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O Espetáculo

23 de Setembro de 2021 às 07h50

Ana Cecília Novaes

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   Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!

https://open.spotify.com/episode/6c1waYYJpKx4diwNMneX17?si=fe2848486cd44d4c

        - Pelo amor de Deus, moço!!!! Não dá para andar mais rápido?!!! – falei em desespero, sentindo meu coração querendo sair pela minha boca e apertar o acelerador daquele táxi.

            - Senhora, eu já disse... estou fazendo o melhor que eu posso... – balbuciou o pobre motorista, com quem eu nem ousaria ficar brava, já que a pequena figura à minha frente mal conseguia alcançar o volante com seus pequeninos braços. Não vou negar que quando entrei às pressas no táxi, já atrasada para a apresentação daquela noite, cheguei a questionar a peculiaridade daquele ser: um homenzinho com esbelto bigode e um chapéu cuco peculiar me encarando com olhos que se tornaram bizarramente enormes por detrás de seus espessos óculos de garrafa, me perguntando qual era o destino. Quando falei que teríamos que atravessar a cidade para chegar até o teatro municipal, onde titia estava me aguardando com os ingressos para o espetáculo da noite, ele rapidamente secou a gota de suor que escorrera de nervoso em seu pequeno rosto e, engatando a marcha, pôs seu possante carro da década de 40 para correr o máximo que conseguia.

            “Você devia ter saído mais cedo!!!!”, eu já ouvia titia murmurar em meus pensamentos, olhando aflita para fora da janela enquanto ouvia uma buzina irritada lançada contra nós, quando meu pequeno e amável motorista cortava todos os veículos à nossa frente, na tentativa de me ajudar. Me segurando no banco e olhando as horas a cada cinco segundos, realmente senti o peso da culpa me esmagar ao pensar que se eu não tivesse ficado tão ocupada escolhendo entre um salto agulha e uma plataforma de camurça, teria saído bem mais cedo e já estaria sentada com titia no teatro, a essa altura do campeonato.

          - Você está indo para o show? – perguntou o senhor à minha frente, claramente tentando me distrair enquanto o carro andava a 2 quilômetros por hora em um bendito engarrafamento na cidade.

            - Sim... – respondi sem prestar muita atenção nele, tentando apenas mover o carro à minha frente com o poder da minha mente.

            - Ouvi falar que é uma banda muito boa... – continuou ele, enquanto limpava as grossas lentes de seus óculos com um lenço, aproveitando que o carro havia parado completamente com o trânsito.

            - Para falar a verdade, não conheço... – respondi com um suspiro, cedendo à insistência de diálogo do velhinho simpático. – Fiquei até surpresa da minha tia me convidar para ir, já que ela normalmente não acompanha essas músicas de hoje em dia...

            - Levei um pessoal mais cedo para lá e comentaram que a cantora principal da banda tem um jeito diferente de se apresentar. Faz com que a plateia se sinta parte do show, ou algo assim, como uma energia tão forte que parece hipnotizar todo mundo, não importa a idade... Pelo menos foi o que falaram... E olha que as músicas nem são dela! Ela apenas reinterpreta algumas canções...

            - Hum... – murmurei. – Não sabia disso. Tinha ouvido falar só que eles se apresentam bem raramente, e por isso esse desespero para ver o show.

            - É, você tem sorte da sua tia ter conseguido ingressos. Estão esgotados há meses...

            - Sim... – comentei, sentindo a culpa ser derramada sobre mim novamente. – Estamos chegando? – perguntei, sentindo que a minha maquiagem já se desfazia, de tanto que eu passava a mão no rosto, ansiosa.

            - Para falar a verdade, estamos há quatro quarteirões de lá, mas esse trânsito... – falou o homem, colocando a cabeça para fora do carro e avaliando a fila enorme de veículos à nossa frente, que se perdia de vista.

            - Verdade? – exclamei, apressada! – Bem, tome aqui então! – disse, lhe passando o valor indicado no taxímetro e um pouco mais, considerando o estresse que lhe causei. – Muito obrigada mesmo, mas vou a pé daqui! Chego mais rápido!

            E descendo correndo, tive apenas tempo de ouvir um simpático “Bom espetáculo!” atrás de mim, quando me pus a correr.

