Tentando acalmar a minha respiração, percebi que aquela tremedeira não era de raiva, de cansaço ou frustração… Mas de preocupação. De uma forma que eu não consegui explicar, eu estava preocupada com o garoto. Eu sabia que ele não conseguiria sair da casa, porque estava tudo trancado, mas a questão era o porquê de sua ânsia por sair dali, por fugir… Subitamente senti uma semelhança incontestável com ele, saindo de cidade em cidade, em busca… de algo. “Vocês têm mais em comum do que imaginam”, disse Charlote… Percebi que quando disse que alguém se importava com ele, não me referia à minha prima. Mas a mim.
Com o coração apertado por algo que não conseguia explicar ao certo, abri a porta do quarto e desci a escada vagarosamente, observando o silêncio ser quebrado gradualmente por um som abafado, mas constante, de… choro.
Cheguei à sala e me deparei com Pablito sentado de pernas cruzadas no chão, com a mochila aberta ao seu lado, e em seu colo um travesseiro. Observei que o que fazia volume na mochila era o tal travesseiro, e por um instante fiquei parada lhe observando abraçar o utensílio como se sua vida dependesse disso.
Me aproximei vagarosamente, com medo de fazê-lo se afastar, mas não parecia que ele sequer estava sentindo a minha presença. Sentei-me ao seu lado com cuidado e, envolvida por uma sensação que não conseguia explicar, envolvi aquele pequenino completo estranho que, para minha surpresa, permitiu-se enlaçar, deitando o rostinho rechonchudo em meu ombro enquanto deixava escorrer abundantes lágrimas e soluços.
Não sei por quanto tempo ficamos ali, mas gradualmente seu choro foi reduzindo e ficamos no silêncio, ele em meus braços, e eu em seu enorme pequeno universo. E subitamente, ouvi sua voz abafada em meu ombro:
- Minha mãe falava isso… - Ele disse.
Sem entender ao certo, mas com medo de afastá-lo, abracei-o mais forte e permaneci em silêncio. E ele continuou:
- Ela costumava dizer que aqui é sempre o melhor lugar para estar, não importa onde fosse “aqui”, ou quando fosse esse “aqui”. Ela dizia isso quando me colocava para dormir, enquanto eu chorava de medo do escuro, me mostrando que entre as frestas da escuridão eu conseguia ver a luz. Dizia isso quando um temporal nos surpreendia no meio da rua, enquanto eu tentava correr em busca de abrigo, me mostrando o quanto era gostoso brincar na chuva. Dizia isso quando eu não queria entrar no primeiro dia de aula, enquanto eu tremia de medo do desconhecido, me mostrando que o novo sempre tem algo surpreendente para nos mostrar. Disse isso quando me explicou o que significava “câncer”, me avisando que cada “aqui” seria muito mais especial, já que seria o nosso pequeno “recorte de eternidade”. Disse isso quando me via chorar escondido, ao vê-la sem cabelos e cada dia mais fraca, me lembrando que cada amanhecer valia a pena ser comemorado. Disse isso quando, na cama do hospital, com pouca força para pegar a minha mão, me contou que “aqui” sempre foi o melhor lugar porque tinha a minha companhia para compartilhar os melhores momentos da vida. Ela também tinha cheiro de avelã, como você…
Dando uma pausa para um soluço que veio sem ser convidado, continuou:
- Ela disse que “aqui”… - Falou, apontando seu coração. - …ela sempre ia estar, e por isso eu nunca iria me sentir sem lugar. - Fungou novamente, e continuou: - Mas não era verdade! Cada dia que passa eu sinto mais e mais a falta dela, e me dá uma dor horrível porque percebo que sua imagem parece ir sumindo a cada ano que passa… Tenho medo de esquecê-la e perdê-la por completo, e aí sim eu, definitivamente, não terei lugar nesse mundo. Sinto tanta falta do seu abraço, do seu beijo, do seu cheiro… tudo nela me fazia sentir em casa, me fazia sentir amado. E hoje eu não tenho… nada. Não pertenço a lugar nenhum… Não sou nada de ninguém… Não sou filho, não sou irmão… Então, do que importa esse aqui, se não suporto viver em um mundo onde aqui ela não está?
E pôs-se a chorar copiosamente, novamente. Eu também já permitira que as lágrimas descessem pelo meu rosto, se misturando aos negros cabelos daquele pequenino. Envolvi-o e comecei a ninar aquele pequeno ser que tanto já havia vivido e sofrido e, sentindo novamente aquela sensação forte no peito, disse, não com a mente, mas com o coração:
- Você nunca vai perdê-la, nunca… Cada dia que despertar, cada momento em que sentir o vento bater no seu rosto, o sol lhe aquecer o corpo e a noite lhe embalar os sonhos… todos os instantes em que se permitir viver cada “aqui” que a vida lhe oferecer, lá estará ela, sorrindo, dançando silenciosamente com você na chuva, ou lhe dando um beijo de boa noite. Você não precisa vê-la em sua mente para sentí-la e se lembrar dela, assim como não precisa ver o vento ou o calor do sol para saber que eles estão ali. Você sempre terá um lugar no mundo, porque ela lhe deixou o maior presente que poderia: a força para transformar todo e qualquer lugar e momento em uma oportunidade de ser feliz. Então seja! Viva! Se permita estar, permanecer, ficar e ser abraçado, envolvido, cuidado e muito amado. Não tenha medo! Ninguém irá ocupar o lugar dela em seu coração, mas existem braços que querem a oportunidade de lhe ninar. Existem lábios que querem lhe dar um beijo de boa noite. Existem corações que querem a honra de lhe amar. Por isso, pare de fugir de si mesmo, e se permita encontrar por aqueles que desejam contigo estar. Eu devo aprender a fazer o mesmo, afinal…
Percebi que seu choro havia cessado e, olhando para baixo, percebi que ele havia adormecido em meus braços. Com cuidado, levantei-me e, com ele no colo, segui em direção ao seu quarto. Coloquei-o na cama, envolvi-o na coberta e lhe dei um beijo, sussurrando em seu ouvido:
- Aqui é o melhor lugar para estarmos, eu e você, a nos encontrar, meu pequenino.
Sem conseguir explicar o motivo, lancei um olhar com um sentimento que nunca antes havia sentido… Não era ansiedade, cansaço e nem mais preocupação… Era amor. Genuíno, espontâneo, guerreiro. Um amor de mãe.
Olhei através da janela do quarto, me deixando envolver por aquele sentimento, deixando que o barulho da chuva que se iniciara me enlaçasse. Por um instante tive a impressão de ver uma sombra de uma mulher brincando na chuva e, subitamente, encarando a janela, da rua. Senti meu corpo se arrepiar mas quando tentei focar o olhar, aquela sombra desapareceu, deixando apenas… paz. E um aroma de avelã.