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Pequeno grande príncipe...

20 de Novembro de 2022 às 14h45

Ana Cecília Novaes

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Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!

https://open.spotify.com/episode/77sg0LYrB4mnXIt5B0PL8F?si=14b9d34480e54e6d

             -Ui, ai... desculpe... com licença... perdão... – eu murmurava, enquanto tentava, bravamente, passar pela barreira densa de pessoas que se apertavam umas contra as outras naquele pequeno (mas devo admitir, aconchegante) espaço daquela livraria antiga. Creio que ninguém imaginaria que aquele dia quente e abafado iria terminar com uma forte tempestade, e por isso o abrigo dos despreparados sem guarda-chuvas (incluindo eu) foi o estabelecimento mais próximo da alameda principal da cidade que, naquele momento, sofria um transtorno de identidade, sem saber se era asfalto ou um rio caudaloso e encharcado.

            As pessoas se acomodavam como podiam, considerando que a livraria, apesar de pequena, tinha não somente estantes grandes demais para o ambiente, posicionadas entre estreitos corredores para, suponho, aproveitar ao máximo o espaço; como também pilhas de livros velhos espalhados em todos o cantos, o que dificultava (e muito) a competição por um pedacinho de chão livre onde pudéssemos aguardar o dilúvio se dissipar. E ali estava eu, passando entre bolsas enxarcadas, barrigas proeminentes, pés sensíveis e muita impaciência, tentando alcançar algum lugar onde o ar não era tão concorrido quanto na entrada da livraria. Devo admitir que estava prestes a desistir e pronta para deixar que meu corpo fosse levado pela multidão aonde quer que fossem quando vi, por entre um braço musculoso e uma barba ruiva, um espaço vazio no canto mais fundo da livraria!

            Sentindo minhas energias serem renovadas, segui determinada até o local, ignorando reclamações e xingamentos atrás de mim à medida em que eu ia pisando em calos e me esgueirando entre escolioses e muito mal humor. Quando finalmente cheguei até o espaço, me permiti inspirar profundamente o ar empoeirado e antigo, me deliciando por ter uma boa quantidade de oxigênio só para mim, quando ouvi ao meu lado uma risada.

            Olhei na direção do som com dificuldade, pela penumbra que estava naquele ponto da livraria, e notei que atrás de uma das várias pilhas de livros estava um carrinho com um vulto que, alegre, se movia com energia. Cativada pela risada que vinha de lá fui me aproximando gradualmente até que meus olhos conseguiram realmente ver que o carrinho era, na verdade, uma cadeira de rodas. E ao olhar a criança que ali estava, me surpreendi.

            Se tratava de um menino, provavelmente com quase dez anos, mas o corpinho tão pequeno não era compatível com as feições que o seu rostinho revelava. As perninhas absurdamente finas estavam contraídas em um ângulo diferente, e os bracinhos abrigavam mãos que, também contraídas, se moviam com animação. No rosto a boquinha torta e as feições proeminentes não se destacavam tanto quanto seus olhos que, me observando, transbordavam alegria e genuinidade, e era só isso que eu conseguia captar dele quando percebi que, sim, que aquele pequenino tinha paralisia cerebral. Eu estava hipnotizada por aquele olhar vivo e repleto de energia quando ouvi uma voz atrás dele:

            - Ele gostou de você!

            Desviei o olhar e percebi que atrás da cadeira de rodas estava sentada no chão uma mulher. Seus cabelos negros e lisos pareciam ter saído de uma pintura clássica, e seu olhar, doce e alegre, parecia um retrato dos olhos do pequenino à minha frente, não deixando dúvidas que era ela a sua mãe. Instintivamente sorri e respondi:

            - Ele é encantador! Tem um sorriso que toca a alma!

            Olhando para o pequenino com doçura e acariciando seu cabelo, ela respondeu:

            - Ele é incrível... Meu pequeno guerreiro de luz! – e dando um suspiro profundo, completou: - Já lutou mais batalhas do que nós, mas segue sorrindo, e me ensina a sorrir de volta para cada desafio da vida.

