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No tempo que o tempo durar...

22 de Julho de 2019 às 17h00

Ana Cecília Novaes

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                - SeLá que ela está molta?

                - Não seja ridículo! Gente morta não ronca alto desse jeito!

                - E gente moLta Lonca?

                - E eu lá vou saber? Nunca vi uma pessoa morta...

                - Até agoLa...

                - Eu já disse! Ela não está...

                Abri os olhos no instante exato de ver duas sombras darem um salto para trás. Ainda me adaptando aos raios de sol que pareciam fazer uma competição sobre quem conseguiria me cegar mais rápido, tentei mudar de posição quando percebi que não sentia minha perna... Já sentindo o pânico invadir cada poro do meu corpo, cogitei a possibilidade de estar realmente morta... Foi quando uma sensação de tremor invadiu a minha perna (até então tão morta quanto eu poderia estar), e minha consciência foi ficando mais clara... Lembrei que estava caminhando já há algum tempo numa estrada de terra que conectava a estação de trem a lugar algum (ou a alguma cidadela cuja distância estava muito além da minha singela aptidão física ou atlética), quando resolvi parar um pouco sob uma copa de árvore para recuperar o fôlego. Usando minha mala como apoio, devo ter cochilado um pouco (ou dormido profundamente, o que deve ter gerado alguns episódios de... hum... respiração alta e ruidosa... tudo bem, eu ronquei), e acabei prendendo a circulação da minha perna na posição nada confortável em que estava.

                Dei um grande suspiro de alívio ao perceber que mina perna estava tão viva quanto eu, e olhei ao redor, com a visão já adaptada à intensa claridade daquela região. Foi quando percebi que as duas sombras que havia visto eram, na verdade, duas crianças com os olhos extremamente arregalados, me encarando a uma distância (potencialmente) segura. Se tratava de uma menina, que deveria ter em torno de sete anos, e um menino bem menor que ela, talvez dois anos mais jovem. A postura protetora da garota, se colocando à frente dele, não conseguia esconder o medo que ela também estava sentindo, mas tentava esconder. Já ele, por detrás do corpo protetor dela, exalava mais curiosidade do que temor, com seus grandes olhos cristalinos, contrastando com sua pele queimada pelo sol. A diferença de comportamento tão evidente entre os dois não era capaz de esconder a clara semelhança nos traços das faces de cada um, nos cabelos cor de cobre que compartilhavam e no desenho dos lábios de cada um: eles eram irmãos.

Sorrindo algo constrangida por ter sido flagrada em meio ao meu sono (algo ruidoso), falei, no tom mais inofensivo que pude encontrar em meio à rouquidão típica de quem fica algum tempo em silêncio (roncar não é necessariamente uma emissão vocal comunicativa, venhamos e convenhamos):

- Olá...

                - O-oi... – respondeu o garoto atrás da irmã.

                - Quieto! – ralhou a irmã, olhando brevemente para trás, mas logo se voltando para me encarar, provavelmente com receio que eu desse um salto e os atacasse de surpresa. Não posso culpa-la... Sei bem a minha aparência quando acordo e... apenas digamos que não é o meu melhor momento do dia...

                - Mas ela disse oi... – ele disse, provavelmente achando que estava sussurrando e que eu não poderia ouvi-lo daquela pequena distância... como eu admiro a ingenuidade das crianças... – Mamãe disse que quando alguém diz “oi”, a gente tem que Lesponder.

                - Não quando a pessoa que disse pode atacar a gente, seu tonto!

                - Mamãe já disse paLa você não me chamar de tonto! – falou o pequeno, fazendo beiço e ensaiando uma cara de choro.

                - Ora, por favor! Deixe de ser tão criança! É por isso que eu não gosto de te levar para as missões comigo... Você é muito medroso, e chora por tudo!

                - Não estou choLando, não! – falou o menino, secando rapidamente a única lágrima que ele não conseguiu segurar. E endireitando o corpo, respirou fundo e saiu de trás da menina, dizendo: - e vou te mostLar como sou mais coLajoso que você!

                - O que? Não, espere! – gritou ela, mas não há tempo de impedir que ele se aproximasse e parasse diante de mim, com ambas as mãozinhas na cintura e estufando o tórax (menor que o diâmetro da minha mala). Segurei o riso, e ele falou:

                - Sou um gLande gueLLeiLo, e estou numa missão de Lesgate com a minha iLmã. – conseguiu falar entre as fortes inspirações de evidente temor. - Não tenho medo de você!

