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Lágrimas de um piano...

23 de Fevereiro de 2021 às 16h00

Ana Cecília Novaes

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Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!


- Ui, desculpe… Ai, sinto muito… Ups! Foi sem querer! Rã, rã… senhor, eu ia me sentar ai… ah, deixa para lá! Ei, com licença… só vou dar uma apertadinha aqui e… Ai, meu pé!!! - Gritei, tentando salvar o resto do meu corpo daquele “aperta aperta” insano da cafeteria. Honestamente eu não imaginava que um simples café machiatto me renderia tantos pisões nos pés e alguns muitos xingamentos. Não era minha culpa, afinal, que o vôo havia se atrasado e que a mesquinha companhia aérea havia dado como cortesia (por cortesia entenda: tentativa de nos manter ocupados e calados) um voucher (sim, eu disse um único voucher) de bebida e salgado para todos os passageiros na menor e muito provavelmente mais quente cafeteria do aeroporto. Para ser sincera eu nem com fome estava, mas sabe que eu não recuso uma boa xícara de café, e eu estava decidida a persuadir a garçonete a trocar meu direito ao salgado por uma xícara extra dessa bebida dos deuses. E foi por isso que me submeti a passar em meio à linha de fogo de passageiros e malas e carrinhos e mochilas e calor e muito mau humor que se acumulavam naquele pequeno espaço.
Tendo conseguido a heróica conquista de finalmente entrar na cafeteira, já estava me rendendo à desconfortável idéia de ter de sentar na minha própria mala quando vi um assento, um único assento quase imperceptível no canto mais afastado da cafeteria, atrás do balcão central de pedidos. Caminhei até lá o mais rápido que pude, com receio de que algum outro desesperado também tivesse visto aquele oásis de qualquer um que tivesse passado duas horas em pé na fila do check-in para escutar que teríamos de esperar mais uma hora e meia.
Finalmente tendo alcançado o tal lugar, me sentei sentindo um alívio tão grande que me permiti um delicioso suspiro, fechando os olhos e já sentindo na minha boca o gostinho quente e saboroso da minha sonhada xícara de café. Foi em meio a esse êxtase que ouvi, vindo da minha direita, um som de piano.
Olhei para o lado, me deparando com uma cortina pesada de veludo, e cerrei a testa, curiosa. Absolutamente envolvida por aquele som tão intenso e preciso, levantei-me vagarosamente, quase que embalada por cada uma das notas que ressoava por detrás daquele cortinado, sem ao menos me importar com a possibilidade de perder o meu assento. Naquele momento, não importava. Meus sentidos, na verdade, estavam como que absortos, pairando pelo ambiente. O som das pessoas atrás de mim ia reduzindo a cada passo que eu me aproximava da cortina, e o mundo parecia ter congelado, exceto por meu coração que, acelerado, chegava a doer, tamanha a intensidade da emoção que me envolvia naquele momento. Ergui vagarosamente a mão para empurrar a cortina para o lado, com receio de ferir o som que vinha por detrás dela, e gradualmente foi se formando à minha frente a fonte daquele som surreal.
Tratava-se de um belíssimo piano de cauda preto, exuberante e magnífico, cuja força parecia envolver todo aquele pequeno ambiente, o qual parecia ser uma ante-sala da cafeteria. O negro instrumento exalava fortaleza e magnitude, contrastando de uma forma peculiar com a mulher que, sentada atrás dele, fazia com que cada nota ressoasse do piano de forma impecável.
Seus cabelos brancos e as marcas de expressão de seu rosto denunciavam a idade já avançada, que nada parecia impactar a força e destreza de suas mãos que, ágeis e enrugadas, percorriam cada tecla com tamanha familiaridade que parecia ser aquele instrumento uma extensão de seu próprio corpo. Suas vestes alvas e delicadas pareciam embaladas suavemente pelo som produzido, e seus olhos, cerrados, apenas davam mostras silenciosas da entrega de alma que existia naquele momento.
Entrando vagarosamente, deixei que a cortina se fechasse atrás de mim e fiquei ali, hipnotizada e encantada, sentindo minha alma transbordar, como se cada nota contasse uma história que eu nem conhecia, mas que me era tão familiar. Cerrei também os meus olhos, sentindo que a emoção se acumulava e ameaçava transbordar, quando notei que o som havia cessado.
Abri lentamente meus olhos e me deparei com o olhar atento e sério da mulher à minha frente. Imóvel, ela apenas me observava, e sua respiração era tão imperceptível que eu poderia dizer que a única garantia de que não passava de um boneco de cera era que eu a havia visto, momentos antes, tocando o piano.
