Blogs e Colunas

Quatro da manhã

31 de Outubro de 2017 às 14h35

Ana Cecília Novaes

ver todas as postagens »

           “Quatro da manhã, cemitério, café.”

            “Quatro da manhã, cemitério, café.”

“Quatro da manhã, cemitério, café.”

            Puxei a manga do meu casaco para cobrir minhas mãos que ameaçavam cair, tamanho o frio que fazia naquela madrugada; funguei alto (porque, enfim... Não havia ninguém muito vivo para reclamar da minha indelicadeza, e os mortos muito provavelmente não se dariam ao trabalho de sair naquele ar gélido e cortante só para me reprimir. Então, sim... Eu funguei, e alto!); levantei a gola do casaco ao máximo e me envolvi com meus próprios braços, buscando imaginar ondas de calor invadindo o meu corpo, numa tentativa absolutamente frustrada de alcançar o famoso “mentalize e conquiste!” do livro de auto ajuda que titia Gertrudes me obrigou a ler.

            “Você precisa dar um rumo à sua vida, minha querida!”, ela disse, ao me entregar o livro! Pois bem, titia, que belo rumo a senhora me arrumou, me fazendo vagar em plena madrugada em um cemitério, em busca de uma fumegante xícara de café! Tudo bem... A culpa não é dela, por completo... Afinal, ninguém poderia prever que sua amiga, Carmita, cuja vitalidade aos noventa e sete anos de idade deixava meu fiel companheiro joanete com muita inveja, iria resolver partir dessa para melhor em plena comemoração de seus (não mais) vindouros noventa e oito anos.

- Não foi, de todo, uma surpresa, sabe?... - titia sussurrou para mim, quando chegamos ao velório, misteriosa. – No último encontro que fizemos para jogar buraco, ela ameaçou nos assombrar se não a deixássemos dar as cartas... – disse, com o olhar sombrio - Todas sabíamos que ela sempre aproveitava para pegar as melhores cartas do baralho, mas nenhuma de nós falou nada... Eu sabia que algo estava diferente! Sabia!

Portanto, mesmo liberta do compromisso de assombrar titia e suas amigas pelo resto de suas partidas de baralho, Carmita nos trouxe até aqui, o único cemitério da cidade, durante o velório que começara na noite anterior e iria se prolongar até a manhã seguinte, quando se daria o enterro. E ali estava eu, às quatro da manhã, vagando pelo cemitério em busca de uma xícara de café.

Não... ainda não enlouqueci, meu caro. A questão é que, enquanto todas que se comprometeram a passar a noite ao lado de Carmita se lembraram de levar um recipiente de chá (mate, eucalipto, ervas e manjericão!), ninguém se ocupou em garantir um bom e necessário café para pessoas que, como eu, são movidas a cafeína e deliciosos torrões de açúcar. Portanto, após perguntar a Durval, o vigia, fui em busca do zelador das criptas, porque, segundo Durval, o vigia, ele sempre matinha uma preciosa garrafa térmica com café em seu dormitório.

A questão é que o dormitório do tal zelador ficava do outro lado do cemitério, e para chegar lá eu precisava atravessar todo o campo de lápides que resguardava os antigos moradores da cidade. E é por isso que eu estava ali, às quatro horas da manhã, no meio de um cemitério, em busca de café.

- Pois bem, senhor “mentalize e conquiste”... – murmurei, contrariada – Eu poderia denunciá-lo por dar ilusões a jovens desesperadamente congeladas como eu...

- Você não seria a primeira a se decepcionar com a vida, não é mesmo?!

Virei-me com tanta rapidez, que o pânico que me invadiu quando escutei aquela voz no meio do nada mal teve tempo de chegar em meu cérebro para ordenar que minhas pernas se movessem freneticamente o mais rápido possível para longe dali. Mas quando me deparei com a visão de um senhor de meia-idade, cabelos grisalhos mal alinhados e um sobretudo que muito provavelmente já pertencera a outra pessoa (dado os remendo e o tamanho, duas vezes maior que o pequeno indivíduo que o usava), sentado na beirada de uma das lápides, dei um suspiro profundo, aliviada, e falei:

- Minha nossa! Como o senhor me assustou!

Ele, que com uma faca e um pedaço de madeira nas mãos, moldando algum objeto, deu um sorriso de leve e falou:

- Ora... Pensou que fosse um fantasma?

Dei uma risada sem graça, e respondi, olhando para os lados:

- Bem, dado o lugar onde estamos, nunca se sabe, não é mesmo?!... Minha tia fala que não se pode duvidar do vento, só porque não o vemos soprar. Além disso, - falei – não é um horário muito estranho para o senhor estar aqui fora?

- Eu poderia dizer o mesmo de você, não é?! – disse, sem tirar os olhos do bloquinho de madeira em suas mãos.

- Eu estava procurando o zelador daqui.

- Pois você acaba de encontra-lo.

- Ah... Então é o senhor?

- Você parece um pouco decepcionada... – falou, com um certo tom de humor na voz.

- Não... Não me leve a mal... É que eu esperava encontrá-lo em seu dormitório, com uma boa xícara de café... – sorri, levemente sem graça.

- Ah... Entendo... Mas nesse horário, todos os dias, eu venho até aqui para esperar.

- Esperar?... – olhei em volta, confusa - O que, exatamente? – perguntei, já temendo estar diante de um zelador louco que o cemitério mantinha em atividade por consideração pelos anos de serviço prestados.

