Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!
- Que absurdo, que ousadia, que calamidade! É o fim dos tempo, definitivamente!!!! - bradou titia, enquanto abraçava de forma protetora sua bolsa de onde só se conseguia ver dois olhos assustados encolhidos.
- Titia, por favor… A senhora está assustando e esmagando o pobre do Garibaldi! - murmurei entre os dentes, tentando ser o mais discreta possível.
- Eu??? Assustando?!!! Meu probrezinho não precisa de ajuda para ficar assustado! Olha em volta! Olhe onde estamos!!!
- É apenas um metrô, titia… não há nada demais…. - murmurei novamente, sentindo o nervosismo escorrer por minha testa em forma de suor.
- O que?!!! - grunhiu ela, em um tom esganiçado o suficiente para fazer com que alguns olhares desconfortáveis se virassem para nós. Com um olhar piedoso e gotas abundantes de desespero escorrendo pelo meu rosto, sorri constrangida em um pedido silencioso de desculpas, enquanto ela continuava em alto e bom som: - Faça-me o favor! Evidente que aqui estamos sujeitos a perigos inimagináveis, sem contar à contaminação possivelmente fatal! Nem posso imaginar quem já sentou nesse mesmo banco que eu, o suor… os germes… aaah!!!! - murmurou, encolhendo-se mais ainda enquanto apertava com uma força sobrenatural sua bolsa contra seu corpo, fazendo escapar um miado sufocado de dentro dela.
Sentindo minha face corar, olhei em volta desesperada, esperando, ou melhor, rezando para que ninguém tivesse ouvido aquele comentário de titia, mas tarde demais… à nossa frente uma mulher a encarava tão seriamente, claramente ofendida pelo comentário, que agradeci profundamente quando escutei o anúncio da estação onde iríamos descer e puxei titia rapidamente para fora, com receio de sermos chutadas dali por uma multidão revoltada pela clara falta de bom senso de titia Gertrudes (para variar…).
"Mas é claro, onde eu estava com a cabeça?”, perguntei a mim mesma enquanto andava firme pelos corredores da estação, puxando uma titia desengonçada que, com seu salto de boneca e seu chapéu cuco, trombava na grande maioria das pessoas que, apressadas, provavelmente só desejavam chegar em seus destinos… vivas. É claro que aquela ideia de trazer titia para conhecer o coração da cidade seria um grande erro, mas eu obviamente não sou boa em ler as entrelinhas do universo. Quando comentei que iria até lá e titia revelou que depois de anos morando ali ela nunca havia ido ao centro daquela cidade, eu deveria ter percebido que uma catástrofe estava por vir quando, após convidá-la para me acompanhar, a vi saindo correndo da sala, em plena euforia, para escolher um modelito adequado para seu gato, Garibaldi Feliciano, que iria adorar o passeio. Devo admitir que segurei uma risada quando vi o pobre do gato de olhos multicoloridos encolhido na bolsa da titia, com um gorrinho feito especialmente por sua dona, provavelmente se perguntando quantas vidas ainda lhe sobravam para aguentar viver aquilo.
Mas agora já era tarde demais. Já estávamos ali, todos os três, e o que me restava era tentar encontrar uma forma de distrair titia enquanto eu poderia me aventurar por aquelas ruas cuja história eu estava ansiosa para conhecer. Havia notado, afinal, que depois de tanto viajar em busca de sentido por tantas cidades diferentes, de todas as formas possíveis, conhecendo os mais diversos tipos de pessoas, eu nunca havia me aventurado pelas ruas que deveriam ser tão familiares para mim, já que passara meses com titia, em sua cidade natal, desde a juventude. Quantas histórias deveriam ter por ali?! Quantas pessoas incríveis, quantos segredos aquelas ruas deveriam esconder?! Estava ansiosa, determinada, focada e… talvez focada até demais em meus pensamentos e de menos ao meu redor, porque quando notei, não estava mais segurando o braço de titia, mas de um estranho qualquer que me lançou um pouco singelo e nada delicado insulto e seguiu seu caminho.
