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Eu só posso imaginar...

28 de Novembro de 2021 às 14h50

Ana Cecília Novaes

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   Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!


https://open.spotify.com/episode/1qC6YODlSmOFLxBShbpCY4?si=e819e0d059414fff


           - Francamente... – murmurou titia Gertrudes, envolvendo os braços ao redor de seu esquálido corpinho e colocando sua bolsa mais perto de si. – Isso é realmente necessário, querida? – Perguntou com a voz meio fanha, já que tampara o nariz discretamente por trás do lenço que acabara de retirar da bolsa.

            - Por Deus, titia! Não me mate de vergonha! – Falei entre os dentes, sentindo a face queimar enquanto tentava disfarçar a cena que titia fazia atrás de mim enquanto eu servia sopa para uma fila enorme de desabrigados.

            - Ora, faça-me o favor! – Falou, aproximando-se de mim para sussurrar em meus ouvidos. – Essa sopa está com um cheiro péssimo! Você tem que admitir!

            - Cavalo dado não se olha os dentes, dona. – Falou o homem que eu servia, envolvido em um cobertor surrado, claramente a única proteção que seu corpo tinha, já que usava finas e rasgadas roupas.

            Senti as orelhas de titia queimarem e tenho de admitir que deixei escapar um discreto sorriso, pois aquele era realmente meu objetivo ao trazê-la. Fazia um tempo que eu insistia que titia me acompanhasse no voluntariado que eu participava, e por trás de um frequente “não tenho tempo para isso” eu via camuflada uma certa visão torta de mundo. Não entenda errado, titia é um amor de pessoa, mas dentro de sua enorme bolha existencial acha que a grande maioria das pessoas têm as mesmas oportunidades e condições que ela, e acaba por ser um tanto quanto insensível com os outros por conta disso. Já vinha notando esse fato em algumas situações mas a gota d`água foi quando ela olhou para uma mulher que pedia um prato de comida na porta de sua casa e disse, com naturalidade: “Hoje o assado de pernil ficou muito salgado, querida. Joguei tudo fora imediatamente e fiz peixe, mas como os acompanhamentos não seriam os mesmos, joguei fora também. E bem, o peixe que sobrou dei para Garibaldi Feliciano, meu doce gato. Sabe como é, o pobrezinho não pode viver só de ração, não é mesmo?”.

            Enquanto a mulher se afastada, abismada, disse a titia que daquela noite não passava. Ela iria comigo, sem desculpas, para o sopão comunitário, pois já passava da hora de entender o mundo além de suas quatro paredes de cristal. Ainda ouvi alguns resmungos e muita reclamação sobre o frio que faria mais tarde, mas conforme prometido, ali estávamos, eu tentando abrir-lhe os olhos e ela tentando tapar o nariz.

            - Querida, não é possível que essas pessoas comam essa sopa, por Deus! Está mais rala que água de batata, e com um cheiro horrendo!

            - Titia, essa sopa é feita com recursos angariados por meio de doações! A gente compra o que dá e tenta fazer render para o máximo de pessoas possível! A senhora já reparou o tamanho da fila? E olha que hoje veio menos gente, por conta do frio!

            - Mas isso é um absurdo! – Exclamou titia, enquanto olhava para os lados. – Quem é o responsável por isso aqui? Vou ter uma boa conversa com a gerência!

            E antes que eu pudesse responder, ela já estava andando em direção a lugar nenhum, já que não conhecia o ambiente, em busca de pessoa alguma, já que não ia encontrar nenhuma gerência, e sim um grupo de voluntários que se matavam na cozinha da instituição para dar conta da demanda da noite.

            Suspirei alto, previamente exausta pela confusão que ela faria e eu teria que resolver, quando ouvi à minha frente:

            - Moça, você pode me dar dois pratos, por favor?

            Olhei para frente em busca da origem da voz mas não vi nada. Subitamente, um gorro rosa surrado com um pompom que um dia foi branco pulou acima da mesa e, descendo o olhar abaixo da bancada onde eu servia a sopa, consegui ver uma garotinha, em torno de seis anos, com grandes olhos amendoados que me encaravam, atentos.