- Eu não deveria responder essa pergunta, da mesma forma que você não deveria fazê-la a mim...  – disse, sem tirar os olhos de seu trabalho – Afinal de contas, vivemos esperando, e esperamos viver numa constante perda de tempo por esperar.

- Que foi que disse?

- Todos nós vivemos nessa constante expectativa de que algo extraordinariamente maravilhoso aconteça conosco. Cultivamos uma vontade de que cada desafio que surja ao longo da jornada seja recompensado por conquistas grandiosas. Nos acostumamos a maldizer o sofrer, e superestimamos as alegrias, mesmo que momentâneas, tentando fazê-las durar a eternidade de nossas finitas existências. Nos esforçamos desesperadamente para afastar o sentimento de incompletude, ausência, pequenez, inutilidade que permeia os nossos dias, desejando alcançar um sentido para a nossa existência, afastando essa sensação de vazio que tão frequentemente invade o nosso ser. E assim, esperamos... esperamos que a vida se transforme em chuvas de conquistas que possam dar sentido aos sacrifícios que fazemos. Esperamos que os outros nos entreguem uma bandeja de felicidade, e que sejamos servidos por um banquete de realizações diários. Esperamos que a certeza de que estamos no caminho certo substitua o medo de arriscar, e falhar; e que o pânico por ter errado seja substituído pela sensação de que teremos novas oportunidades de acertar. Esperamos milagres, imediatos, e já. Esperamos, esperamos, esperamos... E permanecendo esperando, nos esquecemos de que a responsabilidade de receber conquistas da vida e toda, e unicamente, nossa. Nos esquecemos que o sofrimento faz parte do aprendizado, e que a felicidade não se baseia na alegria plena, mas na capacidade de sorrir diante as alegrias, bendizendo os degraus de evolução que se fantasiam de tristezas. Nos esquecemos que rir demais dói, e que precisamos de momentos de contemplação para escutar o nosso silêncio particular. Nos esquecemos que é o sentimento de incompletude que nos impulsiona a buscar um sentido na vida; que a sensação de ausência nos faz mover em direção ao melhoramento; a pequenez nos faz querer ser melhor, e a inutilidade nos impulsiona a sermos úteis e produtivos diante do mundo. Nos esquecemos que temos que agir diante a vida, para receber os frutos de nossos esforços em busca da sensação absolutamente maravilhosa de ser um, e não mais um, ser que se reconhece ator de sua própria jornada, e que modifica a vida de quem cruza as nossas pegadas na areia. Esquecemos que temos motivos diários para sorrir e agradecer, e mesmo assim nos intitulamos decepcionados com a vida, sem nos lembrarmos de que precisamos fazer por onde não decepcionar a nós mesmos. Porque esperar... Esperar só é válido quando lutamos para nos colocar no exato lugar onde o milagre realmente pode acontecer. Como agora...

E seguindo a direção para onde ele apontava, no único momento em que desviou o olhar de seu trabalho manual, me deparei com a mais incrível manifestação de cores e luzes que poderia existir. Era o amanhecer do dia, em uma verdadeira aquarela de raios solares que ousadamente despontavam do infinito, revelando um traçado de luzes alaranjadas com explosões de amarelo avermelhado, em um mar azulado de nuvens que se abriam para saudar a vida.

Com lágrimas nos olhos, emocionada pelo que estava presenciando, me virei para onde o zelador estava sentado, mas ele não estava mais lá. Olhei em volta, mas não o vi. Mirei novamente o espetáculo de cores que se descortinava à minha frente, e resolvi seguir para onde estava indo, querendo encontrar o dormitório do senhor não mais pelo café, mas para conversar e ouvir mais o que ele tinha a dizer.

Cheguei até o outro lado do campo do cemitério e vi um cômodo, pequeno mas bem conservado. Bati à porta e aguardei. Alguns minutos depois, um homem jovem, com aces de sono e um hálito que denunciava seu despertar recente abriu a porta. Falei:

- Bom dia, senhor. Estou procurando o zelador.

- Eu sou o zelador. O que você quer?

Intrigada, retruquei:

- Desculpe, creio que houve um engano... Procuro o zelador do cemitério. Um senhor de meia idade, com um sobretudo, cabelos grisalhos...

- Moça, eu sou o zelador daqui. Esse que a senhora está falando é o Tonho, antigo funcionário daqui que trabalhou por quase três décadas e morreu aqui mesmo, há uns sete anos. O pessoal gostava bastante dele. Em todo enterro ele era chamado para falar alguma coisa. Pelo que me falaram, ele conseguia dar um tipo de brilho ao momento de luto das pessoas. Se você quer saber, eu acho isso tudo uma besteira... Mas enfim... Gostavam tanto dele que o enterraram exatamente no mesmo lugar onde morreu. E se me der licença, eu vou voltar a dormir.

E fechou a porta.

Ainda atordoada pelo que eu tinha escutado, voltei por onde havia vindo e parei no local onde havia visto o senhor. O espetáculo de cores já estava se dissipando, e apenas um vento fresco da alvorada se mantinha firme. Olhei em volta e prendi a respiração quando vi, na lápide onde o “zelador” estava sentado, a inscrição: “Tonho Cosme da Silva... 1932-2010... Aquele que buscou a vida, e esperou... Eis que o milagre chegou”.

E baixando os olhos, notei um objeto na lápide. Me aproximando, percebi que se tratava uma flor de lótus.... de madeira. Virei o objeto e vi que atrás estava escrito, de forma quase imperceptível:

“Esperar só é válido quando lutamos para nos colocar no exato lugar onde o milagre realmente pode acontecer. E sempre há um lugar”.