Sentindo meu rosto corar e me sentindo extremamente desconfortável com aquela situação, tentei dizer:
- Er…. Annnn… Boa noite! - E tendo como resposta o silêncio, continuei. - Hum… a senhora toca muito bem! - Abri um sorriso amarelo, e nada. - An… Acho que nunca vi alguém tocar com tanta emoção… deveriam colocá-la tocando lá na frente, onde todos os clientes poderiam…
- Você não deveria estar aqui. - ela disse, e sua voz era tão fria e dura que quase as senti esbofeteando meu rosto.
- Er… m-me desculpe, e-eu… eu não sabia que não poderia entrar… estava sentada ali fora e…
- A cortina serve para manter as pessoas fora. - falou, me interrompendo.
Sentindo meu corpo inteiro enrubescer, apressei-me em dizer, ao mesmo tempo em que me virava para abrir o cortinado e sair dali o mais rápido possível.
- Me desculpe mesmo, não quis incomodar… É que a música estava tão encantadora que não me contive e vim até aqui. Fui muito inconveniente, me perdoe… Se eu apenas encontrasse essa bendita fresta… - murmurei, apalpando toda a extensão do cortinado em busca da abertura que me permitira entrar, mas sem sucesso.
- Você não vai encontrar a saída.
- Estava bem aqui…. - disse, mal escutando a sua fala, me perguntando como um cortinado tão pequeno poderia esconder uma fresta tão evidente. - Um instante que já encontro e deixo a senhora em paz!
- Por Deus, menina! Pare! - Bradou ela em minha direção, me fazendo virar novamente em sua direção com os olhos arregalados. - Você está presa aqui, assim como eu! E não há nada que possamos fazer! - completou, tocando em apenas uma tecla do piano, e deixando que o som ressoasse pelo ambiente.
- Como assim? - Indaguei. - Basta acharmos a abertura desse cortinado! O outro lado da cafeteria está logo ali…
- Tente, se quiser, mas eu desisti há muito tempo… - comentou, voltando a tocar vagarosamente as teclas do piano, como se transportada para um tempo e lugar que eu não podia ver ou alcançar.
Sem conseguir entender o que estava acontecendo, olhei ao redor, tentando achar outra saída na ante-sala, quando notei, na parede atrás da mulher e seu piano, uma galeria de fotos antigas. Me aproximando, pude notar que se tratava da inauguração daquela cafeteria, a época da construção do aeroporto. Algumas já desgastadas imagens revelavam grupos diversos de pessoas que ali haviam estado, acompanhando aquele lugar ao longo dos anos. Notei que na maioria das fotos havia o piano atrás, com sua fiel companheira, e sentada ao lado dela, uma menina. Me aproximei um pouco mais das fotos e pude observar que ao longo das fotos a pequenina ia crescendo, se tornando uma linda criança, sempre sentada ao lado da pianista, cujo sorriso transbordava. Segui a sequência de fotos até a última, na qual a menina não mais estava presente, e a pianista deixara de lado o sorriso para assumir as feições sérias e amarguradas que eu havia conhecido.
- Ela era um anjo na Terra… - ouvi atrás de mim sua voz fragilizada. - Nascera como um raio de sol, trazendo vida e encanto por onde passava. Desde o momento em que a senti dentro de mim eu sabia que ela vinha com uma energia diferente, e foi exatamente assim. Vivacidade, energia, luz! Todos aqui se encantavam com sua doçura e sua capacidade de ficar durante toda a minha apresentação ao meu lado, quietinha, ora com os olhinhos fechados, parecendo sentir na sua alma cada nota que eu tocava. Creio que foi porque durante toda a minha gravidez eu tocava e cantava para ela em meu ventre, e posso jurar que ela respondia do lado de lá… - Uma pausa deu espaço a um profundo suspiro nostálgico, e ela continuou: - Todos se encantavam com ela, com nossa harmonia, nosso amor… Essa cafeteria virava uma festa, com a sua energia invadindo cada canto dessas paredes, hipnotizando a todos! Mas eles não sabiam que a magia acontecia mesmo era à noite, quando eu a colocava para dormir, cantando a canção de ninar que ela escutara durante toda a gestação. Posso jurar que o céu se abria naqueles instantes, e as estrelas se aproximavam para iluminar seu rostinho entregue ao meu amor em forma de melodia…
“Ela era o som da minha vida… Meu farol, minha vibração, meu sorriso, minha voz, meu coração… e foi exatamente o que senti quando me contaram que ela havia sido atropelada ao atravessar em direção à escola por um motorista alcoolizado. Meu coração simplesmente parou. E desde então, não pulsa alegria, sentido ou vida em meu ser. Perdi a energia que me fazia vibrar cada um que vinha nessa cafeteria, e deixei que enterrassem junto com seu pequenino corpinho a vivacidade que irradiava do meu ser quando eu tocava. A partir de então, não mais consegui trazer alegria aos clientes, porque das notas do meu coração só jorravam tristeza. O público foi ficando cada vez mais reduzido, mas eu não me importava. Só queria me fechar em meu próprio casulo, e sentir a dor da falta, da ausência, e da saudade.
