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Oceano

30 de Julho de 2022 às 17h25

Ana Cecília Novaes

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Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!

https://open.spotify.com/episode/6fVbblRSWHhzsF9y2Dy34B?si=96f8ac650dec4ead



            - Anda, menina! Corre e pega para mim!!! – gritava titia, em desespero!

        Em meio as arfadas, calor e muita areia no rosto, só pude responder um breve “Estou tentando!!!” antes de sentir todo o ar dos meus pulmões me abandonarem naquela empreitada insana. Eu tentava manter os meus olhos abertos enquanto o vento forte chicoteava toda a areia daquela praia no meu rosto, me perguntando como, pelo amor de Deus, eu havia chegado naquela situação.

            Eu havia passado quase um mês tentando convencer titia a fazer um passeio na praia, e por mais que ela tivesse passado a vida toda dizendo sobre “meu desejo cândido absolutamente incompreendido de conhecer o mar e ver o horizonte além dele”, foi difícil negociar onde o bendito de seu gato ficaria, enquanto fôssemos passear. É óbvio que a razão e o bom senso passam bem longe de titia Gertrudes, dando tchauzinho na rua do absurdo e virando a esquina da avenida da insanidade, principalmente quando se trata de seu venerado gato Garibaldi Feliciano. Mas honestamente eu imaginava que um simples e bom argumento do tipo “ele pode fugir e se perder na praia” fosse ser o bastante. Óbvio que não.

Depois de quase 30 dias de discussão, lá estávamos nós três na praia, sim, eu disse três: titia altamente elegante em seu maiô anos 30 e seu chapéu praiano, segurando um lindo guarda-sol florido; e eu com um mochilão nas costas, uma bolsa de quitutes em um ombro e a cestinha de passeio de Garibaldi por sob o outro. Não preciso nem dizer que os quitutes eram para o gato, claramente.

Havíamos acabado de chegar e titia se deslumbrava com a linda vista do mar enquanto eu, tentando me equilibrar, procurava um lugar para sentarmos na areia. Havia encontrado uma sombra gostosa e coloquei toda a bagagem na areia, e enquanto esticava meu corpo, tentando recuperar a forma natural da minha coluna, que estava torta com tanto peso (principalmente o de Garibaldi, que claramente não precisa de tantos quitutes), ouvi ao meu lado um miado amedrontado.

Sentindo todo o meu corpo se arrepiar, me movi praticamente em câmera lenta, me deparando com um Garibaldi Feliciano estatelado de medo diante um caranguejinho que havia parado à frente de sua cestinha de passeio. Já prevendo o que iria acontecer, fui me movendo lentamente, para não assustá-lo ainda mais, na esperança de pegá-lo no colo, mas não cheguei a tempo. No primeiro movimento que o bendito do caranguejinho fez em sua direção, o  gato saltou da cestinha de passeio e se pôs a correr pela praia.

Naquele instante eu não sabia se brigava com titia por não ter colocado a coleira nele ou por criar um bicho tão medroso a ponto de fugir de uma criatura dez vezes menor do que ele, mas não tive muito tempo para pensar quando escutei os gritos desesperados de titia, me mandando correr atrás dele.

E lá estava eu: areia, suor, calor... a minha sensação era que a cada passo que eu dava o gato dava dez, e eu me perguntava como um gato tão gordo poderia ter tanto físico para correr daquele jeito. Eu estava prestes a perde-lo de vista quando, de repente, tropecei em alguma coisa e cai na areia, comendo metade da praia na queda (não me julgue pelo exagero).

Olhei para trás e vi que havia tropeçado em um violão, e já estava mentalmente xingando quem, em santa consciência, deixaria um violão no meio de uma praia, quando escutei atrás de mim:

- Então essa é sua dona, bichano?

Olhei para trás e me deparei com um homem alto, queimado de sol, feições cansadas mas suaves, cabelos com os primeiros sinais de tempo, e olhos tão verdes quanto o mar. Em seus braços Garibaldi Feliciano repousava calmo, claramente sentindo-se seguro.

Levantando e batendo a areia da roupa, me preenchendo pela sensação de alívio por vê-lo bem, deixei de lado a irritação por ter caído e me dirigi ao homem, sorrindo aliviada:

- Nossa, muito obrigada por tê-lo pego! Esse é o gato da minha tia, e são absolutamente inseparáveis! Nem imagino se alguma coisa acontece com ele, Deus me livre!

