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Relicário...

21 de Março de 2021 às 17h25

Ana Cecília Novaes

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Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!

https://open.spotify.com/episode/2M87Yxu52fRm2v4bxPRxpK?si=pAfBp66cQTWBtxO4sJXMxw

      - Dois expressos com canela, três cappuccinos com chocolate e um mocha, por favor… - disse, lançando um rápido sorriso de agradecimento ao garçom e me apressando em fechar a porta, mas infelizmente não fui veloz o suficiente, porque ao meu lado rapidamente surgiu um rostinho enrugado sustentado por um corpo envolvido em um roupão e pés em pantufas combinando, além de dois pepinos nos olhos que impediam aquela icônica figura de enxergar qualquer coisa a sua frente, incluindo eu. Trombando em mim, titia Gertrudes chegou na porta há tempo de dizer ao garçom:

- E um leite vaporizado com mel e gengibre!!! - falou (mais alto do que o necessário, já que não conseguia ver que o pobre rapaz estava bem à sua frente).

Revirando os olhos enquanto fechava a porta, ajudei titia a se sentar na poltrona mais próxima e resmunguei:

- Era só o que me faltava, titia! Pedir leite para esse gato que, aliás, nem devia estar aqui!

- Não seja rabugenta, querida! - disse titia, acomodando-se confortavelmente enquanto seu audacioso gato Garibaldi Feliciano pulava em seu colo me encarando firmemente, talvez se perguntando quem era eu para barrar a chegada de seu manjar dos deuses… - Perguntei à Alícia se ele podia vir, e ela disse que não havia problema algum! 

Olhei para minha prima de segundo grau (também envolvida por um roupão e com os cabelos enrolados em uma toalha) que, por trás de titia, ergueu os ombros desolada e desenhou um “desculpe" com os lábios. Bem, eu não podia culpá-la… Era extremamente difícil (para não dizer impossível), dizer “não” para titia, principalmente quando o assunto envolvia seu precioso (e mimado) companheiro felino. Obviamente a organizadora do casamento de Alícia ficou absolutamente alarmada quando viu chegar para o dia de noiva de minha prima uma senhora esguia e seu gato cujo nariz devia estar mais empinado que o da sua dona. Vou admitir que me diverti um pouco ouvindo-a se explicar para a manicure, a cabeleireira e o garçom que estavam ali para nos servir de forma personalizada que TODOS eles deveriam cuidar igualmente do tal do gato, tal como se fosse um convidado, conforme minha tia havia lhe informado.

Olhei ao redor e respirei fundo, tentando me distrair daquele já conhecido stress que sempre acompanhava titia e Garibaldi. Realmente o ambiente estava incrível, totalmente preparado para garantir que minha doce Alícia tivesse o dia de princesa que tanto merecia. Lírios e hortênsias enfeitavam cada canto do ambiente que, conjugado, envolvia uma confortável sala, um quarto que recebeu cadeiras específicas de salão, um banheiro belíssimo com hidromassagem e uma singela varanda que dava para uma bela vista do mar, diante do qual Alícia iria se casar naquele mesmo dia, ao por-do-sol. Havíamos chegado cedo, eu, titia (e Garibaldi), a irmã mais nova de titia, Calêndola, e duas amigas de infância da minha prima, e o objetivo era fazer com que Alícia conseguisse aproveitar intensamente seu dia, já que aqueles últimos anos não foram nada fáceis para ela.

Minha prima de segundo grau havia perdido seus pais muito nova, em um acidente de carro, e fora criada por Calêndola junto com sua irmã Ametista, dois anos mais nova que Alícia. Sempre foram duas crianças amáveis e muito dóceis, e frequentemente titia me levava para passar as férias na casa delas, período que sempre era regado de muitas risadas, festas de pijama, acampamento na sala e tudo o mais que nossa imaginação pudesse criar. Ametista era mestre em criar novas brincadeiras, histórias de terror para as noites frias e muitas desculpas para que titia deixasse que ficasse mais alguns dias todas as vezes em que tínhamos de partir. Nossa amizade era belíssima, e devo admitir que foi difícil para que eu e Ametista superássemos o ciúme que tínhamos do namorado (e em seguida, noivo) de Alícia. Se conheceram na juventude e já estavam juntos há seis anos quando ele a pediu em casamento e começaram os preparativos. 

Tudo era festa, alegria e farra na construção do sonho de Alícia. Ametista participava de cada escolha, opinava em tudo e sempre tinha algo a dizer, mas Alícia claramente não se importava, porque seu amor pela irmã era tão grande que tê-la por perto completava seu conto de fadas. Tudo ia muito bem até que há 18 meses Ametista, voltando da faculdade de teatro, sofreu um acidente de carro, falecendo imediatamente. 

