- Garibaldi... – sussurrei entre os dentes. – Garibaldi Feliciano, seu gato abusado, se você não aparecer nesse instante eu juro que... – interrompi a manifestação mais honesta do meu desespero considerando que talvez aquela não fosse a forma mais inteligente de convencer alguém (ou um gato mimado) a sair de onde quer que ele estivesse se escondendo.
Eu já havia ido a todos os cômodos do hotel e, devo dizer, ele é muito maior do que parece ser, por fora (minhas pernas que o dizem). Da cozinha à lavanderia, do saguão aos jardins... inclusive até entrei “por engano” em um dos quartos de hóspedes, cuja porta estava semi aberta, considerando que Garibaldi pudesse ter aproveitado aquela brecha para procurar um lugar quente e aconchegante para se aninhar (eu vivo dizendo a titia que comprar uma cama só para um gato dormir é um exagero no universo dos mimos, mas um “você se sentiria confortável dormindo no chão? Foi o que pensei... então na espera que eu deixe o meu amorzinho passar por isso, não é mesmo” sempre me lembrava que no mundo de titia, existiria sempre Garibaldi, e o resto da humanidade. E não duvide: ele sempre ganha.).
Depois de quase ser expulsa a tapas pelo tal casal de namorados que provavelmente passou a canalizar a raiva que tinham de titia para a sobrinha louca, resolvi me dar por vencida e assumir para titia que o bendito gato havia fugido... O que poderia haver de tão ruim assim? Um pouco de lágrimas, é claro... talvez um caminhão pipa delas, se acumulando nos vales mais profundos da minha consciência que eternamente faria ressoar na minha mente como fui responsável pela infelicidade eterna de minha doce titia, que tão gentilmente me acolheu em sua residência com seu... amado (e desaparecido) gato. Não, aquela não era uma opção! Movida pela esperança (ou pela culpa), decidi procurar mais uma vez, sussurrando o nome dele e torcendo para que ele sentisse o amor (e desespero) na minha voz. Eu ainda tinha cerca de uma hora até titia voltar do passeio ecológico (gratuito) que o hotel oferecia, e como a maior parte dos hóspedes havia ido também, eu teria mais liberdade para encontrar (com sorte) Garibaldi Feliciano.
Caminhei novamente pelo saguão de entrada, subi as escadas antigas de madeira entalhada até o corredor principal e quando estava pronta para inocentemente abrir “por engano” outro quarto de hóspedes, notei uma escadinha que havia passado despercebida em minha primeira busca. Estava encostada discretamente no canto do fim do corredor e, realmente, passaria despercebida não fosse a portinhola que estava pendente acima dela, rangendo com um som que refletia os anos em que não fora usada. Conclui que a tal escada levava ao sótão e, considerando o vão aberto, talvez Garibaldi pudesse ter se embrenhado por lá.
Com um sorriso esperançoso fui até o final do corredor e subi a escada, vagarosamente, com receio de que o tempo pudesse ter desgastado alguns degraus também. Curiosamente, estavam rígidos, e em perfeito estado de conservação, como se fossem novos. Cheguei ao topo e coloquei a cabeça para dentro do vão, com cuidado, não porque tenho medo do escuro, mas porque tenho pavor do que vive dentro do escuro. Na expectativa de encontrar ratos, morcegos ou outros seres rastejantes prontos para atacar a primeira cabeça que se aventurasse por aquela portinhola, me surpreendi ao ver um sótão extremamente organizado, apesar de empoeirado. Com mais segurança, passei o restante do corpo e entrei naquele cômodo que parecia guardar móveis e utensílios que um dia foram parte do hotel.
Uma pilha de poltronas estilo colonial mostravam a exuberância que o hotel devia ter revelado nos seus tempos áureos. O estofado detalhadamente bordado deixava claro que o que importava ali era exatamente a preciosidade das minúcias. Um tapete enrolado fora colocado num canto da parede e alguns quadros pintados à mão foram empilhados no outro. Havia apenas uma pequena janela redonda de madeira que deixava discretos raios do sol da tarde iluminarem o ambiente, mas de uma forma curiosa a penumbra não me impediu de ver uma grande arca posicionada entre cadeiras e um lustre antigo. Me aproximei, fascinada pelo desenho estampado na tampa, algo como se fosse um brasão de cobre. Me abaixei em frente à arca e percebi, para minha felicidade, que ela estava aberta. Empurrando a tampa me deparei com vários álbuns de fotografia, datados da inauguração do hotel, há noventa e sete anos atrás. Folhei algumas páginas e pude ver os momentos mais marcantes na história daquela construção que parecia guardar muitas lembranças por entre as paredes. Vi fotos já envelhecidas com as primeiras famílias que se hospedaram por ali, e outra do provável dono do hotel cumprimentando grupos de hóspedes dos mais diversos locais. Havia uma foto de confraternização dos funcionários, e outra com um casal (reconheci como sendo o cozinheiro e a arrumadeira) segurando um bebê na frente do hotel.