Em pânico, olhei em volta tentando encontrar alguma menção daquele corpinho esquálido de titia, e cheguei a gritar seu nome e o de Garibaldi, esperando ouvir o miado estridente e irritante daquele gato. Mas nada. Sentindo que meu coração ia sair pela minha boca, tentei me acalmar e olhei para as lojas que, amontoadas, recebiam centenas de transeunte a cada minuto que passava. Titia era uma mulher adulta e madura (bem, talvez só adulta…) e claro que, tendo se perdido de mim, iria procurar ficar em um lugar de fácil acesso para que eu pudesse encontrá-la. Fazendo o caminho de volta, fui olhando atentamente para cada loja, tentando ver por cima de tantos ombros, mochila, cabeças, bonés… Mas nada… Me sentia em um verdadeiro redemoinho ao ser empurrada de um lado para o o outro por pessoas que estavam ali para comprar, para vender, ou mesmo só de passagem. Encarava a face de cada um, tentando identificar a de titia, mas só me deparava com estranhos visivelmente incomodados com minha presença no meio de seus caminhos e compromissos. Estava prestes a me dar o direito de perder o controle e chorar no meio da rua quando ouvi um miado…
Senti meu coração parar imediatamente! Comecei a andar o mais rápido que conseguia atrás do som, considerando as centenas de obstáculos humanos que se punham à minha frente, indo em direção contrária a mim. Empurrando desesperadamente as pessoas à minha frente, finalmente cheguei à fonte do miado: em uma espécie de vão em meio às lojas amontoadas, sob uma lona claramente improvisada, lá estava Garibaldi Feliciano no chão, tomando água de uma vasilha que provavelmente deveria ser de algum outro animal que morava por ali. Me aproximando mais, na verdade notei que não era a vasilha de um animal qualquer, mas de um filhotinho de cachorro que dormia aninhado no colo de uma menininha de cerca de cinco anos que, sentada em um colchão velho no chão e apoiada na parede de algum prédio abandonado, acariciava o animalzinho em seus braços. Meus olhos migraram do aspecto esfarrapado e sujo de suas roupas, para o local onde se encontrava, e percebi que se tratava de um abrigo improvisado na rua. Olhei ao redor procurando algum adulto que pudesse ser responsável por ela, mas não vi ninguém. Sentindo meu coração apertar dentro do meu peito, me aproximei vagarosamente para não assustá-la, me abaixei atrás dela e perguntei delicadamente:
- Oi, princesa… Onde estão seus pais?
Ela, que estava com os olhos focados no filhotinho, não se moveu e nem respondeu à minha pergunta. Tentando um pouco mais alto, considerando o barulho da rua, repeti a pergunta:
- Onde estão os seus pais, pequena?
- Ela não consegue te ouvir. - ouvi uma voz firme e ríspida atrás de mim.
Me virando assustada, deparei com uma jovem muito parecida com a garotinha, mas provavelmente com uns dezessete anos de idade. Os cabelos longos e embaraçados não escondiam a beleza tão sublime de seus olhos de safira, que me encaravam ameaçadoramente enquanto se aproximava daquela que provavelmente era sua irmã.
- O que você quer? - perguntou defensiva, enquanto se colocava à frente da irmã.
- Eu… - murmurei, desconcertada pela situação. - Eu só a vi sozinha aqui e queria saber onde estavam seus pais.
- Ela não está sozinha. - respondeu a jovem, ríspida. - Ela tem a mim. - Disse, cruzando os braços, deixando escorrer grande parte do tecido da blusa que vestia, a qual era claramente muito maior do que ela.
- Claro, claro… - apressei em dizer. - Claro que sim! E tem também esse pequenino fofinho, não é? - falei em direção à menina, indicando o filhote no seu colo, mas ainda assim ela não me respondeu.
- Ela não consegue te ouvir. - Repetiu a adolescente, um pouco menos ríspida. - Ela é surda.
- Ah! - exclamei, constrangida. - Desculpe!
- Pelo que? - perguntou a jovem sem se abalar, se aproximando da irmã e passando a mão em sua cabeça. - Você não teve nada a ver com isso.
- Eu sei, é que… - tentei falar, mas não encontrava as palavras certas. Por fim, comentei: - Sinto muito.
- Tudo bem. Ela nasceu assim, então não sente falta do que não teve. Pelo menos era o que a minha mãe dizia…
- Er… seus pais… - arrisquei, com cuidado. - Estão por aqui?
- Porque você se interessa tanto por isso, hein? Você é do serviço social, por acaso? - perguntou a garota, me olhando desconfiada.
- Não, não! Na verdade eu só vim buscar o gato da minha tia que acabou vindo para cá… - falei, apontando para Garibaldi que, ousadamente, se aninhava nas pernas cruzadas na menininha. Essa, sorrindo, passou a acariciá-lo também, ignorando o que se passava à sua volta.