Honestamente eu tinha a sensação de que Alícia nunca mais seria capaz de se recuperar daquele impacto. A notícia da morte da irmã lhe abalou completamente, e por muito tempo ela se recusava a sair de casa ou mesmo se alimentar direito. A data do casamento fora adiada por duas vezes, e quase não haveria festa hoje, não fosse a insistência de Calêndola, que disse que Ametista com certeza ficaria muito decepcionada se tudo o que ela ajudou a idealizar não ocorresse. E por isso todas nós, escolhidas como madrinhas de seu casamento, estávamos determinadas a fazer com que Alícia vivenciasse profundamente aquele dia, se permitindo ser feliz em um momento que tanto sonhara. 

E estávamos indo muito bem, obrigada… Nos revezávamos para estar com ela em cada instante, e aquele era o momento em que, provavelmente, titia iria chamá-la para o seu habitual chá da tarde… No entanto, quando me deparei com titia  largada na poltrona em soneca profunda com Garibaldi ronronando em seu colo, percebi que ela não iria exercer sua função e me apressei em procurar Alícia. Olhei na sala, no quarto e no banheiro… Nada. Comecei a me preocupar e fui até a varanda… nada também. Notando que todas estavam ou sendo maquiada ou tendo o cabelo preparado (com excessão de titia, que estava dormindo), abri a porta que dava para o corredor térreo do hotel onde estávamos e segui, de roupão, em busca da Alícia. 

Eu já estava no sexto andar e quase disposta a chamar seu nome pelo auto-falante da recepção, quando ouvi, vindo do último andar acima de mim, o cantarolar embargado de uma canção que não me era estranha… Subi o último lance de escadas e percebi que se tratava de um salão de festas com enormes janelas de vidro, cuja vista do mar era estonteante. As cadeiras estavam todas empilhadas em um canto, e as mesas cobertas indicavam que há algum tempo não haviam comemorações ali. Meus passos ecoavam pelo ambiente, mas não mais alto do que a voz embargada de Alícia que, encostada no batente de uma das janelas, tentava cantarolar uma canção ao mesmo tempo em que acariciava um objeto em suas mãos.

Me aproximei vagarosamente da minha prima, e me acomodei à sua frente, respeitando o abraço que o silêncio dava às suas lágrimas. Fique olhando as ondas do oceano se aproximarem e se afastarem, vagarosamente, quando ouvi:

- Como eu posso estar feliz sem ela?

Lancei meu olhar para ela e vi que seus lindos olhos esmeralda, inchados de tantas lágrimas, me encaravam em claro desespero e agonia. - Como eu posso sequer sorrir, quando ela não está mais aqui para sorrir de volta para mim?

E deixando escapar um soluço, continuou:

- No início, era dor. Uma dor lancinante, que parecia que ia cortar todo o meu corpo ao meio. Depois eu não conseguia sentir mais nada… Não sentia dor, fome, sono, alegria ou tristeza. Eu parecia pairar no vácuo, num tempo que não passava, esperando que alguém me dissesse que não havia passado de um pesadelo, e que eu já podia acordar. Por fim, cheguei a isso… - disse, apontando para si mesma, com desgosto. - Me obriguei a viver, a seguir em frente, porque afinal, todos esperavam que eu superasse e seguisse a minha vida. Esperavam que eu acordasse um belo dia e agisse como se nada tivesse acontecido! Que eu curtisse o dia do meu casamento como se a ausência da minha irmã não criasse o buraco negro mais profundo que poderia existir no meu coração! Mas como?!!! Como eu posso fazer isso??!!! Eu sinto uma falta, uma ausência tão grande, que é como se um pedaço de mim tivesse sido arrancado! Sorrir dói e me sentir alegre é cruel, porque é como se fosse possível ter alegria em um mundo sem ela! Eu sinto culpa, tanta culpa! Culpa por tentar encontrar alegria, prazer, energia, como todos me cobram, enquanto ela não pode sentir mais isso! Nunca mais! Sinto culpa por não poder compartilhar esse dia que sonhamos juntas com ela, minha irmã, minha melhor amiga! Ela se foi! E eu não pude nem dizer adeus!

