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Esperança

29 de Junho de 2021 às 20h50

Ana Cecília Novaes

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                Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!

https://open.spotify.com/episode/3q9i5pIOhYGkmq3O60Nw9E?si=d19176deeb864c2e

    - Ufa! Misericórdia, que canseira! - exclamei, sentando no primeiro banco disponível em frente ao balcão daquela que parecia ser a única lanchonete minimamente frequentável àquela hora do dia. Eu já estava há algumas horas andando pelas ruas abarrotadas de pessoas que, assim como eu, provavelmente haviam deixado para comprar o presente de aniversário de suas titias Gertrudes de última hora… Sem muito sucesso, eu me espremia entre corpos apressados, tentando encontrar um lugar onde eu pudesse me esquentar e, pelo amor de Deus, sentar. Sentindo um alívio indescritível ao sentar no duro banco enferrujado, esfreguei uma mão contra a outra e tentei soprar um ar quente de meus pulmões já cansados, mas guerreiros. - Nossa, fazia tempo que não tinha um frio tão forte desse nessa cidade, não é? - Comentei, olhando para o suposto atendente à minha frente.

Seu farto bigode foi o primeiro a me encarar, seguido pela barriga proeminente por baixo de uma camiseta curta demais, e por fim seu olhar absolutamente desinteressado e impaciente recaiu rapidamente sobre mim, levando a um som qualquer, que tanto poderia estar concordando quanto descordando (ou talvez até ridicularizando) a minha sagaz ponderação. Envolvendo meus braços contra meu corpo, arrisquei um meio sorriso e continuei na minha ridícula mania de tentar ser simpática:

- Isso que dá deixar tudo para última hora, né? - comentei, e fiquei animada ao ver os lábios embaixo daquele bigode se abrirem, até que ouvi:

- Você vi pedir ou não? Tem muita gente querendo o lugar.

Sentindo meu rosto queimar, olhei em volta e realmente percebi que um amontoado de cabeças e corpos se debatiam atrás de mim, competindo por um pequeno metro quadrado dentro da lanchonete que, ao menos, nos protegia do vento gélido lá de fora. Pigarreando, me apressei em responder:

- Erg… claro! Um café duplo caramelizado com canela e gengibre, por favor. - Disse, e completei, sorrindo: - O gengibre dá um toque absolutamente fantás…

- Só temos pingado, dona.

- Ahn… - murmurei, um pouco tonta pela interrupção súbita e mais fria que o clima lá fora. - Pode ser esse! - apressei em responder, com medo de ser expulsa dali pelos fortes braços que acompanhavam o bigode.

Quando o simpático atendente se virou para preparar o tal pingado, percebi que na verdade eu nunca havia tomado esse tipo de café. Não ousaria perguntar a ele como era feito, claro, porque eu amo a minha vida, então simplesmente deixei para lá, porque afinal de contas, era o que tinha e, vindo quente, estava bom demais. 

Olhei ao redor e deixei meu olhar repousar nas inúmeras fotos desgastadas penduradas nas paredes velhas e descascando, e percebi que aquele lugar já estava ali há bastante tempo. Apesar do tempo e da baixa qualidade, dava para perceber nas fotos que centenas de pessoas já haviam estado naquele lugar, deixando registrados seus sorrisos em frente à fachada (na época não tão antiga), da lanchonete.

Me perdendo em meios às fotografias, mal percebi quando um murmurinho começou a se formar atrás de mim. Me virando no banco, percebi que as pessoas começaram a sair da lanchonete, se aglomerando na entrada, olhando todos para a rua, enquanto um som melodioso vinha de algum lugar lá fora. Tentei ver o que estava acontecendo esticando o pescoço, mas não consegui. Busquei com o olhar o atendente que havia sumido para dentro da cozinha, provavelmente em busca do pó do meu café, e pensei que não faria mal dar uma rápida espiada. Todos estavam tão focados com o que acontecia na rua que ninguém iria se ocupar em pegar o meu banquinho enferrujado e já quentinho… Então fui!