Observando a cena, a adolescente relaxou o corpo e ousou esboçar um sorriso leve, comentando:
- Ela adora animais. - Passando novamente a mão cuidadosamente pelos cabelos da pequena, disse: - E eles a adoram também. Acho que conseguem se comunicar no silêncio, uma linguagem que é só deles. - E silenciou, ficando um tempo com o olhar perdido sobre a irmã. Com um suspiro, se virou novamente para mim e falou: - Acho que meu pai já sabia perfeitamente o que desejava que ela levasse para sempre consigo, e por isso escolheu o nome perfeito para ela: Innocence… Significa inocência, em francês, de onde ele era, de onde saiu há tanto, tanto tempo atrás… Ah, ele tinha com ele tanta pureza, tanto amor, e queria que nós carregássemos um pedacinho desse brilho, dessa mania de não parar de acreditar… Ele tentou, tentou tanto não nos permitir perder a fé, a doçura, a inocência… Mas devo admitir que está sendo mais difícil do que eu imaginava, e tenho certeza que eles também não esperavam que estaríamos hoje, eu e ela, muito longe dos doces braços da inocência… - comentou, olhando ao seu redor.
“Sabe, a minha mãe e ele costumavam contar as mais lindas histórias de como se conheceram e de como, súbita e repentinamente, se apaixonaram perdidamente um pelo outro. As famílias eram totalmente contra o relacionamento de um pintor recém chegado da frança e uma moça filha do banqueiro mais conhecido da cidade, mas eles definitivamente não se importaram. Juntos estavam determinados a escrever a sua própria história de amor, dizendo sempre que a vida era como uma aquarela… Cada cor isolada, assim como as pessoas, não representavam tanto quanto a pintura pronta, uma mescla de tonalidades e intensidades. Eles diziam que as pessoas são mais belas quando se permitem olhar para o outro, escutar o outro, serem tocados pelo outro, serem envolvidos pelo outro. As pessoas se tornam reais quando se permitem estar no mundo não em função própria, mas com o objetivo de servir da forma mais bela o oceano de vidas ao seu redor. O outro nos faz sermos nós, e sem ele, nada seríamos. Não se pode desprezar uma gota de água do oceano, já que ela faz parte do todo magnífico e repleto de vida. Somos uno, somos um. E por isso é nossa obrigação insistirmos em acreditar naquele que nos rodeia, em confiar em sua bondade, em doar nossa maior disposição para construir com um mundo que se vale a pena viver com a humanidade que, em última análise, tem uma bondade inerente em seu interior.
"Ah, como eles insistiam nisso! Diziam que os atos de maldade eram erros de percursos de quem ainda não havia achado sua estrada natural, porque, no final do dia, todas as pessoas, se conectando com esse universo gigante e maravilhoso, iam perceber que o único propósito que justificaria a existência da espécie humana no mundo, é a bondade. A dedicação ao fazer o bem. Por isso eles me ensinaram que eu deveria insistir em acreditar. Acreditar que a vida tinha um sentido muito maior do que qualquer um jamais suspeitou, e por isso nada acontece por acaso. Há uma sincronicidade em tudo, dizia mamãe, e não era à toa que aquela estrela que eu tanto admirava à noite brilhava com mais intensidade, possivelmente me conectando a tantos sonhadores que, comigo, naquele exato momento, se permitiam sorrir com a simplicidade de uma luz universal. Não era à toa que as asas de uma singela borboleta poderiam causar um tufão do outro lado do mundo, porque estamos conectados, todos nós. Em essência, estamos mergulhados nesse grande aquário de oxigênio e hidrogênio, vivendo vidas cujo sentido só encontraremos quando pararmos de lançar o olhar egoísta do eu, e passarmos a entoar o coro de nós. Nós, em essência, vibramos o mesmo diapasão, e só conseguiremos construir um mundo que vale à pena quando permitirmos que essa energia de fé, amor e caridade que entoa em nosso ser sincronize com o mesmo compasso que, adormecido, aguarda o tempo de despertar no coração do outro.
“Eu cresci ouvindo isso, e foi lindo… Foi mágico viver em um mundo criado por eles, onde eu podia acreditar que tudo era possível, que tudo era bom… Tudo era alegria, e a família ficou completa com a chegada de Cence, como carinhosamente passamos a chamar a nossa pequena estrela cadente. Naquela época era tão fácil acreditar… sonhar… Mas ficou difícil, muito difícil, depois que eles se foram… Um instante, um segundo de um descuidado atrás do volante, e eles desapareceram das nossas vidas. Sem família e sem ousar pensar na possibilidade de viver separada da minha irmã, sai com ela no momento em que fiquei sabendo do ocorrido, e nunca mais olhei para trás. E desde então, busquei esse mundo que meus pais me contaram. Busquei bondade nas pessoas, misericórdia e um gesto de afeto… E nada. Pior do que aqueles que nos agrediam verbalmente, nos vendo como simples crianças de ruas, foram aqueles que nem sequer olharam para nós. Fui ignorada tantas vezes que passei a duvidar da minha própria existência, e não fosse a presença de Cence, creio que eu teria me perdido em mim mesma.
