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Fogos de artifício...

01 de Maio de 2021 às 07h35

Ana Cecília Novaes

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    Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!

    https://open.spotify.com/episode/6p8yr3xXHKhqAucvknx1cj?si=270109ef9f30498a

        - Era o que me faltava… - murmurei irritada, dando um tapa na máquina de café expresso à minha frente. - Não bastasse passar a noite nessa porcaria de hospital, ainda perco a porcaria do sono e fico sem a porcaria do meu café da madrugada… - completei, levantando as mãos e me rendendo às artimanhas de um destino que, tenho certeza, estava rindo silenciosamente de mim.

- Se você tem problemas de sono, não deveria tomar café no meio da madrugada, não acha? - falou uma voz atrás de mim, me fazendo sobressaltar e dar um grito, já que eu não esperava ser flagrada no meio do corredor àquela hora da noite, sendo que eu havia recebido recomendações bem claras sobre a necessidade de permanecer no meu leito “para sua própria segurança, senhora…”, conforme disse irritantemente a enfermeira que me acomodara depois de ouvir meu muro de lamentações sobre o fato de não ter tempo para perder uma noite em um hospital.

“- Senhora, foram recomendações precisas do doutor, já que a senhora foi encontrada desmaiada na recepção do seu hotel hoje pela manhã.

- Mas isso é ridículo! Tenho certeza de que não é nada, estou me sentindo muitíssimo bem! Eu realmente preciso ir embora, se não vou perder meu avião!!!

- Senhora, sinto muito mas não posso permitir que saia a não ser que alguém se responsabilize pela senhora…

- Minha filha, quem vai se responsabilizar por mim nessa cidade se eu cheguei há três dias e vou embora hoje?!!!

- Então, senhora, sugiro que se acomode em seu leito e aguarde o resultado dos exames amanhã. Não sabemos se a senhora pode cair novamente, e Deus me livre que seja no meu turno. Já basta o escândalo que a senhora fez… Portanto, nada de ficar andando pelo corredores à noite… É para sua própria segurança.”

Bem, ficou claro que não era para eu estar com a camisola do hospital em pé diante a única máquina de café expresso (sem café expresso, que fique registrado) no meio do corredor escuro de uma ala qualquer, já que eu havia andado um bom tempo até encontrar o que eu achava que seria meu prêmio de consolação para aquele pesadelo que eu estava vivendo. Foi por isso que, me virando rápido para trás, suspirei aliviada ao perceber que a dona da voz era uma garota sentada em uma cadeira de rodas, me olhando com curiosidade.

- Minha nossa! Mas que susto você me deu, garota!

- Bem, você claramente nunca esteve nessa posição antes, porque caso contrário saberia que quem não quer ser visto não fica na frente de uma fonte de luz incandescente no meio de um corredor escuro…

- Ora, é claro que eu não estive nessa posição antes! Estou aqui contra a minha vontade e a única coisa que eu queria era uma boa dose de café bem quentinho e amargo!

- Então você chegou bem atrasada, porquê essa máquina parou de funcionar há cinco anos… 

- Minha nossa, você vem muito aqui, hein? - disse, me afastando da máquina e dando dois passos para o lado, saindo do ponto de luz no meio do corredor.

Me acompanhando com a cadeira de rodas, ela abriu um sorriso e disse:

- Eu praticamente moro aqui! Conheço essa ala como a palma da minha mão! - disse, enquanto girava a cadeira de rodas e soltava as mãos, lançando as mãos ao ar, com um olhar orgulhoso de quem sabe exatamente o que está fazendo.

- Como assim? - perguntei, enquanto olhava para ela novamente, agora com mais atenção. A menina devia ter cerca de dezessete anos, pelo tom de voz, mas parecia mais nova sentada naquela cadeira. Estava com um pijama do hospital por baixo de uma jaqueta preta com detalhes em rosa, e o que eu antes não havia notado: um lenço combinando envolvendo sua cabeça. Olhei para o lado e vi no corredor a placa “Ala de oncologia infanto-juvenil”. Engoli um seco e tentei articular alguma frase:

- E-eu… ham… e-er… - me senti engasgar, sem saber exatamente o que dizer.

- Tudo bem, acontece com a maioria das pessoas. - ela disse, abrindo um sorriso. - A dificuldade de achar uma fala de consolo, ou o constrangimento súbito por estarem de pé, e eu não. Mas não me importo, na verdade. - disse, rodando novamente a cadeira sob seu próprio eixo. - Depois de tantos anos, me acostumei com o constrangimento das pessoas por poderem sair daquela porta, enquanto eu permaneço à espera de um milagre.

- Você… está aqui há muito tempo? - perguntei.