E Alícia chorou. Chorou um choro de dor, de saudade, de revolta. Cada lágrima descia como uma avalanche, capaz de destruir tudo à sua frente, porque nada mais importava. Aproximei-me dela e a envolvi em meus braços, me permitindo chorar junto. E assim, ficamos por um bom tempo, até que seus soluços ficaram mais leves, a ponto de minha voz conseguir eco:

- Ah, minha querida… Eu não consigo imaginar a sua dor porque ninguém é capaz de vivenciar a dor do outro. Cada dor é única, cada dor é particular, cada dor é sofrida de uma forma tão particular que nunca ninguém será capaz de lhe entender completamente, ou lhe consolar, verdadeiramente. Mas eu sei… eu sei o quanto você teme acordar um dia e não mais ter a vívida lembrança dela contigo. Sei como lhe faz falta seu toque, seu cheiro, sua voz, sua presença… Sei o quanto você já se feriu ao pensar em lhe contar um segredo, ou uma notícia, e se lembrou que ela não estava ali para lhe ouvir. Sei o quanto você teme caminhar e se afastar das lembranças tão vivas e reais que cultivou com ela; e o quanto se culpa por continuar a caminhar, enquanto ela encerrou suas pegadas nas areias desse tempo. Sei o quanto você teme sorrir e desrespeitar a tristeza que assola seu coração pela sua ausência, e o quanto você se culpa por estar aqui. Viva. Em uma vida na qual ela não mais pertence. Eu sei, minha doce Alícia, o quanto dói continuar…

“Mas minha querida, feche os olhos e sinta… Sinta esse pulsar em seu peito… É seu coração… aquele mesmo que a amou incondicionalmente. E esses teus lábios? Foram os mesmos que compartilharam tantos sorrisos com ela, tantos segredos, tantas histórias. Essas mãos? Foram as mesmas que a acariciaram, pentearam seus cabelos e por vezes brigaram! Esses braços… os mesmos que a envolveram nas noites frias de inverno, mostrando que tudo ia ficar bem. Esses teus pés brincaram muito com ela, e caminharam lado a lado, até onde o universo lhes permitiu. Você, minha querida, carrega em si o registro vivo de sua irmã, em cada momento vivido, em cada sonho compartilhado, em cada memória cultivada. Está aí, em você, cada pedacinho dela que lhe foi permitido desfrutar, porque, no final das contas, cada pessoa que cruza o nosso caminho deixa em nós um pedacinho de si. E por isso você nunca, nunca vai deixar de tê-la contigo. Cada novo sorriso vai encontrar sentido numa gargalhada que se foi… Cada conquista vai encontrar abrigo num abraço trocado… Cada nova história vai encontrar prosa e poesia nos momentos compartilhados, e que são absolutamente imortais. Você leva dentro de si sua irmã, mas também em cada ponto de seu ser e de sua existência. Há forma melhor de mantê-la viva, em sua vida, do que ousar viver? Ousar continuar, ser feliz, crescer, caminhar e se fazer a cada dia a menina-mulher que ela tanto se orgulha? Sim… porque nesse universo sideral, estamos todos conectados por uma energia muito maior do que tempo e espaço, e essa energia sempre lhes deixará conectadas por meio da única força capaz de transcender as barreiras da morte: o amor. Por isso, você não precisa se culpar não ter dito adeus. Afinal, foi um silencioso e breve 'até logo’...”

Silenciando, olhei para ela e reconheci aquela menina com quem eu brincava há tanto tempo, e que trazia no olhar uma esperança e uma vontade de viver tão únicas e especiais. Esboçando um sorriso, ela abriu as mãos e me mostrou o que estava segurando. Era um relicário, dentro do qual havia uma pequena foto de sua irmã, com um largo sorriso.

- Pouco antes de viajar ela me deu esse relicário, dizendo que os maiores tesouros da vida são aqueles que cabem na palma de nossas mãos, nas frestas de um horizonte, entre os raios de um amanhecer. - disse Alícia. - Hoje vou entrar com ele enlaçado em meu buquê, ao som da música que cantávamos juntas, desde pequeninas. A nossa canção.

E assim foi. Retornamos ao dia da noiva e, depois de muito tempo, vi Alícia sorrindo com o coração. Mais tarde, sob o pôr do sol e ao som das ondas do mar, ela caminhava em direção ao seu amor, com passos firmes e alma lavada, segurando seu buquê, ao lado do qual pendia um singelo objeto que, honestamente, parecia balançar suavemente ao som da música que tocava…



Tradução da Música Time After Time (Repetidas Vezes) - Cindy Lauper



Deitada na minha cama

Ouço o tique-taque do relógio e penso em você

Presa em círculos

Confusões não são nada de novo

Recordações de noites quentes, quase esquecidas

Como uma mala de lembranças

Hora após


Às vezes você me imagina

Estou andando bem à frente

Você me chama

Não consigo ouvir o que você disse

Então você diz: Vá devagar, estou ficando pra trás

O ponteiro dos segundos vai pra trás


Se você estiver perdido você pode procurar

E vai me encontrar, hora após hora

Se você cair, eu vou te segurar

Estarei esperando, hora após hora

Se você estiver perdido você pode procurar

E vai me encontrar, hora após hora

Se você cair, eu vou te segurar

Estarei esperando, hora após hora