            - Desculpe, princesinha. – Respondi, sentindo meu coração despedaçar. - Por enquanto é só um prato por pessoa, para podermos alimentar a todos.

            - Mas o outro é para meu papai. Ele está muito dodói e não consegue vir até aqui pegar!

            Mergulhei eu seu olhar profundo e, checando se os outros voluntários não estavam olhando, enchi rapidamente outro prato e lhe entreguei, fazendo sinal de silêncio. Ela sorriu de volta e se virou para ir embora, tentando equilibrar os dois pratos em suas pequenas mãozinhas. Prevendo que aquilo não daria certo, chamei uma voluntária atrás de mim para me substituir e antes mesmo que ela pudesse falar qualquer coisa, corri em direção à menina e peguei os dois pratos de suas mãos. Ela me olhou sem entender, e eu disse:

            - Eu te ajudo, princesinha! Me diga onde está seu pai!

            Sorrindo, ela pegou a ponta de meu casaco e foi me conduzindo para o outro lado da rua. Seguimos ao longo de quase dois quarteirões absolutamente desertos e mal iluminados, quando comecei a pensar o quão perigoso seria aquela rua não só para mim, mas para a menina que tinha ido sozinha em busca da sopa. Viramos em mais duas vielas e quando estava prestes a perguntar quanto ainda faltava, ela soltou meu casaco e foi correndo até um beco, onde de longe vi que estava montada uma tenda improvisada.

            Me aproximei vagarosamente, sentindo meu coração acelerar e minhas mãos suarem, me perguntando como eu acabo me colocando em situações como essas, mas assim que cheguei perto da tenda, não tive como não deixar meu coração derreter. A menina havia se aconchegado nos braços daquele que provavelmente seria seu pai, com tanto carinho e preocupação, que afastei qualquer receio e apressei em estender-lhe a sopa.

            O homem à minha frente ergueu os olhos cansados e me observou, confuso. Pude perceber o quanto estava emagrecido, mas mesmo diante a face fina notei que havia tido um porte alto e forte. A barba crescida e as olheiras lhe envelheciam alguns bons anos, mas foi impossível não notar a semelhança do olhar amendoado que compartilhava com a filha.

            - Ela me ajudou a trazer a sopa, papai! – Disse a menina alegre, enquanto se levantava e puxava um caixotinho de madeira, colocando ao lado deles e dando duas palmadinhas no mesmo, me indicando para sentar.

            Eu ainda estava com os pratos de sopa estendidos, e percebi que o homem se mantinha ainda desconfiado, me observando. No entanto, vendo a filha se aproximar de mim, pegar um dos pratos e lhe dar, notei que ele relaxou um pouco e aceitou. A menina pegou o outro prato da minha mão, se aconchegou ao lado dele e me apontou o caixotinho novamente com o queixo. Sem saber ao certo o que fazer e me sentindo constrangida por estar de pé, praticamente de forma mecânica obedeci, me aproximei e sentei.

            Um silêncio constrangedor durou por alguns minutos, durante os quais a menina devorava com gosto a sopa, o que provavelmente deixaria titia Gertrudes em choque. O pai, no entanto, colocava vagarosamente cada colher na boca, ainda me observando.

            -Acho que deve ter esfriado. – Comentei, tentando quebrar o gelo e mentalmente me perguntando por que diachos eu tinha sentado.

            - Mas ainda está gostosa! – respondeu a menina, sorrindo e lambendo os lábios com a última gota da sopa que tinha no seu prato. Notei que o pai tirou o prato vazio da sua mão e entregou o seu, ainda cheio, do qual havia comido apenas três colheres.

            - Você é assistente social ou coisa do tipo? – perguntou ele, me encarando fixamente.

            - Não, não! – respondi rapidamente. – Sou voluntária do sopão e só quis ajudar a mocinha aqui a trazer os dois pratos. – falei, enquanto olhava para a menina, sorrindo.