- Bem, desde que me entendo por gente! - disse, enquanto posicionava a cadeira à minha frente novamente. - Eu adoeci quando tinha uns cinco anos, e desde então meus pais peregrinaram de hospital em hospital, em busca de respostas para o que eu tinha. Quando finalmente deram o diagnóstico de câncer, lembro ter sentido um alívio por terem descoberto o que eu tinha! Finalmente eu poderia parar de ir tanto a consultas, exames, hospitais e poderia ser uma criança normal, pensei! Mas estava enganada… acho que pressenti que as coisas não seriam exatamente do jeito que eu esperava quando vi minha mãe aos prantos, chorando nos ombros do meu pai que, desolado, apenas me olhava. Eu definitivamente não sabia o que me aguardava, e acho que foi melhor assim… À medida em que eu era submetida a tratamentos atrás de tratamentos, fui entendo o conceito de doença, o significado de câncer, e o sentido que, para todos, representava a palavra “esperança”.

“Eu praticamente cresci aqui, já que passei a maior parte da minha infância internada. E talvez por isso tenha tido como bases percepções muito diferentes do mundo e da vida. Enquanto minha prima chorava por um joelho ralado na visita que fazia a mim, eu, abraçada a ela e consolando a sua dor, escondia as marcas das injeções e agulhadas recebidas ao longo de tantos procedimentos. Eu notava alguns tios discutindo problemas nas suas empresas, ou com seus carros, e deixava meu pensamento ir até a sala de cirurgia onde uma colega de enfermaria fazia um procedimento sério, que poderia lhe tirar a vida. Vivi com a doença e a morte tão próximas a mim que aprendi a valorizar deliciosamente a vida. Não se tratava de desmerecer os problemas e sofrimentos daqueles que não estavam na minha pele, mas entender que, para suportar cada dor, é preciso ter um motivo para continuar lutando. E foi isso que eu fiz.

“A cada novo tratamento experimental ou medicação que me fazia vomitar, desmaiar ou mesmo não ter forças para levantar da cama, eu tentava encontrar uma razão, mesmo que fosse bem pequenininha, para suportar mais um dia. Às vezes era a vontade de terminar de escutar a história que a senhorinha da ala feminina tinha começado a me contar sobre suas netas na universidade… ou então encontrar novamente o técnico de radiologia que estava prestes a pedir a namorada em casamento, e saber se deu tudo certo… muitas vezes era só a necessidade de saber se a flor multicolorida do jardim central do hospital havia florescido, ou se os ovos do ninho de passarinho de frente à minha janela haviam chocado… Não precisava ser muito, não precisava ser grande… bastava que fosse… que existisse… de forma a me dar vontade e forças para também continuar existindo.

“E assim foi minha infância e adolescência. Passei a maior parte do tempo por aqui, mas vou te dizer que da forma como eu vejo hoje, não poderia ter tido experiência melhor! Conheci tanta gente, tantas histórias, tantas aventuras! Fiz amigos, aprendi a ver beleza no olhar silencioso de quem vai se despedindo gradualmente de quem ama… Descobri que a paciência é uma virtude muito preciosa, e na maioria das vezes cultivada muito mais por quem se deita nesses leitos do que por quem de fora nos vê acamados. Percebi que não é preciso ter pressa para crescer, porque o tempo passa para todo mundo, e quando a velhice chega, o único desejo que se tem é que tenha valido à pena. Vi risos misturados com lágrimas, esperanças mescladas de medos, saudades com cheiro de amor.

“E por isso hoje não vejo o hospital como um lugar que me priva de ter vida, mas como o lugar que me ensina todos os dias o que é a vida, verdadeiramente. Nunca nos sentimos tão vivos quanto quando estamos diante da morte. E depois que ela passa, passamos também a valorizar ainda mais cada instante que, no final do dia, é tão único quanto o bater de asas de uma borboleta."

Estarrecida pelas palavras tão sábias vindo de um ser tão jovem, me permiti um sorriso discreto e perguntei:

- E… você hoje está mais próxima da cura? Imagino que depois de tantos anos de testes e tratamentos, os médicos devam ter melhores notícias sobre a sua doença?

- Na verdade, não… Estou há sete meses nesse último ciclo de internação para um último tratamento experimental que deveria mostrar resultados positivos em um exame que fiz ontem, mas sei que não foi bom. Meus pais, na verdade, não fazem idéia.. - disse, lançando o olhar para um quarto com a porta semiaberta, de onde pude ver a sombra de uma mulher adormecida no ombro de um homem. - Meu médico deixou que os dois dormissem hoje comigo para a grande notícia de amanhã, mas eu sei que o resultado não é bom. Eu soube no momento em que ele tirou os óculos do rosto já envelhecido, o mesmo que conheci jovem há anos atrás, e me olhou com lágrimas nos olhos. 