            Sentindo o vento desarrumar meus cabelos e o suor definitivamente destruir minha maquiagem, concentrei-me apenas em não tropeçar em nenhum buraco ou paralelepípedo, pensando porque diachos eu não escolhera a plataforma para vir, já que com ela com certeza estaria sendo mais rápido correr, comparando com esse lindo salto agulho que, no momento, apenas me torturava a cada passo. Quando vi a construção do teatro surgir à minha frente, deixei escapar um grande sorriso de alívio, que logo se desfez quando vi titã furiosa em pé diante a entrada principal...

            - Pelo amor de Deus!!!!! – bradou ela. - Onde já se viu tamanho absurdo?!!! Isso são horas?!!! E por Cristo, menina! O que aconteceu com você?! Está um trapo!!! – disse horrorizada, enquanto me olhava de cima a baixo.

            - Atraso... taxi... a pé... – consegui murmurar entre uma arfada e outra, tentando recuperar o fôlego que havia ficado uns três quarteirões para trás.

            - Mas o quê?... ora, deixe para lá! – disse titia, enquanto começava a andar em direção à entrada. - Vamos entrar que já começou e não quero perder nem mais um minuto do show!

            Tentando acompanhá-la mas ainda sentindo doer cada parte do meu pé, a segui até o grande salão principal daquela magnífica construção, de onde já conseguíamos ouvir a música que estava sendo tocada no recinto ao lado...

            Naquele instante comecei a entender o que o taxista havia falado... cada palavra da música que chegava até mim estava sendo entoada com tamanha energia, emoção e intensidade que eu já não sentia dor ou cansaço. Era apenas a música... e eu... E quando adentramos o ambiente, me deparei com centenas de pessoas absolutamente extasiadas, assim como eu, com a melodia que parecia vir de uma alma tão conhecida...

 

...

 

            Já acomodadas em nossos lugares, eu e titia acompanhamos com gosto a plateia que, com energia, aplaudia a música que terminara. De onde estávamos eu conseguia ver que a cantora secara lágrimas que escorreram naturalmente durante a canção e, sorrindo, agradecia com delicados movimentos da cabeça os aplausos que recebia. Quando a multidão silenciou, ela se aproximou do microfone e falou:

            - Muito obrigada a todos! Eu sou absolutamente encantada por essa música “Rise up”de Andra Day, porque parece me pegar no colo e me embalar em um ninar de fortaleza... Em meio àquele cansaço de alma, aqueles calos do coração que, andarilho, já percorreu a vida como um carrossel que, entre altos e baixos, acabou perdendo a garra e a força para lutar... Em meio a esse sentimento de ter perdido a si próprio, uma mão mergulha em meio ao mar de nós mesmos, onde afogados aguardamos resgate, e nos ergue. Nos ergue em meio ao caos de nossos próprios pedaços, e nos mostra o quanto somo joias incandescentes desse grande todo. E juntos nos erguemos como o nascer do dia, enfrentando medos, enfrentando dores... E assim o fazemos, juntos, e nos fortalecemos, sendo capazes de, nós mesmos, mergulharmos as mãos para erguer tantos outros que, à nossa volta, afogados, aguardam que, alto como as ondas, alguém se erga, mil vezes se for necessário, por você... por mim... por nós.

            Um instante de silêncio se fez enquanto cada um se sentia resgatado, e se permitia inebriar por aquele sentimento de pertencimento e completude... E ela continuou...

            - A próxima canção é Stand Up de Cynthia Erivo, meus queridos, fala sobre a nossa jornada... A minha, a sua, na nossa caminhada em meio a esse infinito de desafios que se fazem verdadeiros degraus de ascensão para um novo lar... Andamos, pés descalços, rostos virados para o Sol, tantos pesos em nossos ombros... Temos olhos atrás de nossas cabeças porque ainda corremos de nossas próprios fantasmas, mas fazemos o que podemos, quando podemos, enquanto podemos, por nós... por todos nós... enquanto as nuvens se esparsam e as estrelas preenchem a noite com luz de esperança e destino.

