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Ed - parte 4 (e se aproxima o fim...)

30 de Março de 2019 às 20h00

Ana Cecília Novaes

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                Ainda sem fôlego pela descida apressada do sótão, cheguei ao quarto onde titia Gertrudes e eu estávamos hospedadas a tempo de ver Garibaldi Feliciano cutucando a mala de titia em busca, muito provavelmente, de petiscos (nada saudáveis, como eu vivo dizendo a ela – e sendo ignorada, obviamente, dado o tamanho da barriga daquele gato). No entanto, eu estava tão agradecida por tê-lo encontrado (o que me pouparia de anos de lamentação por parte de titia) que simplesmente fechei a porta rapidamente e abri a mala dela, deixando que ele se esbaldasse em seus quitutes.

            - Por Deus, Garibaldi! Você tinha que correr o hotel inteiro? – falei, me jogando na cama em plena exaustão. – Essa viagem está me saindo um verdadeiro fiasco, honestamente... – murmurei, para ninguém em especial, já que Garibaldi estava fazendo um excelente trabalho me ignorando em detrimento da comida que havia encontrado, que se espelhava pelo chão do quarto juntamente com o que parecia ser... uma chave. – Mas o que é isso?... – perguntei, me levantando para alcança-la.

            Peguei a chave e me lembrei que Garibaldi havia saído do sótão com uma chave na boca. Creio que, em meio ao susto de perdê-lo novamente e ao estranho desaparecimento de Ed, esse detalhe me tenha passado despercebido. Analisei a chave cuidadosamente, e vi que deveria se tratar de um dos itens da mobília original do hotel, dado sua estética de cobre extremamente bem desenhada e antiga. Não era grande nem pequena demais, e tinha um desenho entalhado em sua cabeça, uma espécie de brasão. Imaginei que Garibaldi deva ter pego em algum canto do sótão, e estava me virando em direção à porta para voltar e devolver, quando me deparei com a tal cômoda na quina do quarto, que havia visto mais cedo, afastada de todo o restante da mobília, cuja gaveta havia tentado (inutilmente) abrir. O desenho entalhado nela era exatamente o mesmo que se encontrava na chave, e tomada por um surto de expectativa e curiosidade (além de um certo frio na barriga), corri até ela e coloquei a chave na fechadura. Entrou. Girei. Abriu.

            Abri a gaveta com cuidado, com receio de danificar alguma parte de sua estrutura, dado os anos que aparentava ter, mas ela se abriu sem um rangido sequer, revelando em seu interior um papel antigo, borrado em algumas partes e desgastado pelo tempo. Ao lado dele havia um camafeu de cobre, com o mesmo brasão da chave e da gaveta. Com delicadeza, peguei o papel e vi que se tratava de uma carta, com palavras registradas com uma caligrafia impecavelmente desenhada. Com o coração acelerado sem nenhum motivo aparente, comecei a ler...

            “Não derrame uma só lágrima, pois ainda há tempo. Há tempo para que eu lhe abrace uma vez mais, em meio a esses braços calejados pela vida, mas enriquecidos pelo trabalho honesto que se orgulharam em obrar. Ainda há tempo de vermos o nascer de um hoje, trazendo um futuro de possibilidades que nunca saberemos, e resguardando um passado que sempre irá velar nossas lembranças. Ainda há tempo de fazermos chorar orvalhos de emoção em um entardecer que não precisa de palavras, apenas de silêncio, e plenitude. Ainda podemos dançar mais uma valsa, bailar mais um xote, recitar aquele nosso primeiro soneto. Posso lhe contar sobre o brilho das estrelas que vejo em seus olhos, ou sussurrar no silêncio de nossas juras o quanto teu particular me faz singular. Ainda temos tempo para um café depois das seis, um piquenique sob o luar ou um passeio em meio à multidão de nós dois. Posso ainda lhe lembrar o quanto seu sorriso se faz verso nesse meu soneto de sonhar, e o quanto eu ainda desejaria muito te admirar.