Levantei e pedindo licença à medida em que ia empurrando delicadamente as pessoas para o lado, consegui chegar na entrada da lanchonete e percebi que uma pequena multidão havia feito uma espécie de círculo, no meio do qual uma figura peculiar saltitava de um lado para o outro, ao som de uma música que saia de um pequeno e velho toca-fitas colocado no chão. Honestamente, meus olhos ficaram tentados em vidrar no tal toca-fitas, considerando que havia anos que eu não via um desses, mas a tal figura saltitante roubou a minha atenção por completo.

Se tratava de um homem magro e com pernas extremamente longas, vestido com uma espécie de fraque que seria bem elegante não fossem as cores extravagantes que o compunham: azul marinho, rosa bebê, roxo vibrante, amarelo alaranjado e verde musgo brincavam entre si em uma verdadeira festa de bizarras combinações entre as listras que faziam aquela roupa nos hipnotizar por completo. Acompanhando a peculiar vestimenta, uma cartola branca escondia parte de um encaracolado cabelo que escapava por entre as frestas, envolvendo uma cabeça oval que resguardava dois pequeninos olhos que contrastavam com o largo e expansivo sorriso.

Seu corpo bailava conforme a melodia, e cada gesto peculiar parecia extravagante mas bizarramente coerente com a sua forma esguia e seus movimentos precisos. Ele parecia flutuar em volta da multidão, sorrindo gentilmente para uns, olhando intensamente para outros, brincando com delicadeza com as crianças à distância. Era realmente encantador, da forma mais estranha possível, e eu não conseguia tirar os olhos dele. Acompanhava cada passo, curva, movimento da cabeça e das mãos, e observei que o personagem não só saltitava conforme a música, mas também parecia falar alguma coisa, de forma tão melodiosa quanto a canção de seu toca-fitas…

“Ah, o tempo… O tempo que o tempo não quer dar, o tempo que o tempo quer tirar, o tempo que o tempo podia voltar… O tempo, meus caros, é moeda rara a barganhar! E quanto mais o tempo se tenta agarrar, mais o tempo corre, para se salvar…" 

Era impressionante… Cada palavra era dita com tamanha intensidade, precisão… E eram combinadas em frases que pareciam enlaçar aquele que, à sua frente, recebia um olhar tão profundo que quase parecia um segredo contado entre dois velhos conhecidos…

“Porque o que o tempo gasta tempo para ensinar, é que sempre há tempo, para recomeçar… Há sempre um bem-te-vi que insiste em gorjear pela janela lateral, convidando a um verdadeiro baile da vida… Baile de flores, baile de primavera! Uma verdadeira festa primaveril que diariamente toca para despertar o gigante adormecido nas cicatrizes que cada um aprendeu a curar… Gigante que se ergue firme, consciente que suas maiores fortalezas são a capacidade de admitir suas fraquezas, e a destreza de aprender com elas. Ah, e esse gigante anda! Anda firme por trás de nossas sombras, na curva de nossos atos, nos vértices de nossos desejos. Esse gigante clama, brada em nossos silêncios o quanto nossa capacidade de nos fazermos pequenos e humildes nos faz conquistar o universo de nós mesmos. Esse gigante chora, quando percebe nossas estridentes gargalhadas de tristeza… Esse gigante agoniza, quando nota nossas máscaras de cera…

“Ah, o tempo gasta tempo para ensinar que cada tropeço traz uma oportunidade de se reinventar, e que não é preciso da lágrima se envergonhar… Há sempre uma montanha a ser escalada entre rochas e espinhos de ascensão, pois que o mérito não se resguarda na chegada, mas no trajeto percorrido, na caminhada… Caminhos de pedras, enquanto descalços andarilhos  que somos em busca de oásis em meio ao deserto de nós mesmos… E no silêncio de nossas alvoradas particulares, por entre as brisas da renovação, encontramos sentido e abrigo em meio à oração…