“É quando vamos nos levantar e levar todos conosco... Juntos vamos indo, para nosso novo lar, onde verdadeiramente seremos livres de nossas próprias correntes de orgulho, de medo, de raiva... Deixamos para trás nossas falsas expectativas e abrimos mão daquilo que não podemos controlar, nos entregando de corpo e plena alma para o movimento contínuo e espontâneo da vida... Sabemos dentro de nosso mais profundo íntimo o que há depois da curva, e pode até ser difícil enfrentar, mas não vamos deixar de tentar, porque sempre vai haver motivos e razões para continuar a lutar...

“Juntos estamos indo... estamos construindo um novo lar... escute a liberdade chamando, nos chamando a continuar... eu posso sentir em meus ossos, em minha alma, em meu coração... eu vou preparar um lugar para você... e juntos estaremos... livres.”

 

...

 

            As lágrimas escorriam abundantes enquanto eu aplaudia, junto centenas de desconhecidos que, naquele instante, se faziam companheiros de uma jornada silenciosa. Não sabíamos os nomes, e provavelmente nunca iríamos nos recordar das faces, mas daquele momento em diante não estávamos mais sozinhos. Fazíamos parte de uma força muito maior do que nossos medos, nossas lágrimas, nossas feridas... Nos uníamos naquele instante, em lágrimas, a um propósito que deixara de ser individual e egoísta, mas coletivo e absolutamente despretensioso. Juntos nos sentíamos muito mais fortes, e sabíamos que aquela força iria permanecer enquanto nos permitíssemos sermos invadidos por aquela energia de absoluta entrega e fé.

            Se permitindo mergulhar junto com todos nós em meio a essa sensação de pertencimento, ela, de olhos fechados, se permitia embalar pelo silencio que abraçava e confortava a todos nós. Foi quando falou...

            - Para encerrar essa noite, gostaria de cantar para vocês uma das orações em forma de canção que mais me emociona. Se chama “Oceans” do grupo Hilsong United. Eu sempre acreditei que as mais belas manifestações divinas são aquelas que não precisam de precedentes ou pretextos... Esse grandioso criador se faz presente nos mais singelos momentos de nossas vidas, como uma onda suave que acaricia os grãos de areia docemente, nunca se afastando de forma que ela sempre sabe que ali está sua presença, sua onipotência, e sua força. E quanta gratidão! Tamanha é a gratidão que preenche minha alma quando cerro meus olhos para sentí-Lo! Sentir Sua presença invadir o meu ser, esse ser que é tão imperfeito mas que ainda sim se faz digno de recebê-Lo por inteiro! E assim eu converso com Deus... me conecto no mais íntimo do meu ser e deixo que lágrimas de alegria escorram, e digo para Ele: Tu me chamas por cima das águas, Pai... Ao grande desconhecido onde meus pés podem falhar... E lá Te encontro no mistério, em oceanos profundos, e sei que minha fé vai prevalecer. E eu chamarei pelo Teu nome, e fixarei os meus olhos acima das ondas, porque quando oceanos subirem, a minha alma repousará no Teu abraço... Porque eu sou Teu e Tu és meu...

“Tua graça abunda nas mais profundas águas... Tua mão soberana será minha guia, e onde meus pés podem falhar e o medo me cerca, Tu nunca falhaste e não o farás agora... Eu chamarei pelo Teu nome e fixarei os meus olhos por acima das ondas, porque quando oceanos subirem, a minha alma repousará no Teu abraço... Pois eu sou Teu e Tu és meu.

“Espírito, guie-me até onde minha confiança não tem limites... Me deixe andar sobre as águas onde quer que Tu me chames! Me leve mais fundo do que os meus pés pudessem um dia chegar, e minha fé será feita mais forte na presença do meu Salvador...”

 

...

 

            Não sei precisar como aquela noite terminou, em que momento, e como cheguei em casa... posso apenas dizer que naquele dia, naquela noite, algo se transformou completamente em mim... Algo em mim dizia que eu não veria aquele show novamente, mas eu não estava preocupada... Como uma onda que, uma vez iniciada, não tem como ser interrompida, eu sentia que minha alma estava transformada... Eu me sentia resgatada de mim mesma, completamente erguida... de pé, eu caminhava, com passos seguros, junto aos meus, que somos nós, rumo ao horizonte por trás desse imenso oceano cósmico... Passamos todos, em uníssono, a cantar em uma só voz.