            - Imagino que não deve ser fácil para vocês... – comentei, algo tímida, mas sentindo uma conexão tão forte com eles que deixei que a alma falasse...

            Ela, me olhando com suavidade, respondeu:

            - Ah, com certeza foi um choque quando o médico nos informou que todas as complicações que eu havia tido durante o parto tinham deixado sequelas no nosso pequeno príncipe. Eu senti o chão se abrir aos meus pés, e lembro que meu marido ficou em tamanho estado de choque que não conseguiu parar de chorar por horas. Afinal, tínhamos tantos sonhos com ele e para ele, e naquele momento a notícia nos revelou que a realidade seria muito diferente. Mas nunca imaginaríamos que seria uma realidade tão preciosa! Nosso pequeno príncipe enfrentou várias internações desde pequeno, mas mesmo nos momentos mais desesperadores ele achava uma forma de nos olhar profundamente e sorrir. Ele sorria com a alma, nos dizendo silenciosamente que tudo ia ficar bem. É absurdo porque sendo nós, seus pais, era ele quem nos acalentava com sua doçura, e nos dava a fé que precisávamos para seguir. Sempre que saíamos das internações ele parecia nos lançar um olhar ousado, como quem dizia “eu não disse a vocês?”, e sempre que a porta do hospital se abria ele, de seu carrinho, erguia os bracinhos finos e por vezes marcados por tantas injeções e procedimentos, e balançava com alegria em direção ao céu, como que saudando a vida com euforia. Devo admitir que eu chorava mais nesses momentos do que dentro do hospital, mas era um choro de gratidão, porque não sei como fomos ser tão presenteados com esse pequeno professor ao nosso lado.

            “Nosso pequeno príncipe nos mostra como a vida é preciosa em seus pequenos detalhes, parecendo se encher de alegria e satisfação pela simplicidade do sopro do vento, antes da chuva, ou pelo movimento único de uma borboleta que vem pousar em sua cadeira. Ele personifica a bravura de quem entrega para o universo tudo aquilo que não pode controlar, e quando sente que está muito pesado, cerra os olhos e permanece em um silêncio sublime, como que se conectando com quem tem a força que ele precisa para seguir. Não vivemos contos de fadas, é claro, e há dor e sofrimento em muitos momentos da jornada, e eu sei que ele sente. Mas ele escolhe, e isso é muito nítido, agarrar-se ao que é bom. E com ele aprendemos que se não podemos controlar o que nos ocorre de ruim, podemos definir como vamos encarar cada um desses desafios. Com garra, suavidade, alegria, determinação e fé. Ele nos mostra que a vida é, na verdade, muito simples, pois se diante todos os desafios que ele viveu ele persiste com gratuidade e alegria, é porque temos inúmeros instrumentos no universo para sermos felizes e termos gratidão, e isso basta. Ele nos mostra diariamente que não foca em suas limitações, mas em suas possibilidades, e não podendo andar até nós para nos abraçar, nos envolve com amor em seu sorriso. Não podendo traduzir em palavras seus sonhos, nos faz viajar em seus olhos de fé. Não podendo ser aquilo que um dia, de forma prepotente e infantil sonhamos, ele se mostra, dia a dia, o filho que nunca achamos que mereceríamos, o nosso pequeno grande príncipe.”.

            Eu não havia percebido que meus olhos estavam em lágrimas, mas não eram de tristeza, mas de gratidão. Gratidão por ter tido a oportunidade de receber aquele sorriso, aquele olhar, aquela energia arrebatadora e tão genuína, que me acompanha até hoje. Lembro que a tempestade já havia passado há algum tempo, e a livraria voltara a ficar vazia, exceto por três vultos que, no canto mais afastado, riam juntos ao folhear um livro antigo repleto de figuras e lindas mensagens, mas a mais preciosa eu já havia aprendido ali, e levaria em meu ser com carinho. Afinal, “Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós''.