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Ed - parte 5 (Fim...)

07 de Abril de 2019 às 11h35

Ana Cecília Novaes

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Com os nervos à flor da pele, virei-me vagarosamente, segurando a respiração, e deparei-me com aquela figura esquálida, os cabelos finos escapando da cartola impecavelmente contrastante com seu macacão azul escuro de zelador, onde repousava o misterioso crachá intitulado “Ed”. O semblante sereno e sorridente me fitava pacientemente, enquanto o queixo repousava sobre o cabo da vassoura que levava consigo. Ainda com a carta e o camafeu em mãos, simplesmente deixei o meu olhar transitar daquela figura misteriosa à minha frente para a foto datada de tantos anos atrás. Tentando achar um equilíbrio entre o pânico e a busca (natural) pela lógica, tentei balbuciar...

            - M-m-as.... C-como? – foi o que pronunciar. – Quem... é... você?...

            - Sou Ed, senhorita. – disse, abrindo um largo sorriso enquanto retirava a cartola da cabeça e fazia uma breve e honrosa reverência. - A seu dispor.

            - Mas você... essa carta... essa fotografia...

            - Ah, sim... – falou, desviando o olhar para nenhum ponto em particular no quarto, deixando exalar um suspiro saudoso. - Minha doce e amada Celestine... – Após uma breve pausa, voltou seus profundos olhos para mim e disse... - Sabe, senhorita... uma lenda antiga diz que um sábio, em busca da elevação espiritual plena, dedicou toda a sua vida a estudar as maiores qualidades e os sentimentos mais elevados que poderiam permear a humanidade, entendendo que, caso conseguisse vivenciá-las em sua plenitude, alcançaria a vida eterna. Analisou a fundo a alegria que escorria por entre o riso genuíno de uma criança que recebe o mundo sem cobranças, mas com gratuidade... Avaliou o brilho que emanava da gratidão em meio ao orvalho de quem foi resgatado em meio ao abismo das próprias dores.... Estudou o perfume da caridade nas mãos de quem se oferece em doação plena e absoluta, sem mas, e nem porém... Teorizou sobre o poder imensurável do perdão sincero, capaz de cicatrizar danos na alma de quem lançou a flecha envenenada, mas principalmente, de quem recebeu o veneno e fez dele elixir de aprendizado e crescimento. Avaliou cuidadosamente os poderes da sinceridade, que faz surgir espelho cristalino no qual se refletem as ações de bem para aquele que lança ao mundo sua mais verdadeira expressão de ser. Esquematizou todas as formas de salvação pela fé, compreendendo as pontes criadas por entre os vales do desespero por esse mecanismo indelével de resignação e entrega. Descreveu todos os pormenores da humildade, compreendendo os segredos desse mecanismo grandioso de lapidação da alma. Entendeu sobre o respeito às diferentes formas de ser, em essência, visto que não há progresso se não houver desafios que impulsionem à compreensão e modificação de suas próprias limitações.

“Esse sábio dedicou toda a sua existência em prol do conhecimento aprofundado sobre todas essas qualidades que poderiam fazer com que a humanidade desse um salto em direção ao verdadeiro estado espiritual da vida. No entanto, após anos de dedicação e esforço, percebeu que havia um sentimento que não conseguiu teorizar e nem compreender em sua totalidade: era o amor. Por maiores que fossem as suas tentativas, não conseguia aprofundar-se na compreensão dessa qualidade tão evidente em tantas circunstâncias humanas. Muito frustrado, considerou-se falho em sua missão, e decidiu se isolar em uma caverna no topo de uma montanha, envergonhado de si mesmo e fadado a aguarda o seu fim.

