Blogs e Colunas

Idas e Vindas...

23 de Julho de 2021 às 23h50

Ana Cecília Novaes

ver todas as postagens »

    Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!

https://open.spotify.com/episode/72ipc8NxwxeGuwGRNnNEg2?si=cdf57c919c644b35

“Seguir em frente, virar à direita, pegar o corredor lateral e subir as escadas… ou seria descer as escadas… Ai, minha nossa… Porque não colocam placas informativas nesse hospital, por Deus!”- exclamei para mim mesma, enquanto caminhava praticamente sem rumo ao longo dos corredores do hospital… Bem, não sem rumo, exatamente, porque eu havia sido clara ao perguntar para a recepcionista onde havia uma máquina de café… mas ela devia ter me entregue um mapinha de instruções, porque eu já não fazia ideia de onde eu estava.

Isso com certeza me daria algumas horas de sermão, mais tarde, porque a minha prima Flora havia sido bem específica ao dizer que queria minha presença de qualquer forma quando a sua pequena Julie chegasse ao mundo, ou eu iria me “ARREPENDER PELO RESTO DA VIDA”, como dissera doce e meigamente minha querida prima. Sem muita alternativa, peguei o primeiro trem para a cidade onde ela morava e me preparei para a saga.

Não me entenda mal, por favor! Eu não sou um monstro sem coração que não sabe enxergar a beleza e pureza do nascimento de uma vida, mas a questão era que tudo com Flora tinha que ser… majestoso. Quando pequena ela me fazia ensaiar por horas uma única música para apresentar no mínimo umas seis vezes para nossos familiares, até que sentisse que havia chegado à perfeição. Na escola fazia questão de ler todas as matérias antes para garantir que os professores estavam fazendo o seu melhor, e para casar… misericórdia! Uma extensa fila de pretendentes recebeu vários “sinto muito, o problema não sou eu… mas você”, antes dela escolher o incrível, alto, inteligente e bem sucedido pai de Julie. E bem, como eu havia imaginado… o trabalho de parto já estava se extendendo há 26 horas, porque Flora simplesmente não achava que era a hora perfeita para a chegada de sua pequena.

Por essa razão, lá estava eu há exatas 28 horas no hospital, já que Flora fora bem específica me pedindo para chegar duas horas antes e checar se tudo estava de acordo no quarto onde iria ficar. Eu já estava com todas as partes do meu corpo doendo de formas absolutamente inesperadas, ansiando por uma boa xícara de café, para conseguir aguentar as próximas não sei quantas horas que vinham pela frente. E foi em busca da minha bebida dos deuses que me perdi nos corredores do hospital, tendo me afastado da maternidade há algumas várias esquerdas e direitas atrás…

Olhei para os lados, tentando refazer a rota que a recepcionista havia me indicado, e me perguntando em qual ponto eu havia errado, quando ouvi uma melodia… Uma melodia tão gostosa, tão doce, tão envolvente… mas ao mesmo tempo repleta de um sentimento doloroso, talvez saudade… talvez perda…

Caminhei em direção ao que parecia ser a fonte daquela melodia, e passo ante passo, como que tomando cuidado para não perturbar a música que me inebriava por completo, me coloquei diante uma porta grande de madeira, em estilo colonial que contrastava com o moderno hospital em volta, e por trás da qual provavelmente vinha a canção. Vagarosamente e com cuidado abri a pesada estrutura e me deparei com uma capela modesta, mas grande o suficiente para abrigar cerca de dez bancos largos de cada lado, e um altar com lírios e copos de leite belíssimos, tão alvos quanto a toalha que cobria a mesa diante de uma exuberante cruz, no centro do altar. 

À esquerda do recinto estava um lindo piano de causa, diante do qual um jovem deixava seus dedos fluírem tão delicadamente que pareciam uma extensão do instrumento. Um pouco atrás dele, uma bateria com outro rapaz, e ao seu lado duas moças segurando um microfone. Percebi que a música estava sendo tocada por todos eles, com uma harmonia e sintonia absolutamente incríveis, como que se elevados por uma emoção única, transcendental. 

Pareciam cantar e tocar para si, com os olhos fechados, as lágrimas escorrendo ocasionalmente, ignorando o suposto público que os ouvia. E por público quero dizer um único vulto sentado em um dos bancos há alguns metros deles, cabisbaixo, abraçado a algum tipo de objeto esguio.