                Mantendo minha seriedade (com dificuldade, devo ressaltar...), disse:

                - Eu reconheço um guerreiro quando vejo um, e você me parece o maior e o mais corajoso deles! – Não pude deixar de notar o sorriso que despontou no canto de seus lábios, e percebi que sua respiração ficava mais serena a cada instante. – E posso garantir que não há motivo para ter medo de mim. Sou completamente inofensiva, exceto pelos meus roncos, que provavelmente devem desrespeitar alguma lei de silêncio...

Deixando finalmente que o sorriso culminasse em uma risada gostosa e espontânea, o garoto deixou sua posição de guarda. Foi quando percebi que ele, na verdade, não estava somente com as mãos na cintura. Na verdade, segurava um pequeno chaveiro de coelho que estava pendurado na lateral de sua calça. Uma vez mais confiante, soltou-o e virou para a irmã (quando percebi que ele estava com uma pequena mochila nas costas), dizendo:

- Eu não disse que ela eLa legal?

- Não estou muito certa disso, ainda... – disse a menina, mas já se aproximando lentamente de mim. Percebi que ela estava com boné um tanto grande demais para sua cabeça, mas mantinha o rosto sério e o olhar desafiador para mim. Também carregava uma mochila, um pouco maior que a do garoto. Ficando agora lado a lado com ele, me perguntou, desconfiada: - o que está fazendo dormindo no meio de uma estrada?

- Eu desci da estação de trem e estava seguindo essa estrada de terra até... bem... até onde ela poderia me levar.

- E porque não tinha ninguém te esperando na estação? – ela perguntou, e eu me senti em uma sala de interrogatório. Com o coração palpitando e o suor descendo pela testa, me perguntei como uma criaturazinha de sete anos poderia intimidar tanto assim...

- Porque não conheço ninguém por aqui...

- E porque você viria para um lugar onde não conhece ninguém? – ela lançou outra pergunta, que chegou até mim como a ponta de uma navalha.

- Porque a gente só encontra o que não sabia existir quando procura no lugar onde não sabíamos poder encontrar...

- Como é que é? – ela disse, enrugando a testa e deixando a postura inquisidora de lado.

- PaLa mim paLece uma boa Lesposta. – disse o garoto, sentando à minha frente enquanto tirava a mochila das costas. Dela tirou uma garrafa de água e bebeu alguns bons goles. Foi quando percebi que uma criança cuja altura mal devia alcançar a minha perna fora mais esperta do que eu e trouxera água para uma caminhada numa estrada deserta, sob um sol escaldante.

- Ora, você não entendeu nada do que ela disse! – bradou a menina. – E não beba tanta água, porque ainda temos um longo caminho pela frente.

- Não seja boba... – falou o garoto, tirando também uma banana da mochila, partindo em três e me dando um pedaço, e estendendo outra para a menina, que pegou a contragosto. – A gente pegou muita coisa! – E virando-se para mim, disse, em tom de aventura: - Nós vamos encontLar o papai!

- Você não sabe mesmo ficar calado, não é? – ralhou a garota, mas já em tom de rendição, sentando-se ao seu lado enquanto comia a banana.

Mastigando vagarosamente meu valioso pedaço de banana (minha última refeição havia sido no trem, e não, meu caro, eu também não havia tido a brilhante ideia de trazer comida... em minha defesa, imaginei que a estrada seria bem mais curta do que estava sendo...), observei que na borda do boné da menina havia um nome masculino escrito... foi quando percebi...

- Esse boné é do seu pai? – perguntei.

- Sim... – ela respondeu, algo pensativa. – É um pouco grande demais, mas eu só estou guardando para ele, sabe? Vou devolver assim que encontrarmos ele, e vai servir direitinho.

- Ele me deu esse chaveiLo da soLte, olha! – disse o menino, apontando para o item pendurado na lateral de sua cintura. – Disse que ia me pLoteger enquanto ele estivesse foLa!

- E ele está fora há muito tempo? – perguntei, engolindo o último pedaço da banana.

- Ele trabalha viajando, e faz algum tempo que foi da última vez. – a menina disse. - A gente sempre vai se despedir dele na estação de trem, e ele faz do mesmo jeito: me entrega o boné, e fala para eu cuidar de tudo enquanto ele está fora. Ele diz: “Você é minha grande menina, e tem tanta força quanto uma raiz de árvore, que aguenta vento, chuva e sol, mas nunca desiste de lutar, porque sabe que por pior que seja a batalha, sempre vai te deixar mais forte. E no final, a estrada percorrida vai te levar para um lugar muito melhor do que aquele de onde você veio. Lembre-se, minha grande menina, cicatrizes só fazem parte do percurso, então não se preocupe com elas. É a linha de chegada que merece sua total atenção.”. E quando ele volta, e estamos na estação esperando por ele, eu corro para os seus braços, ele me carrega no colo, e fala: “Você é minha pequena menina, e tem tanta doçura quanto uma flor que está a descobrir o mundo para desabrochar. Não tenha pressa de chegar, porque a travessia é deliciosa. Viva cada instante, aprenda em cada precioso momento, e seja minha doce pequena menina, deixando que a primavera perfume sua vida no tempo que o tempo durar.”