“Durante a escalada para o isolamento, após dias e noites em claro, sob sol e chuva sem cessar, ouviu uma voz que vinha de lugar algum em particular. Ela lhe disse: ‘É impossível encontrar sentido e explicação para o amor nas experiências humanas, uma vez que esse sentimento é essencialmente divino. Ao ser humano foi concedida a oportunidade de vivenciar as manifestações do amor, mas não são suas as bases dessa qualidade que é resultante do pulsar divino. Às vezes intitulam ‘amor’ manifestações superficiais de carinho, zelo e cuidado. Mas quem efetivamente vive o amor em sua manifestação mais profunda, sabe que não há substantivo que nomeei ou adjetivo que qualifique de forma abrangente esse sentimento. Foge do universo humano, porque é de essência divina, do universo transcendente. Não está no olhar, mas no suspiro silencioso que ninguém ouve. Não está no abraçar, mas no calor que se troca, e ninguém percebe. Não está no declamar de juras, mas nos segredos que se troca no silêncio das madrugadas. Não está nos sacrifícios que se faz em nome dele, mas nas ações diárias que nem são nomeadas, mas que constroem castelos de areia em pleno oceano da vida. Não está na palavra, mas no que transborda do que não foi dito. Não está nas ações, mas nos atos que não se vê. Não está no humano, mas na essência divina que vive em cada ser. E por isso não pode ser explicado ou teorizado. Amor, meu caro... foi feito para ser vivido. Sentido. E doado. O amor, afinal, só poderia ser essencialmente divino, já que é o único sentimento capaz de vencer a morte. Seus laços são tão sólidos que não podem ser vencidos pelo tempo, pela distância, ou mesmo pela morte. É ele, afinal, que lhe oferece a vida eterna, visto que quem ama, em plenitude, experimenta a eternidade no infinito de seus laços.’. Nesse instante, o sábio percebeu que sua missão não estava falha, afinal, mas simplesmente incompleta. Retornou ao convívio humano e dedicou todo instante restante de sua vida a praticar cada sentimento que dominava tão bem na teoria, com a esperança de que, algum dia, fosse merecedor de experienciar aquele que verdadeiramente era o degrau final na jornada da verdadeira elevação espiritual, e que romperia as barreiras entre vida e morte: o amor.”.

Absolutamente inebriada pelas palavras que fluíam naturalmente de Ed, deixei-me relaxar um pouco e comentei:

- O senhor acredita realmente que o amor é capaz de vencer a morte?

- Ora, minha cara... Vida e morte são apenas nomes que damos para lados opostos de uma mesma janela. Se você olhar daí, me verá lhe olhando daqui. Mas é só isso... paisagem, imagem, visão... As realidades por trás dessa única janela que nos separa são apenas as consequências de nosso próprio olhar. E sendo apenas uma janela... Basta abri-la que lhe saúdo com gosto, lhe abraço com saudade, e lhe ofereço meu mundo, da mesma forma que pode me oferecer o seu. É só uma janela, e através dela ainda se pode declamar juras, trocar segredos, contar boas histórias, compartilhar prosas, entoar poesias, e amar.

- O senhor fala como se tudo isso fosse muito simples... Como se vida e morte fossem só...

- Passagem. E são. Passamos por aqui, para mais tarde passar por lá, e permanecemos passando, de um lado para o outro da janela. Ditosos os momentos em que nos encontramos do mesmo lado daqueles que nos são caros ao coração. Podemos crescer e aprender juntos e, se tivermos sorte, amar. Mas se chega o momento em que se faz necessário viver um período de tempo em lados diferentes, não há razão de desespero. Afinal, podemos nos ver através da janela. Podemos embaçá-la com lágrimas de desespero, opacifica-la com a revolta ou mesmo trancá-la definitivamente com as mágoas do coração. Ou então, podemos escancará-la para matar a saudade do perfume, entreabrir nos momentos de recordação e permitir que o amor lustre constantemente esse tênue vidro de separação, mantendo fortalecidos os laços que nunca se rompem.

- Foi isso que você tentos dizer a Celestine em sua carta? Que não era uma separação, mas um até logo...