            - Nenhum voluntário deu dois pratos para ela antes. – Respondeu ele, seco.

            - Ela disse que era para você. – respondi. – Que está doente e não podia ir até a fila. Achei justo. – falei, e ele apenas acenou. Entendi como um sinal de agradecimento, e relaxei. - Você está... hum... doente há muito tempo? – Arrisquei a perguntar.

            - Há alguns meses, já... – respondeu ele, se ajeitando no fino colchão onde estava deitado. Percebi as feições da dor que aquele simples movimento gerou nele, mas não comentei nada. – Alguns dias são melhores que outros, mas Boreal me ajuda bastante... – disse, enquanto passava a mão pelos cabelos da menina.

            - Boreal? Que nome lindo! – exclamei.

            - A mãe dela quem escolheu. – falou, deixando que lembranças o envolvessem. – Quando soubemos que teríamos uma garotinha, ela ficou tão realizada que disse que ela seria o norte de nossas vidas, preenchendo-nos de energia e luz, e por isso se chamaria Boreal. Eu, lógico, amei a ideia. O que não era muito difícil, já que eu amava cada detalhe dela... Ela era uma sonhadora, uma artista! Ambos éramos, na verdade. Ela pintava belíssimos quadros, e eu era um músico movido pelo amor. Formávamos um belo jovem casal, repleto de sonhos e planos! Vivíamos de pouco, o suficiente para nos sentirmos absolutamente privilegiados pela vida que tínhamos: nossa felicidade custava muito pouco, e nos sentíamos brindados simplesmente por podermos deitar na grama fresca e admirar o céu estrelado em uma noite de luar. Boreal veio coroar nossa felicidade, e parecíamos os reis de nossos próprios mundos, até que ela adoeceu. Repleta de vida e energia, foi uma tortura vê-la sucumbindo à uma doença que ninguém descobria de onde vinha. Usei todas as nossas economias pagando os melhores médicos, os exames necessários para tentar entender o que estava acontecendo e quando finalmente descobriram, já era tarde demais... Ela já estava indo embora, se despedindo gradualmente de nós, deixando um vazio inenarrável...

            “Em seu velório achei que meu mundo fosse literalmente desmoronar, porque sentia minha alma dilacerada, mas olhando nos olhos de Boreal percebi que não podia sucumbir. Tendo usado nossa pequena casa como garantia para tantos empréstimos para os tratamentos médicos, acabamos perdendo nosso lar e, sem família próxima e sem condições de nos sustentar com as músicas que eu fazia, nos tornamos andarilhos. Boreal acha que estamos em uma grande aventura, desbravando o mundo juntos, e eu deixo que ela assim o veja.

            “Eu tento mostrar a ela todos os dias o quanto o mundo é belo. O quanto existe de bondade nas pessoas, e o quanto vale à pena acreditar que amanhã será um dia melhor. Se alguém é rude conosco, um próximo nos estenderá a mão. Se hoje sentimos frio, amanhã conseguiremos um lugar quentinho para nos abrigar. Se hoje sentimos fome, amanhã encontraremos uma forma de alimentar o corpo, porque a alma permanece repleta de energia e fé.

“Tento mostrar para Boreal o quão bela é a natureza, e quanta simplicidade ela nos ensina. A determinação da formiga, a serenidade da cotovia, a destreza das raízes que, firmes, sustentam a árvore que nos acolhe do sol, e nos abriga da chuva. Faço com que ela sinta as gotas de água que escorrem do céu, e brinque no sol que aquece as manhãs, em gratidão por tamanha gratuidade do universo. Mostro a inteligência do homem refletida em suas magníficas criações, e alerto sobre o quão perigoso pode ser o poder nas mãos erradas. Tento ensinar que ser honesta não é uma opção, mas um dever, porque a vida retribui tudo aquilo que damos de coração aberto e de forma genuína. E de noite, antes de dormir, fazemos uma oração olhando para as estrelas. Ela aponta a mais brilhante, e em sua simples sabedoria, me lembra que sua mãe está lá, olhando por nós, ao lado do mesmo Deus que, em Sua sabedoria, resolveu chamá-la de volta.

