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Jornada

01 de Junho de 2022 às 23h10

Ana Cecília Novaes

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Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!


https://open.spotify.com/episode/6C2HplOVDFRrTcH1UPf90c?si=605f64ba059345fe


 - Calma, titia! Eu só vou buscar um café e já volto!

         - Por Deus, menina! Parece que você toma café o dia inteiro! Isso com certeza não é saudável, escute o que digo! A Dolores do clube de baralho falou que a prima da irmã da vizinha dela, aquela dos gatos, não a do papagaio, disse que café em excesso...

         - Ok, titia, ok... – murmurei enquanto saia do quarto de hospital discretamente, deixando uma titia claramente mais nervosa e falante que o habitual. Não podia julgá-lo, pobrezinha, pois sabia que aquela era a sua forma de expressar o medo que estava sentindo pelo exame ao qual seria submetida no dia seguinte, logo cedo. Quando o médico havia lhe dito que seria necessário dormir no hospital no dia anterior, titia Gertrudes estava exultante, dizendo que finalmente as meninas do grupo de baralho tirariam o foco da chata da Otaviana e seu ciático constantemente dolorido e dedicariam a devida atenção a ela. No entanto, quando o dia finalmente chegou, percebi que a cada instante titia ficava mais tensa, nervosa e, por consequência, muito mais falante que o habitual, fazendo de vítima qualquer um que se atravesse a passar pelo seu campo de visão.

         Sabendo disso, não pude julgar quando passei em frente ao posto de enfermagem do andar de titia e vi a equipe que estava assumindo o plantão tirar na sorte (ou no azar) quem seria o responsável por cuidar dela naquela noite. Afinal, seriam longas horas até o dia seguinte para todos nós, já que titia se recusava terminantemente a pregar os olhos, e por essa razão eu simplesmente PRECISAVA de café.

         Segui pelo corredor do hospital com destino certo, já que após algumas várias visitas àquela máquina de café ao longo de toda a tarde, desde que havíamos chegado, já havia me familiarizado com o percurso ao que eu decidira chamar de “poço da felicidade”. Acenei para alguns rostos que havia conhecido naquele mesmo dia, já que herdei o intrigante gene de maritaca de titia, e fui caminhando sem pressa, quando ouvi risos e fortes gargalhadas vindas de uma porta entreaberta.

Eu teria seguido o meu caminho como uma pessoa normal não fosse a energia tão gostosa que vinha da tal sala, e como uma boa enxerida resolvi espirar o que estava acontecendo. Me aproximei vagarosamente e vi, por entre a fresta, um grupo com alguns adolescentes, provavelmente de idades semelhantes, sentados em cadeiras dispostas em semicírculo, e um homem adulto, à frente, diante deles, com uma caixinha de som ao seu lado. Os jovens falavam algo entre si e riam com gosto, e o homem de vez em quando levantava e puxava um deles para o seu lado, se movimentando de forma espontânea e junto com o som que saia da caixa.

Não pude deixar de sorrir, de maneira tão natural, porque a energia que eles liberavam era absolutamente contagiante. Vi uma menina se levantar e puxar outra para dançar, enquanto um rapaz batia palmas e fazia uma espécie de percussão com as mãos e o seu corpo. Foi após alguns minutos que notei que todos eles estavam com lenços ou bonés na cabeça, inclusive o homem, e só quando um dos adolescentes tirou o chapéu em falsa reverência para a menina ao seu lado, percebi que nenhum daqueles adolescentes, na verdade, tinha cabelos.

Me sentindo invadir um espaço que era deles, fui dando alguns passos para trás na tentativa de me afastar discretamente, quando subitamente colidi com a lixeira do corredor e cai, junto com ela, fazendo um grande estardalhaço. Sentindo meu rosto virar um pimentão, tentei me apoiar para me erguer quando notei à minha frente uma mão estendida.

Olhei para cima e vi o homem, com os jovens atrás dele me encarando com curiosidade. Constrangida, aceitei a mão dele e me ergui, batendo as mãos contra a roupa e levantando a lixeira que, graças a Deus, estava vazia, me poupando o trabalho de ter que pegar todo o lixo do chão. Enquanto fazia isso, escutei atrás de mim:

- Você é a nova orientadora, não é?! – uma voz jovem me perguntou.