“Não se preocupe, minha querida, ainda há tempo. Não para últimos, mas para mais um, mais umas, mais tantos, até que seja hora de partir. Mas não chore, eu suplico! Pois que ainda há tempo, e enquanto houver tempo, eu haverei de aproveitar. Perceba como faz parte da vida, a morte. O sol morre no horizonte para fazer nascer a noite, majestosa, e repleta de possibilidades no sonhar. O vento morre na montanha para trazer a calmaria das paragens. A chuva morre na terra, para renascer no ar, e renovar-se no infinito ciclo da vida.

“Pois é sobre isso, afinal, que se trata esse pequeno prelúdio de nossa passagem: chegamos para partir, e partimos para chegar onde devemos estar. E assim estamos. Estamos aqui, para depois estarmos lá. E estando, é nossa obrigação aproveitar ao máximo para nos fazermos inesquecíveis, e nos fazermos lembrar. Somos perfumes que passam, não permanecem, mas se fazem sempre lembrar. Somos aves que buscam seu recanto, somos outono em busca de nossa primavera. Não há porque chorar, afinal. Somos sopro. Sopro de vida, sopro de Deus. E por sermos da divindade, trazemos conosco a potencialidade de sermos, em nosso mais verdadeiro manifesto, a mais pura expressão da vida.

“Precisamos viver, viver verdadeiramente! Não ter medo de amar, não ter vergonha de sorrir, não temer chorar, não evitar a dor e não deixar de aprender com ela. Não deixar de caminhar, não se desesperar ao cair, mas não deixar de levantar. E tentar. E lutar. E não desistir. Porque a vida é valiosa demais para se abrir mão. Então viva! Viva intensamente, loucamente, docemente, vivamente! Mas viva! Até o último segundo. E no teu último segundo, olhe para si mesmo. Dê uma boa gargalhada, ou um suspiro de emoção, e agradeça, do mais profundo de sua alma, porque você viveu, plenamente, e estará pronta para partir. Com alegria e plenitude, embarcará no barco da morte para renascer em um novo ciclo de aprendizado, crescimento, e vida. Morte e vida, vida e morte. São só palavras, minha querida, só palavras... o que realmente importa é o que fazemos com elas, e o que deixamos que façam conosco.

“Por isso, vamos aproveitar, pois ainda tenho mais uma canção para lhe ofertar, mais uma rosa para lhe oferecer, mais um beijo para lhe roubar. Ainda tenho, minha doce flor, mais alguns instantes para te amar, e farei com que sejam infinitos, pois que, não importa se for na morte, ou na vida: eterno é, e sempre será, o meu amor por você.

“Estarei logo ali, na eternidade, lhe aguardando com esse mesmo sorriso torto, e esse olhar apaixonado. Não se apresse em chegar... Temos todo o tempo do mundo, deste e do outro, você verá.

“Com amor, do seu sempre...

“Ed.”

Com lágrimas nos olhos, deixei que escorressem orvalhos emocionados diante um sentimento tão belo e puro quanto o amor que transbordava naquela carta. Não era algo a ser explicado, mas sentido, e devia ter sido magnânimo ter vivido.

Secando as lágrimas, peguei o camafeu na gaveta e o abri. Lá estava a foto em preto e branco de uma linda jovem com cabelos ondulados longos e um sorriso doce e sincero. Ao lado, a foto de um rapaz que devia ser apenas um ou dois anos mais velho que ela, com um sorriso torto e uma... cartola. Ed! Só poderia ser Ed, anos mais jovem! Quase apagada, na borda do camafeu estava a data quando as fotos foram ali colocadas. Com dificuldade consegui ler e fiz as contas... não... impossível! Segundo meus cálculos, mesmo sendo uma foto de Ed mais novo, ele, a essa altura, já deveria estar...

- Morto? – falou uma voz atrás de mim...