            Impressionada com o que ouvia, deixei que uma lágrima discreta escapasse de meus olhos, quando falei:

            - É uma sabedoria louvável, verdadeiros tesouros para essa pequenina.

            - Tento fazer o que posso, o mais rápido possível, pois sei que não tenho muito tempo...

            - Como? – perguntei, alarmada. – Espere um pouco, você foi ao médico, sabe o que tem? Posso pedir que o voluntariado angarie fundos para novos exames ou...

            - Ah, não se preocupe com isso. – Disse ele, com um sorriso terno nos lábios. – Já me avisaram que o que eu tenho não tem cura... E honestamente, meu coração está em paz. No meu ser não tem espaço para revolta, mas para gratidão. Muita gratidão. Tive a oportunidade de viver com uma mulher cuja alma irradiava uma luz transcendental, e por mais que tenhamos sido separados precocemente, ela me deixou uma joia rara. Cada vez que olho para Boreal percebo o quanto Deus é magnífico e perfeito, tendo desenhado um ser tão puro para desbravar um mundo que precisa de luz. Sei que a cada dia me aproximo da partida, mas estou lutando para conseguir encontrar a tia de Boreal que mora nessa cidade antes disso. Foi por isso que viemos para cá.

            - Mas pode haver uma solução, um tratamento novo, talvez? – perguntei angustiada, sentindo as lágrimas rolarem.

            - Agradeço muito tanta preocupação, mas acredite, não tem. E para te falar a verdade, eu venho conversando com Deus sobre isso, nos últimos tempos. A cada dia que passa percebo o quanto a vida me presentou, na simplicidade, com amor e alegria. As dificuldades fazem parte do processo de molde dessas pedras preciosas que somos aos olhos do Pai, e cada desafio que vencemos é um motivo de glorificação desse Deus que é infinitamente justo e bom. Como pai, sei que luto diariamente pela felicidade da minha filha, e Ele faz o mesmo por nós. Por vezes, nós quem nos fazemos cegos e surdos para esse Pai que é só amor. Quando nos permitimos conectar plenamente com esse sentimento de gratidão pela vida, pelo universo, por Deus, nos libertamos completamente das algemas íntimas, curamos a alma e renovamos o ser. E afinal, é sobre isso: renovação. É para isso que estamos aqui.

            “Não foi fácil chegar a esse estado, devo admitir. Mas depois de muito caminhar, passei a ver sentido nas minhas pegadas, e ao invés de olhar para o vazio, passei a olhar para o alto, e ali o enxerguei. Simplesmente grandioso, verdadeiramente puro, e bom. Nesse dia escrevi uma música, uma que retrata meu reencontro com Deus. E ao fim dessa jornada, sabendo que Boreal está em boas mãos, estarei do outro lado cantando ao Pai, de peito aberto e alma regenerada.”

            Naquele instante, senti que algo havia mudado dentro de mim. Tamanha fé, tamanha entrega, tamanha singeleza me envolveram em um abraço silencioso, mas não foi silenciosamente que retornei ao grupo de voluntários e movimentei uma ação para encontrarmos um abrigo para o homem e sua filha, naquela mesma noite. Não foi silenciosamente que escutei titia falando que conversou com a equipe da cozinha e se comprometeu a doar os ingredientes necessários para uma sopa mais completa, cheirosa e saborosa. Com um abraço caloroso e um grito de alegria, me senti realizada. Não foi silenciosamente que com algumas poucas informações consegui encontrar a tia de Boreal e, definitivamente, não foi silenciosamente que me despedi do homem, em seu leito de morte, um dia depois desse reencontro. Com lágrimas de emoção nos olhos, ele me fez um último pedido, e com gratidão na alma, o atendi.

            Em seu velório, ali estava eu, diante todos, cantando sua canção de reencontro com Deus. E posso jurar que ouvi, de longe, sua voz me acompanhando, em absoluta e plena, paz. Mas isso, eu só posso imaginar...