Olhei para trás, confusa, e enquanto passava álcool nas mãos, tentei me justificar sem parecer tão enxerida quanto eu havia sido:

         - Eu?! Ah, não! Na verdade... eu... hum... – comecei, mas me perdendo com as palavras, sendo novamente resgatada pelo homem à minha frente.

         - Ela é a visitante do nosso programa, pessoal! – disse ele, abrindo um largo sorriso para mim e piscando com um dos olhos, em uma silenciosa parceria. – A diretoria do hospital disse que viria alguém para avaliar uma das nossas reuniões.

         Vi os jovens assentindo com as cabeças cobertas com lenços ou bonés, algo desconfiados, mas logo se dissiparam ao entrar para a sala novamente, conversando naturalmente. Olhei para o homem, de forma interrogativa, e ele respondeu, em volume baixo, para não correr o risco dos meninos escutarem:

         - Eles não se sentem confortáveis quando estranhos ficam olhando pela porta o que estão fazendo. – Falou, de forma gentil. – Sei que não fez por mal, mas para não romper o grande avanço que estamos fazendo hoje, vamos evitar o estresse, não é mesmo?

         Concordei, mais constrangida ainda pelo meu comportamento. Sorrindo de forma gentil e percebendo a minha vergonha, ele falou:

         - Não se preocupe, isso ocorre com frequência, e por essa razão nos reunimos aqui à noite. Sei que não fez por mal, e por isso dei essa desculpa, mas agora você vai ter que entrar e participar do restante da reunião com a gente!

         - M-m-as... eu nem sei do que se trata! – Respondi, sentindo meu coração acelerar enquanto ele me conduzia para a sala.

         - Não se preocupe! É simples! Esse é um grupo de jovens com câncer em estágio terminal, e hoje estamos falando sobre morte.

         Senti meu coração parar e achei que aquilo era uma grande piada de mal gosto que ele estava fazendo comigo, mas quando entrei na sala percebi que cada jovem tinha diante da sua cadeira uma folha com a seguinte frase escrita: “Vida e morte são apenas caminhos. Como percorrê-los, é decisão minha”. Comecei a pensar que tipo de atividade bizarra era aquela, e parecendo ler meus pensamentos, o homem chamou a atenção de todos e falou:

         - Pessoal, eu estava explicando para a nossa visitante sobre o tema de nosso encontro de hoje. Sobre como percebemos a vida como um presente, uma oportunidade a ser aproveitada em essência, mas como também enxergamos a morte como trajeto a ser percorrido com a mesma garra e a mesma honra. A maioria das pessoas desvaloriza o processo de morrer, não percebendo que o choro de despertar de um recém-nascido dialoga intensamente com as lágrimas de despedida do processo de morrer. Processo... sim, porque vida e morte são caminho, ambos percorridos em espaços paralelos de tempo, pois a cada dia em que vivemos, percorremos um passo a mais rumo à nossa despedida dessa realidade que nomeamos como estar vivos. E não há nada de errado em perceber isso, pois dessa forma passamos a respeitar ainda mais os instantes presentes nesse universo tão incrível e repleto de oportunidades, sabendo que há um tênue, mas belíssimo equilíbrio entre vida e morte em cada segundo da nossa existência. Encarar a morte nos direciona a um movimento de gratidão diário, pois que somos chamados a mergulhar profundamente nas vivências que tanto valorizamos e amamos em nosso processo de viver. Porque, no final do dia, sendo vida e morte dois lados de uma mesma moeda, o que nos faz estar em um lado ou em outro não é a presença ou a ausência de um corpo físico, mas a simples possibilidade de manifestar de formas específicas aquilo que temos de mais vivo em nosso ser: o amor.

         “O sofrimento oriundo da morte vem da vivência de uma ausência. Sente-se falta do calor de um toque, da força de um abraço, do som de um sorriso, da beleza de um olhar, do sabor de um beijo, do cheiro de um colo... sente-se falta, e sofre-se por ausência. E se descobríssemos que não há ausência verdadeira, no ato de amar? E se o toque, o cheiro, o gosto, o olhar, o som permanecessem tão vivos que fosse possível sentí-los no âmago de nosso ser? Isso, meus queridos, é a força do amor. É a magia do permanecer, apesar e acima de tudo, porque é impossível romper laços que são invariavelmente eternos. Essa é a chave que conecta os dois lados da moeda, vida e morte: o amor.