“E foi isso que fiz, um dia, quando já quase no final do dia, vendo o último cliente sair sem nem lançar um olhar sequer para esse piano que chorava suas notas com intensidade, fechei a cortina com força, e me deixei cair por entre o tecido de veludo, chorando. Chorei saudade, chorei dor, chorei revolta. Sinto que fiquei em meio as lágrimas por tanto tempo que me perdi nelas, pois quando me levantei para sair, não mais encontrei a saída. Procurei exaustivamente, até simplesmente desistir e me sentar aqui, com meu único companheiro, aguardando a minha hora.
“Faz tempo que não sinto fome, não sinto sono, não sinto a vida… E não me importo mais, na verdade. Apenas existo, e é o bastante, porque não há melodia na partitura da minha vida sem a presença da minha pequena."
Com os olhos transbordando em lágrimas, aproximei-me vagarosamente da mulher, e sentei-me ao seu lado. Pude sentir a energia de sua solidão, sua tristeza, sua saudade. Respirei fundo, e com delicadeza, toquei em sua mão, fazendo-a parar de tocar por um instante. Olhei em seus olhos, e sentindo uma energia transbordar do meu ser, como se faíscas envolvesse meu ser em uma harmonia transcendental, falei:
“Ah, minha querida… ainda há tanta vida, tanta energia, tanto amor transbordando da sua alma, por meio da sua música! É um dom de poucos, capaz de cativar, elevar, curar! Me emocionou de uma forma tão real que senti como se meu corpo se desconectasse da minha alma, e eu fosse transportada a um oásis repleto de tudo aquilo que eu não sabia que me fazia falta. Você tem esse dom de levar as pessoas de volta a si mesmas! O fato é que, em meio a sua tristeza, sua angústia e sua saudade, você se perdeu de si própria, deixando-se ir junto com seu pequeno raio de sol…
“Eu não vou negar, eu seu que dói. Que é como um naufrágio sem fim, uma fonte inesgotável de martírio… Eu sei o quanto se tornou difícil sorrir, sonhar, respirar… Eu sei o quanto sua alma clama por misericórdia, pedindo mais um segundo, só mais um segundo para senti-la novamente… seu cheiro, seu sorriso, sua luz. Mas a verdade é que você não precisa ver o raio de sol para saber que ele está ali, bem pertinho, lhe aquecendo, aconchegando, e chamando a mais um raiar do dia. Você não precisa tocá-lo para se deixar embalar pela energia renovadora, e pela esperança de que esse novo amanhecer será muito melhor. Ele simplesmente existe, e a única coisa que você precisa fazer é abrir a janela e se permitir tocar por ele.
“Abra a janela do seu coração, e sinta que sua pequenina continua a lhe fazer companhia, de alma para alma, esperando apenas que você ergua as cortinas da tristeza e se entregue novamente à vida. Ela precisa que você continue a acreditar, a sorrir e a amar a vida, como você a ensinou a fazer, porque somente assim ela poderá lhe aquecer e aconchegar a cada amanhecer, lhe lembrando que não é preciso ter medo da escuridão. Ela sempre estará por perto para iluminar o seu horizonte."
Parando de falar, notei que as minhas se misturaram às lágrimas dela, que escorriam abundantemente pelas mãos que, envelhecidas, revelavam o tempo em que ela ficara prisioneira de si mesma. Após algum tempo, ela abaixou as mãos e as colocou sobre as minhas, dando um profundo suspiro que, dessa vez, não traduzia solidão… mas libertação. Lançando com timidez um sorriso singelo, olhou para mim e disse, com leveza na alma:
- Você quer ouvir a música de ninar que eu tocava para ela? Estou um pouco enferrujada, faz algum tempo que eu não canto… Mas acho que é hora de voltar…
- Nada me faria mais feliz nesse momento. - Respondi, abrindo um sorriso e soltando com delicadeza suas mãos, que naturalmente se posicionaram por sobre as teclas do piano, iniciando uma verdadeira pintura melodiosa.
Era impressionante como cada nota ressoava de seu coração, vibrante e viva! E à medida que a canção se desenrolava, pude ouvir uma vozinha bem baixa, cativante, sussurrando a música ao meu lado. Nem me preocupei em olhar sua origem. Apenas sorri, observando que a cortina à nossa frente ia se abrindo, vagarosamente, revelando a vida que, espectadora, se emocionava junto comigo, aplaudindo de pé.