“As pessoas olham para nós e não sabem o que sentimos, mal imaginam o nosso passado, e simplesmente não se importam. Julgam, e como julgam. Fogem de nós, e muitas vezes nos desprezam… e vai ficando cada vez mais difícil acreditar… Mas sabe porque eu não desisto? Porque todas as vezes que eu olho nos olhos da Cence, eu me lembro do que mantém a fé na humanidade acesa: a inocência de uma criança. A simplicidade de quem recebe o mundo de braços abertos, vendo a beleza de uma simples formiguinha com a mesma intensidade do admirar um arco-íris. Innocence me lembra que o mundo não é meu, mas dela. E eu quero que ela tenha o mundo mais bonito e puro que se pode ter, assim como meus pais fizeram comigo. E por isso eu luto. Luto todos os dias para juntar o pouco que ganho com pequenos trabalhos até completar a idade necessária para assumir o seguro que meus pais fizeram e, com isso, reescrever nossa vida. Falta pouco, muito pouco. E quando as coisas ficam difíceis demais para que possa aguentar, eu fecho os olhos e vejo aquela estrela brilhante no céu. E lembro que milhares de sonhadores como um, apesar e acima de tudo, ainda insistem em acreditar.”
Com lágrimas nos olhos, sorri em respeito e admiração por aquela jovem grande mulher tão incrivelmente forte e doce, cujas cicatrizes eram muito maiores do que qualquer um deveria carregar. Abri a boca para tentar falar, mas notei que as palavras embargavam, e foi quando escutei atrás de mim:
- Ahhhh, mas que lugar encantadoramente esplêndido, minha querida! - me virei a tempo de ver titia vindo acompanhada de braços dados, de cada lado, a dois homens cujo tronco provavelmente dava duas dela. - Esses cavalheiros gentilmente se ofereceram para me ajudar a encontrar minha sobrinha desnaturada que se perdeu em meio à multidão, e aproveitaram para me levar para tomar um cafezinho com pão de queijo absolutamente maravilhoso na esquina do Tonhão! - comentou, enquanto um dos homens erguia com um braço extremamente malhado e repleto de tatuagens, um pacotinho que, pelo cheiro, guardava alguns pães de queijo. - E lógico, eu pedi para viagem, junto com um pouquinho de leite para meu querido Garib… Garibaldi, o que está fazendo ai? - exclamou titia, ao notar o gato no chão, aninhado na menininha. - Venha, venha conhecer esses dois cavalheiros! - disse, enquanto pegava seu gato e ia conversar com seus novos amigos.
No instante em que viu Garibaldi se afastar, Cence ergueu pela primeira vez seus olhos, e pude ver duas safiras, tais como as da irmã, brilhando em despedida. No entanto, algo diferente reluzia naquele olhar… algo com cheiro de inocência, e sabor de esperança.
- Bem, hora de voltar ao trabalho. - comentou a irmã mais velha, tirando uma gaita já desgastada do bolso da calça que, diferente da blusa, era curta demais para seu tamanho.
- Uau, você toca? - exclamei, admirada.
- Meu pai me ensinou… - murmurou, deixando o olhar vagar por um instante. - Ele dizia que a música é uma das poucas formas de falar sem dizer, abraçar sem tocar… Ele tocava para mim toda noite, enquanto eu olhava para as estrelas, e quando fui crescendo pedi para ele me ensinar. Assim, minha mãe cantava enquanto eu tocava a gaita e ele, um velho violão, e aprendi uma das canções mais belas, que me embalam quando a saudade bate forte… - e começou a tocar…
Deixei que as lágrimas escorressem, mas não permiti que ela fossem em vão. Após algumas ligações para amigos que foram luz naquele momento, e bem informada sobre o que precisava ser feito conforme a lei, estava eu, à noite, na casa de titia, escutando a mesma música diante a mesma garota, mas não mais maltrapilha. Com roupas na medida certa para seu corpo, a jovem tocava a gaita com tanta emoção que chorávamos todos, em plena sincronicidade. Todos, inclusive Garibaldi Feliciano que, no colo de sua pequena nova melhor amiga, recebia afagos carinhosos, alternados com lambidas do pequenino peludo ao seu lado. Innocence, no entanto, sorria. Sabíamos que ela não podia ouvir a música da irmã, mas tenho certeza que ela, e somente ela, ouvia em sua alma a melodia e a letra que seu pais registraram em seu coração, fazendo transbordar a doçura da inocência que crê… que luta… e que permanece.