“Meus pais não perceberam, ou talvez não queiram perceber. Eu entendo… aprendi aqui também que se sofre muito mais quando não se é capaz de acabar com a dor daquele que se ama. E eles tentaram… como eles tentaram me curar com seu amor, sua fé, sua esperança… o que não perceberam é que me deram a melhor vida que eu podia ter, ao lado de cada um, com doces e lindas lembranças que vão arder com a saudade, até simplesmente se tornarem perfumes doces de um tempo que se foi."

- Mas você não sabe… não pode ter certeza do resultado… ou do que ele significa… pode se surpreender amanhã!

- Ah, você já está com o vírus singelo da esperança cega! - disse ela, sorrindo com delicadeza. - Não se preocupe… eu mesma não estou me preocupando, porque sei que tudo simplesmente permanece quando nos dedicamos à sua construção… Aprendi isso com Paulina, uma senhora com quem fiz amizade na ala geriátrica, e que a cada dia ia perdendo um pedacinho de sua memória… Eu via o brilho do reconhecimento ir se dissipando a cada visita que eu lhe fazia, e sentia a dor dilacerante de sua família quando percebia que a pessoa que eles buscavam já não estava ali. E num belo dia em que estávamos somente eu e ela, eu conversando sobre o que via através de sua janela e ela com o olhar perdido, ela deu um longo suspiro e falou: “Na vida só se perde o que não foi possível cultivar. Aquilo que plantamos cria raízes, e mesmo que o vento ou a chuva levem as folhagens, as raízes permanecem fortes e firmes no solo que chamamos de amor. Eu não fui embora… apenas deixei de estar aqui, para estar em outro lugar… É só uma questão de saber olhar…”. E Paulina se perdeu novamente em seu mundo particular. Desde esse dia me dediquei a cultivar diariamente tudo aquilo que poderia ser lembrança, porque na minha ausência, não faltarão raízes para mantê-los de pé… - completou, olhando com carinho para os pais.

Em silêncio, deixei que uma lágrima silenciosa escorresse pela minha face, em respeito àquela jovem grande alma à minha frente. Ela, sorrindo, tocou a minha mão e falou:

- Viu como nada acontece por acaso? Quem diria que eu encontraria uma louca do café em minha escapada da madrugada?

Sorrindo, falei:

- Aliás, essa é uma boa questão! O que a senhorita faz fora da cama, já que sabe melhor do que eu as regras do hospital?

- Eu estava indo até o mirante do hospital… Quando eu ainda tinha forças para andar, ia lá quase toda noite escondida, e ficava admirando as estrelas, imaginando que eram fogos de artifício lançados para mim… E hoje, em especial, queria vê-las de novo…

- Porque hoje? - perguntei, desconfiada.

- Porque hoje é meu aniversário!

- Sério?! - exclamei mais alto do que deveria. Falando mais baixo, comentei: - Uau! Parabéns! Você deveria ter me falado antes!

- Para você me comprar um café expresso da máquina que não funciona? - perguntou brincalhona. - Mas você pode me dar um presente…

- Qual? - perguntei, mas já sabendo a resposta…

E foi assim que duas sombras, uma andando sob duas pernas empurrando outra sob duas rodas, atravessaram o hospital até uma escada íngrime. Com cuidado, tomei a garota nos braços e percebi, com aperto no coração, que ela tinha o peso de uma criança. Subindo sem esforço os degraus, chegamos até o mirante e a coloquei sentada ao meu lado, e assim ficamos. Absorvendo. Respirando. E observando. Escutando o silêncio dos milhares de fogos de artifício que celebravam a vida daquela pequena grande mulher. Eu podia escutar as palmas e as vibrações por aquela que soube receber a vida com gratuidade, buscando dar o que de melhor tinha em si. A cada ponto brilhante que eu via no céu, sentia estourar um e outro e mais tantos outros fogos de luz, em plena celebração! Sim, o universo celebrava! Celebrava sua vida… e celebrava a sua morte… porque naquela manhã, antes mesmo da conversa com o médico, a garota não mais despertou para esse mundo.

Quando eu estava saindo de alta com uma prescrição simples para enxaqueca, vi o casal aos prantos no corredor. Enquanto permitia que lágrimas escorressem em minha face, tenho certeza de ter escutado o som de fogos de artificio… olhei para o lado e vi uma cadeira de rodas próximo à janela no final do corredor, vazia. Sorrindo, fechei os olhos e pude vê-la de braços erguidos, bailando pelo infinito, em meio a milhares de fogos de artifício. Ah, sim, universo… definitivamente, ela merece.