- Às vezes a vida separa corações para mostrar que o amor é capaz de sobreviver às barreiras do tempo e das limitações físicas...

- Como? – perguntei, sem entender aquele comentário aparentemente aleatório, e olhando para trás, preocupada com o trajeto de volta que eu teria fazer com Garibaldi.

- A vida nos leva aos desafios mais extremos, para aprendermos que a força transborda de nosso ser na medida em que nos permitimos cair, sofrer, aprender, reerguer, e seguir. – disse ele. - Nos momentos em que nos achamos pequenos demais para vencer, nos transformamos em nossa melhor versão, se permitimos que a vida faça a nossa metamorfose... e a dor, infelizmente, às vezes é o caminho, já que somos, muitas vezes, ignorantes para aprender com o amor.

Magnetizada pela sua fala, foquei toda a minha atenção naquele ser tão peculiar que, naquele momento, com Garibaldi no colo, falava olhando para o mar de uma forma tão intensa e, ao mesmo tempo, tão distante dali...

- Eu tive de aprender com a dor... a dor de ter o amor da minha vida tomado de mim por uma doença que o levou tão rápido, e de uma forma tão súbita, que mal tivemos tempo de dizer adeus... Como dói quando nos percebemos humanos, pequenos grãos de areia em meio a esse grande universo de forças e vontades muito superiores às nossas. Por um longo tempo, um recorte infinito no meu coração, me vi sem rumo. Me vi descalço em meio ao pedregulho, tentando escalar montanhas de espinhos, sentindo uma dor excruciante enquanto me via sendo lançado para o vale de meu próprio desespero. Me isolei de tudo e de todos, vim para essa praia e em uma noite, mirando esse horizonte e me sentindo mergulhado em uma tristeza tão lancinante, cheguei a pensar em me juntar a ele, deixando que o oceano me levasse em sua direção. Foi quando vi, ao meu lado duas pegadas. Nenhuma antes, nenhuma depois. Apenas do meu lado, um par de pegadas, como se alguém estivesse ali, comigo. E ele estava. Eu podia senti-lo, e nesse instante me lancei na areia em prantos, e deixei que minhas lágrimas lavassem a minha alma, assim como cada onda que se aproximava de mim lavava meu coração, mas não apagava as pegadas ao meu lado. Não sei dizer quanto tempo me demorei ali, só sei que, ao abrir meus olhos, o amanhecer despontava, tímido, mas vívido, forte, e perene. E ali, naquele instante, percebi que continuávamos caminhando, lado a lado, mas em planos diferentes. Seguíamos, firmes, crescendo e construindo uma jornada que, um dia, iria se cruzar novamente. Então era preciso seguir. A saudade é uma dor das alegrias vividas e lembranças criadas, mas não pode ser uma algema. É preciso seguir, e o motivo que estava perdido, eu havia reencontrado ali, naquele instante, naquele amanhecer.

“Hoje vim me despedir dessa praia, pois vou seguir meu caminho em outros campos. Venho com gratidão, pois que aqui morri e renasci em mim mesmo, em uma verdadeira metamorfose. E é por isso que trouxe o violão... Para homenagear esse oceano com a canção da minha caminhada com o meu amor, da minha transformação, do meu renascimento, e agora, do meu voo. Afinal...


Duas lagartinhas, apaixonadas

Passam suas noites e madrugadas

Cheias de fome, elas continuam caminhando

E navegando em um mundo que muda e continua mudando

 

Duas lagartinhas param o vento

Enquanto se abraçam, com sentimento

Elas continuam crescendo, sem saber quando

Procurar algum abrigo, o tempo continua mudando

Elas são inseparáveis e o tempo continua mudando

 

Ai, lagartinhas, não esperem mais

Vocês precisam se distanciar para crescer e voltar

Continuarão seguindo em frente

Vem milagres, vem crisálidas

É preciso partir e construir seu próprio futuro

 

Ai borboletas, não esperem mais

Vocês precisam se distanciar para crescer e voltar

Continuarão seguindo em frente

Já são milagres, saindo de suas crisálidas

Vocês têm que voar, têm que encontrar seu próprio futuro