“Sim, esse tempo… que gasta tempo para ensinar que sempre vale à pena acreditar… Acreditar, com a singeleza de uma criança, que a lagarta há de borboletear, enquanto nós, fora do casulo, nos descobrimos mais fortes do que possamos imaginar… Somos fênix em metamorfose, ternos aprendizes em transformação… E o produto final dessa incólume e complexa equação de nós mesmos, é, invariavelmente, a cândida construção da realidade que almejamos aquarelar…

“Pois que somos a cor de nossa própria esperança! Está em nossas mãos! Essas mãos calejadas, feridas, cicatrizadas! Essas mãos de criança, ousadas e determinadas! Essas mãos enrugadas, sábias e tão ponderadas! Está em nossas mãos a possibilidade de insistir, persistir e resistir, diante tudo, e em nome de todos, acreditando que o alvorecer vem com as cores que escolhemos pintar! Acreditando que a felicidade é o caminho, e não o destino. Acreditando que o sorriso do outro é alegria em nosso coração. Acreditando que calar é tão necessário quanto falar, e que quando são necessários braços para carregar, que estendamos os nossos. Porque no horizonte do amanhã estão desenhados milhares de eu, nesse nós que, em última instância, permanece vivo, forte, resiliente e sobrevivente em nome da esperança. A nossa cor universal!"

A multidão parecia absolutamente absorta pelas palavras daquela figura peculiar, tão intensa e inebriante. Ela ia e vinha, se colocando diante cada um, como se sussurrasse em nossa alma uma mensagem particular. E foi quando seu olhar recaiu sobre mim.

Um magnetismo inexplicável me envolve, e lágrimas vieram aos meus olhos. Mas não era tristeza… era algo muito mais forte, muito mais sublime, muito mais vivo… era esperança. Uma esperança muito maior do que eu, do que qualquer um de nós que ousasse caminhar sozinho. Era uma certeza de dias melhores enquanto cada um permanecesse acreditando… na vida, em si mesmo, em nós, como humanidade…

Enquanto uma lágrima de profunda emoção escorria pelo meu rosto, senti uma empurrada, e outra, e outra, e subitamente a multidão começou a se dissipar e eu perdi o personagem multicolorido. Me senti levada pelo movimento das pessoas até que consegui reassumir meus próprios passos e corri de volta ao meu banquinho enferrujado, onde um copo pequeno com um conteúdo amarronzado me aguardava.

- O que é isso? - perguntei.

- Pingado. - respondeu rispidamente o bigode do atendente. - Leite puro com um pingo de café. 

- Ora, mas… - tentei murmurar, mas logo fui cortada.

- Você demorou demais, esfriou. - e se virou para atender outro cliente.

Olhei para o copo à minha frente e apenas… sorri. Naquele momento eu não conseguia sentir nada além de uma energia que pulsava junto com o meu coração. Um sopro de ar fresco, uma brisa de possibilidades, um sussurro de fé. E nada seria capaz de apagar aquela chama, ainda que tímida, que havia ascendido em mim. Porque eu sabia que não estava sozinha, e juntos seríamos capazes de fazer brilhar a luz que o mundo precisa.

Pegando o copo frio e tomando sem pressa, fiquei olhando distraidamente para as fotos  antigas na parede. Senti meu coração parar quando notei, em uma foto de uns 60 anos atrás, uma figura peculiar à frente da lanchonete, com um fraque listrado e uma cartola branca. Apesar de ser em preto e branco, o sorriso era inconfundível… Nem me importei em buscar lógica… Apenas sorri, e erguendo o copo de pingado, brindei… Afinal, se há tanto tempo estava ele lutando por colorir o mundo de mais esperança, era meu dever contribuir com o meu colorido de fé.