Me aproximei vagarosamente, com o intuito de me banhar mais um pouco daquela melodia tão sublime, quando percebi que o vulto, na verdade, se tratava de uma jovem que, encolhida no banco, deixava que os cabelos desgrenhados cobrissem parte de um rosto que, claramente inchado, provavelmente passara boa parte das últimas horas em prantos. Notei que o objeto ao qual ela se abraçava era um violão antigo, com vários adesivos coloridos, e ao seu lado uma foto de um jovem repousava.

Buscando não incomodar, me sentei atrás dela, tentando voltar minha atenção completamente à banda à nossa frente, mas escutei um som embargado em minha direção:

- O enterro vai ser só amanhã de manhã.

Olhei em volta e, percebendo que não havia mais ninguém, notei que ela se dirigia a mim. Constrangida pela suposta confusão, tentei explicar:

- Eu… ham… n-não estou… não… não sei…

Fungando alto e abraçando o violão com força, ela completou:

- E não vai ter essa idiotice de banda, eu vou me certificar!

Notei que o grupo à nossa frente não ouvira o que ela havia falado, e continuavam a cantar em pleno êxtase. Tentando esclarecer a situação, me aproximei dela tentando explicar:

- Desculpe a confusão, e meus sinceros sentimentos, mas não sei de quem…

- Vinte e três anos… - ela murmurou, me cortando, claramente não prestando atenção à minha fala. - Quem morre de infarto aos vinte e três anos, pelo amor de Deus?!!!! - exclamou, envolvendo o violão com tanta força que as cordas fizeram um som tão doloroso quanto seu choro que, entrecortado, saia junto com suas palavras. - Eu disse, disse para ele! Disse que não era para ele sair naquele dia, que eu estava sentindo algo ruim, alguma coisa estranha! Eles dizem que gêmeos têm essas coisas, mas ele simplesmente sorriu daquele jeito irritantemente despreocupado e me disse que aquele era apenas mais um dia, de todas as eternidades que teríamos juntos, como sempre costumava me dizer pela manhã! - Secou o rosto com a manga do moletom, e continuou, como que relembrando…

“Nós sempre tivemos uma conexão incrível, tão única… quando crianças esperavam que brigássemos o tempo todo, como dois bons irmãos, mas que nada… A gente simplesmente não encontrava motivo, e vivíamos todos os dias como se fossem o último. Ele sempre foi o mais esperto, e adorava me irritar dizendo que seus dois minutos e meio adiantados na hora do parto lhe davam mais vantagens! Eu nem me importava, e só ria de volta, porque no fundo eu gostava de vê-lo como meu irmão mais velho… Aquele que sempre estaria ali por mim, me apoiando e me protegendo com aquela luz que saia daquele sorriso chato dele… 

"Ele era pura alegria, sabe?… Não importava o que havia acontecido de ruim, ele conseguia enxergar um bendito lado bom, o que me irritava profundamente, mas fazia com que todos o admirasse, e eu também… Eu achava incrível como ele conseguia ser capaz de escutar os problemas de alguém e, com apenas algumas palavras simples, tocar a alma da pessoa de uma forma única e tão especial. Ele vivia dizendo que o mundo clamava por uma dose a mais de misericórdia e gentileza, e ele fazia de tudo para ser essa pessoa dócil, capaz de estender a mão para quem quer que fosse, dando e doando tudo de si…

“Foi assim que ele criou essa banda, aliás… Numa comunidade carente onde fazia trabalho voluntário, propôs a formação de grupos musicais para tirar vários jovens da rua. Ele dizia que a música era a forma de expressão mais democrática que conhecia, pois as lágrimas que escorriam de emoção com uma melodia não tinham cor, e a sensação de êxtase com uma boa letra não exigia conta bancária. Ele se propôs e conseguiu! Criou essa banda que há três anos já faz sucesso ao longo de todo país, e multiplicam esse trabalho ajudando a formar outros grupos musicais em comunidades carentes.

“‘Lindo', 'maravilhoso', todo mundo diz! ‘Era um jovem incrível, com um futuro brilhante, e morreu tão cedo!’, todos comentam! Será que ninguém percebe a loucura dessa frase???!!! Ele era sim, jovem!!! Começando uma vida!!! Porque isso tinha que ter acontecido?!!! E de uma forma tão cruel, sem que pudéssemos ao menos termos dito ‘adeus’?!!!!!!?