         “E é por amor, em nome do amor, e pelo amor que cada um de nós está aqui, sorrindo diante as dores, compartilhando medos e se fortalecendo diante o desconhecido. Para que façamos transbordar esse amor para aqueles que nos cercam, em vida, de forma a serem sempre embebidos dessa energia, mesmo diante a nossa ausência. É fazer com que permaneça o calor de um toque, a força de um abraço, o som de um sorriso, a beleza de um olhar, o sabor de um beijo, o cheiro de um colo, seja na vida ou na morte, pois se trata apenas de duas faces de um mesmo espelho. Estando do lado de quem vê, ou do lado de quem reflete, estamos, sempre, presentes, e nunca deixaremos de estar.”

         - E quanto fica mais leve saber que tudo é jornada, passagem, transição... – falou uma das meninas, com os olhos brilhando de emoção, me tomando pelas mãos e me conduzindo até o centro da sala, e tocando na caixinha de som. – Quando percebemos que podemos nos permitir ser humanos, sofrer, chorar, gritar! Porque diante cada dor, sempre haverá uma mão estendida a nos acalentar, a nos guiar, a nos erguer diante nós mesmos...

 

Quando eu chorei, e as lágrimas caíram

O coração pesado se tornou

Fiquei ali, sozinho, no silencio

Você chegou, e então me abraçou

 

O seu amor levou-me até as montanhas

Me fez voar planalto pelo mar

Foi ali no alto dos teus ombros

Que eu aprendi, sou forte pra lutar

 

No mundo aqui, a luta continua

São corações cansados de chorar

Mas quando estou contigo fecho os olhos

E posso ver o céu a me esperar

 

O seu amor levou-me até as montanhas

Me fez voar planalto pelo mar

Foi ali no alto dos teus ombros

Que eu aprendi, sou forte pra lutar

 

O seu amor levou-me até as montanhas

Me fez voar planalto pelo mar

Foi ali no alto dos teus ombros

Que eu aprendi, sou forte pra lutar

 

O seu amor levou-me até as montanhas

Me fez voar planalto pelo mar

Foi ali no alto dos teus ombros

Que eu aprendi, sou forte pra lutar

 

Que eu aprendi, sou forte pra lutar

 

Percebi que havia fechado os meus olhos e deixado que a menina me embalasse ao som da música. Ao abrí-los, deixei que lágrimas escorressem pelos meus olhos e vi que todos os outros jovens estavam à nossa volta, nos abraçando, em uma verdadeira corrente de união e amor. Do outro lado da sala o homem, apoiado na parede, sorria e deixava que lágrimas de emoção também escorressem.

Cada um vagarosamente foi se abraçando individualmente e se retirando da sala, seguindo para seus quartos de enfermaria. Fiquei sozinha com o homem que se aproximou, e falou:

- Você se saiu muito bem!

- O trabalho que você faz aqui com esses jovens é incrível! – Falei, secando as lágrimas do meu rosto. – Como consegue falar tão dentro da alma deles?

- Bem, creio que lá no fundo sei exatamente os medos que estão vivendo, e no final do dia só precisamos de alguém que nos diga que não estamos sozinhos. Sempre haverá quem caminhe com a gente.

E se retirando da sala, fez um breve aceno e seguiu pelo corredor. Ainda me sentindo extasiada pelo que havia presenciado, demorei alguns minutos até conseguir dar alguns passos em direção à porta, mas a alcancei há tempo de ver o homem retirar o próprio boné e a jaqueta larga que vestia, revelando a cabeça raspada e um corpo extremamente magro. Em segundos ele virou o corredor e sumiu.

Não saberia dizer quanto tempo fiquei ali, sentindo aquela energia de cada um daqueles jovens, e de todos eles juntos. Só sei que daquele dia em diante, eu fiz questão de fazer transbordar essa mesma vibração a todos os que cruzaram o meu caminho, porque independente da jornada de desafios que se vive, todos precisamos de alguém que, com amor, por amor, e pelo amor, caminhe lado a lado, nessa tenra mas tão valorosa passagem entre vida e morte,  entre morte e vida.