- Sim... Eu nasci nesse hotel, cresci e muito aprendi aqui. Vi os melhores e os piores momentos deste que se tornou o meu lar. Na juventude conheci minha doce Celestine, que também trabalhava aqui à época. Não digo que nos apaixonamos de imediato, porque paixão é brasa que perde intensidade... Nos reconhecemos de imediato como sinfonia do coração um do outro, e desde então nunca nos separamos. Foram anos de cumplicidade... Compartilhamos risos e lágrimas, porque toda estrada tem perfumes e espinhos para nos fazer crescer, mas sempre juntos, respeitando e impulsionando o outro, caminhamos lado a lado. Até que um dia me vi gravemente doente, com os dias contados, sem chance de cura... Eu percebia que Celestine estava se esvaindo junto comigo, e isso não podia acontecer. Ela ainda tinha muito o que viver, e naquele momento eu iria somente mudar de lado, em nossa janela... Por isso escrevi a carta, para que selássemos o compromisso de viver intensamente enquanto tivéssemos oportunidade, e depois aguardaríamos o reencontro, cada um do seu lado da vida... Lembro que eu já não conseguia mais ficar muito tempo acordado, e por isso deixei a carta para que ela lesse enquanto eu estivesse repousando. Lembro de acordar um pouco a tempo de vê-la chorando entre as letras, e depois repousou ao meu lado no leito, já serena, na certeza de que o amor é mais forte do que qualquer separação. Lembro que agradeci em oração a oportunidade de viver tão plenamente ao seu lado, e adormeci, já acordando do outro lado da janela...

- Então quer dizer que você... está...

- Lhe vendo do outro lado, minha cara... E posso lhe dizer que os anos em que fiquei separado momentaneamente de minha Celestine tiveram a saudade amenizada exatamente porque eu a via daqui, e ela me sentia daí, já que mantínhamos nossa janela aberta em nome do amor.

            - E ela... já...

            - Ah, sim! Tive a honra de ir recebe-la anos depois! Atravessei a janela e a peguei nos braços, como quando fazia quando éramos jovens! Acariciei seu rosto lindamente enrugado pelo tempo, dei-lhe um beijo na testa e disse: Chegou a hora de irmos. E ela despertou aqui, ao meu lado, jovem como antes, e com o mesmo amor que nos alimenta nessa nossa eternidade. E afinal, minha cara, é disso que se trata a vida: amar, insana e verdadeiramente, e permitir-se ser amado, profunda e plenamente.

            - E porque... porque estou lhe vendo?

            - Me vendo? É só uma janela, senhorita... Esse reflexo é seu...

            - Como?

            Foi quando senti uma mão em meu ombro e me virei assustada, para me deparar com uma titia Gertrudes irritada.

            - Ora essa! Você acha isso bonito? Me deixou sozinha em um passeio ecológico absolutamente exaustivo para ficar aqui dormindo?

            - O que? – perguntei, olhando ao redor e percebendo que eu estava encostada no batente da janela de nosso quarto. A cômoda do quarto estava fechada e não havia nenhum sinal da chave por perto. Nem da carta ou do camafeu. Levantei-me e tentei abri-la. Sem sucesso.

            - E não bastasse o desleixo para comigo, agora me ignora complemente! – disse titia, fazendo sua típica cena teatral enquanto se jogava na cama. – Ah, ainda bem que tenho você, meu querido Garibaldi Feliciano! Venha, venha me dar um pouco de amor!

            E o gato pulou em seu colo e ficou me olhando misteriosamente, enquanto recebia afagos e chamegos em seu pelo. Por um instante senti que ele sabia... ele tinha que saber... aquilo não poderia ter sido um sonho...

            - Eu não entendo... – comentei, passando as mãos pelo cabelo e me aproximando da janela. – Foi tão real... – murmurei, olhando para o outro lado. A vista do jardim do hotel estava absolutamente esplêndida, com flores desabrochando e árvores frondosas envolvendo todo o horizonte. Observei as pessoas que passeavam ao redor da fonte antiga, e prendi a respiração quando vi um casal de costas: uma mulher com cabelos ondulados, com um bonito vestido, ao lado de um homem magro, mas elegante, vestindo um fraque escuro e com uma... cartola na cabeça!

            Como se ouvindo meus pensamentos, ele se virou, sorriu para mim e piscou. Levantou a cartola e fez um aceno com a cabeça. Instintivamente sorri de volta e toquei a janela, quase como se tentando alcançá-los. E no momento em que pisquei, eles desapareceram da minha vista, deixando em mim o desejo de que algum dia aquela janela se abrisse novamente, e eu pudesse desfrutar de mais alguns instantes de eternidade com o misterioso, doce e tão cortês: Ed.