E um choro copioso se seguiu… Envolvida por um sentimento indescritível, me sentei ao seu lado e a envolvi, junto com o violão, em um abraço de dor… de saudade… de revolta… de vazio… Escutei seus soluços, afaguei seus cabelos e me permiti chorar junto, respeitando cada fragmento que explodia em sua alma dilacerada. Ao seu lado notei a foto do rapaz, e pude percebe o quão parecidos eram, e o quanto doía aquela separação.

Sentindo que o choro havia diminuído um pouco, falei, ainda abraçada a ela:

- Minha querida, palavra nenhuma será capaz de fechar essa ferida tão grande que está em seu coração. Estar separado de alguém que se ama é terrível, e você tem todo o direito de deixar que as lágrimas escorram em cachoeiras de tristeza, saudade e dor… Mas note… é uma separação, não uma perda. Você nunca deixará de tê-lo em cada instante que abrir os olhos e admirar o dia como se fosse o último… Você o encontrará em cada sorriso que se abrir diante a mão que estender, despretensiosamente, de forma amável. Você o verá refletido nos olhos dos que, com saudades, também se lembram dele com doçura, e poderá arriscar até alguns sorrisos com aqueles que, junto a ti, tiveram a honra de experienciar momentos únicos ao lado dele. Ele estará em seus sonhos mais puros, lhe ouvindo contar sobre as grande aventuras que você travou aqui, em sua homenagem e honra… E por detrás da curva de cada tristeza que vier nos momentos de solidão, ali ele estará, para lhe aconchegar por meio do brilho das estrelas ou do embalar do vento, lhe fazendo se recordar de que aqueles que se amam, verdadeiramente, nunca se perdem, em essência. A realidade é misteriosa, e somente ela é capaz de dar razões para uma despedida tão precoce de uma alma que, em última essência, era pura vida. Mas não busquemos razões diante aquilo que não somos capazes, ainda, de compreender. Sigamos apenas como firmes andarilhos na certeza de que duas estradas que se cruzam por amor nunca se separam, nem com a morte. Ele deixou seu legado em cada um cuja vida tocou, e esse legado se imortalizará em cada ação, sentimento ou pensamento que, por meio ou por causa dele, forem gerados.

Em silêncio, a menina não mais chorava… apenas acariciava delicadamente o violão e, suspirando, comentou:

- Eu estou com tanta raiva, sabe? Raiva do mundo por aceitar tão fácil a sua partida… Hoje de manhã os médicos disseram que devíamos nos despedir, porque depois de uma semana lutando ele não estava respondendo… Meus pais chamaram essa bendita banda dele para também dizerem adeus e eles simplesmente cantaram! Cantaram diante a cama dele! Como se uma música fosse capaz de trazer ele de volta! E agora vieram para cá e vão ficar até o corpo ser transferido para o velório, cantando em homenagem a ele. Que raiva, que vontade de gritar que nada disso vai ser capaz de trazê-lo de volta e que ele é… era muito mais que isso!!!! Será que ninguém está sentindo nada???!!!!

Disse, começando a se exaltar um pouco, chamando a atenção da banda, que parou de tocar. Os quatro se aproximaram, e percebendo o que ocorria, se puseram ao redor dela e sem precisar de trocar frases, apenas iniciaram, com as próprias vozes, batidas de mãos e pés…

Ao final, a jovem com lágrimas abundantes em seus olhos, encostou o violão no banco e os abraçou. Abraçou com força, com garra, com esperança… Com um esboço de sorriso nos lábios, pegou o violão que deixara ao meu lado, no qual pude ler o nome “Jordan" gravado, e foi até a frente da capela. Diante o altar, diante a cruz e diante todos nós, tocou…

Enquanto a voz da garota ressoava por minha alma, eu corria pelos corredores em resposta a uma mensagem que recebera do esposo de minha prima: está na hora! Devo admitir que, enquanto deixava lágrimas de alegria se misturarem com emoção, não pude deixar de sentir que a vida, por mais misteriosa que seja, dá seu jeito de nos mostrar que diante tudo que não podemos compreender, tal como chegada e partida, nos resta sentir, verdadeira e intensamente, cada sopro desse vai e vem infinito, honrando os que aportam, e aplaudido aqueles que embarcam para partir.