- Na despedida, papai me dá esse chaveiLo – comentou o menino – e fala bonito também... – olhando para a irmã, pede: - como são as palavLas dele?

- Ele diz: “Cuida desse chaveiro da sorte, se lembrando que nós somos quem fazemos a nossa própria sorte. Meu grande guerreiro, não deixe que a vida faça o seu destino, mas faça você a sua própria sorte. Sempre podemos fazer algo daquilo que fazem com a gente, basta decidirmos navegar, e não deixar que o rio nos leve. Lembre-se, meu grande guerreiro, você é o responsável pelas suas pegadas.”. E quando volta, ele se agacha, dá um grande abraço e diz a ele: “Você é meu pequeno guerreiro, e traz dentro dessa grande alma a suavidade de um pássaro que está aprendendo a voar. Não tenha pressa para traçar seus voos rasantes, porque com a altura vem a responsabilidade. Desfrute o que há de melhor no mundo, meu pequeno guerreiro, e dê o seu melhor também, deixando que as suas próprias pegadas na vida no tempo que o tempo durar.”

- Eu não entendo ainda todas as palavLas, mas sei que é bonito, você não acha? – ele me pergunta, com os olhos cheios de vida e sonho.

- Sim... – murmuro, emocionada com o que estou ouvindo, uma mescla de singeleza e tamanha força...

- Mas o que é mais bonito é o que ele fala paLa mamãe, não é? – ele diz, agora olhando para a irmã. Percebo que ela está com o olhar entristecido, e as lágrimas já embargando sua respiração. Mas ela diz, olhando com carinho para ele:

- Ele fala com a nossa mãe: “A ti não entrego nada, já que contigo já está o meu coração. Meu grande tesouro, resguarda em tua alma a certeza de que é meu o privilégio de viver cada dia com uma joia rara, cuja aquarela de força e doçura colore a minha vida e traz sentido aos passos que dou na escuridão do infinito, sem medo de me perder pois que tenho em minhas, as tuas mãos. Ao teu lado construo o meu paraíso, e contigo deixo os meus pequenos tesouros, na certeza de que onde quer que eu vá, levo comigo o mapa de volta aos seus braços.”. – Parando por um instante para secar as lágrimas que insistiram em escorrer, ela continua: - E quando ele retorna e a vê na estação, não correr em sua direção. Anda bem devagar em sua direção, até que chega até ela, passa a mão suavemente em seu rosto, fecha os olhos, e diz: “Minha preciosa joia de amor... Eu poderia perder o caminho, mas meus passos saberiam como retornar a ti. A visão poderia me faltar, mas eu não teria dúvidas de tua face... E mesmo que todos os sentidos me faltassem, e eu voasse em uma dimensão diferente de ti, não haveria distância entre os nossos corações, pois que eu vivo em ti, e tu faz vida em mim. Por isso, viva, viva cada instante plena e intensamente, pois que assim me faz vida e razão de ser, onde quer que eu esteja. Afinal, para nós, não há tempo que o tempo possa durar ou findar, pois é tua e minha a eternidade de amar.”.

                E tendo dito isso, a menina pôs-se a chorar. Um choro de alma, intenso e quente, desesperado, e tão real. Me aproximei de seu corpinho agra tão frágil, e a abracei, doando tudo o que eu tinha a oferecer: meu silêncio.

                O garoto olhava para nós com o rosto indagador, questionando:

                - Mas polque você está choLando, sua boba? A gente está indo econtLar ele, não é? – e, olhando para mim, completou: - Ela está com muita saudade dele, sabe? É que no dia que a gente foi espelhar ele na estação de tLem, ele não apaLeceu, mas sim um moço vestido de policial dizendo que teve um acidente. Eu não sei bem o que ele disse paLa a mamãe, mas ela começou a choLar e disse que o papai não ia mais voltar. Foi um acidente muito séLio, ela disse, e não iam nem conseguir tLazer o coLpo do papai de volta. É cLaLo que não é veLdade, e eu sei que a mamãe só disse isso polque estava muito tListe e com saudade dele. Mas eu sei que ele vai voltar, não é? – perguntou, olhando para a irmã com o rostinho repleto de tanta luz e esperança que meu coração se despedaçava a cada palavra. Ela ficou em silêncio, e deu mais um soluço, e ele continuou, olhando para mim, sorrindo: – Sabe poLque eu sei? PoLque eu sinto aqui, olha! – disse, apontando para o coração. – O papai sempLe me disse que enquanto a gente sentisse ele aqui dentLo, ele ia estar por peLto. Então eu sei que ele está por ai... Só pLecisamos pLocuLar no lugar ceLto! Foi por isso que saímos nessa missão! Convenci minha iLmã a iLmos atLás dele. Não podemos deixar de pLocuLar...

                Absolutamente espantada com o que havia acabado de ouvir, olhei para a menina que me encarava num misto de tristeza e desespero. Percebi que ela carregava nas costas não só a mochila, mas a esperança de um garotinho que amava tanto. Ela carregava o brilho no olhar e o sopro de vida que vinha com essa certeza, mesmo que não fosse real. Ela não conseguira mostrar-lhe a verdade, pois seria por demais doloroso para ambos. E por isso decidira carregar consigo o silêncio, junto com a esperança do irmão. Esgotada pelo choro ou, talvez, pela longa caminhada física e emocional que tinha trilhado, sussurrou em meu ouvido:

                - Por favor, não...

                E eu a apertei mais forte entre os meus braços, quase como se tentando  dividir aquele peso da responsabilidade inerente a quem tanto ama, e não quer ferir... O que eu deveria fazer, o que eu poderia falar? Eu não sou boa com as palavras, não como ele era... Ele... E subitamente tudo fez sentido para mim. Afastei-me com gentileza da garota, olhei para aquele pequeno rostinho à minha frente e sorri, com lágrimas escorrendo, dizendo:

                - Pequenino... lembra que você disse que não entendia tudo que seu pai dizia, mas achava bonito? – ele fez que sim com a cabeça, e eu continuei: - Sabe porque você acha bonito? Porque, na verdade, você entende muito mais do que imagina, não aqui... – apontei para sua cabeça – mas aqui... – e apontei  para o seu coração. – E quer saber de uma coisa, esse é o melhor guia que você poderia ter. Você sente o seu pai ai, porque ele continua bem pertinho de você, e sempre vai estar, mesmo que não consiga vê-lo ou ouvi-lo, porque não precisa de olhos ou de ouvidos... apenas do amor que une vocês dois. – Observei lágrimas escorrendo por seus olhinhos, e uma fresta de um adulto que não queria acordar tão cedo naquele corpinho me olhou, em súplica, e perguntou:

                - M-mas eu n-não queLo p-peLder ele...

                Sorri com tristeza, envolvendo-o com carinho, e disse:

                - Ah, você não vai, pequenino... Não perdemos aqueles que realmente moram no nosso coração. Nunca...

                E por fim, ele chorou. Chorou soluços, chorou saudade, chorou amor. E eu percebi que, afinal, ele já sabia. Mas observei também que, naquele choro, havia alívio. O alívio da esperança do reencontro no tempo que o tempo durar... Ficamos ali, os três, envolvidos por um sentimento de serenidade e... paz. Foi quando eu disse:

                - Quer saber? Vocês dois me parecem grandes guerreiros, mesmo, mas preciso que interrompam a missão de vocês para me ajudar... Preciso chegar até a cidadela de onde vocês vieram, mas estou tão fraca... não tenho água e nem comida, e posso cair no meio da jornada. Seria uma honra ter dois guerreiros me ajudando a chegar até lá... Será que vocês poderiam me ajudar?

                A menina olhou para mim com os olhos brilhando, e um discreto sorriso despontando na face. Foi como se retirasse toneladas de suas costas... e de sua alma... O garoto fungou, limpou o rostinho, e com o ar de responsabilidade, disse:

                - É... acho peLigoso deixar você por ai... Podemos levar ela paLa a vila e... bem... acho que podemos voltar paLa casa, né? – disse, olhando para a irmã, que sorriu, assentindo e dizendo:

                - Sim... Nossa missão acabou. – falou, acariciando com amor o rosto do irmão. - Vamos em busca de outras, no tempo que o tempo durar...

                Sorri.

                - Ótimo! Agradeço bastante! – eu falei, levantando e batendo a poeira da roupa. – A propósito, lá de onde vocês vêm tem alguma cafeteria? Tenho o pressentimento que vou precisar de muitas xícaras de café para o que está por vir...