- Quantas famílias devem ter surgido e passado por aqui... – murmurei, sorrindo.
- Mais do que eu possa contar... – falou uma voz atrás de mim.
Dei um grito e me virei assustada, me deparando com Ed. Ele estava trajando o clássico uniforme com o crachá que leva seu nome e sua curiosa cartola. Os finos cabelos que escapavam de seu adorno peculiar pareciam mais desgrenhados que no primeiro momento que o vi, mas nada diminuía a singularidade daquela figura magra segurando um cabo de vassoura e... sorrindo.
- Passaram risos, lágrimas, conversações silenciosas e silêncios escandalosos, e só permaneceram: lembranças. E afinal, é o que nos faz reais, não é mesmo?
- Pelo contrário... lembranças são memórias do que não existe mais, então não se trata do real, não acha?
- Ah, não, minha cara... Lembranças são a chave do que temos de mais real! Tudo que nos ocorre, as pessoas que passam por nossas vidas, os momentos que vivemos... todos os acontecimentos são registrados como um filme em nosso ser e recebem as cores das emoções em nossa alma e as molduras da razão em nossas mentes. E o resultado é a composição de um álbum de lembrança particular, que cada vez que é aberto traz à tona os sentimentos, as sensações, as perspectivas e os efeitos que aquele momento nos causou.
“E pense bem... somos apenas consequência de cada um desses eventos que ficaram em nossa memória consciente ou inconscientemente, já que tomamos atitudes, geramos pensamentos e criamos sentimentos em decorrência de tudo o que nos acontece. Se alguém faz algo bom para mim, registro em minha consciência aquele fato e crio as consequências racionais e emocionais desse evento na minha vida: passarei a ter sentimentos bons, como gratidão, para com aquela pessoa. É uma consequência lógica. E sempre que me lembrar do fato, surgirão em meu ser os sentimentos bons que decorrem daquele primeiro evento positivo. São as lembranças criando o real, modificando o nosso presente. E com os eventos negativos também... Imantamos uma imagem negativa em nosso ser e quando as lembranças vêm à tona, sentimos as mesmas emanações negativas, as mesmas angústias, as mesmas raivas... por vezes o racional nem mais se recorda do motivo, mas o emocional traz a enxurrada de vibrações negativas e maléficas que perpetuam o ciclo e trazem para o real algo que poderia ter ficado no passado. E é aí que o ser humano se deixa afundar no vale de sua própria pequenez, deixando de usar esse grande instrumento que é a lembrança.
“Lembrar é maravilhoso quando se usa a lembrança do que não foi bom para criar um presente melhor. Quando as recordações das mágoas são usadas para reaver erros. Quando a imagem das lágrimas se tornam mecanismos de limpeza da alma, e não oceanos de lamentação. Quando inimizades são encaradas como meras perspectivas diferentes de um mesmo mundo, e não motivos para guerrear. E em relação a lembranças boas também... Podem se tonar motivos para multiplicação de sensações positivas, ou desculpas para estagnar no que foi, e não volta mais...
“Perceba que as lembranças trazem o passado para a realidade do presente, dando a oportunidade bendita de modificar o que foi ruim e renovar o que foi bom. No entanto, é necessária sabedoria para utilizá-las dessa forma. Memórias não existem para paralisar, mas para motivar. Não são desculpas para atacar, mas para aprender, e perdoar. E a escolha é nossa deixar que haja apenas um ciclo vicioso guiando nossas vidas. É nosso dever ressignificar o que não foi bom, e potencializar aquilo que foi. E assim, desfrutar das lembranças e deixar que elas nos envolvam nesse espetáculo que é a vida!”
Eu estava novamente abismada com tamanha sabedoria e plenitude vindas daquele ser peculiar. Meus pensamentos ainda estavam absortos, mas diante uma oportunidade única, me apressei em perguntar:
- Ed, você é filho de algum antigo zelador, ou algo assim? Eu vejo essas fotos e lá está uma pessoa tão parecida com você que eu até diria que é você se não fosse impossível...
- O impossível se esconde no limite tênue entre o que posemos explicar e o que vai além de nossa compreensão...
- Mas é claro que não é você... – falei, com um sorriso sem graça - Você teria que ter uns cento e tantos anos... ou ser um fantasma... – completei, esperando que ele dessa uma boa gargalhada... O que ele não fez.
- Talvez a chave da resposta esteja diante de você...
- Como é? – perguntei, no instante em que Garibaldi saiu de dentro da arca com uma pequenina chave na boca, correndo pela escada abaixo.
Ainda corri até o vão de entrada do sótão para tentar alcança-lo, mas aquele gato incrivelmente rechonchudo conseguiu descer os degraus em uma velocidade incrível. Virei-me para falar com Ed novamente, mas ele havia sumido. E a questão é: como? Se a única saída era aquela na qual eu estava parada em frente...
Um calafrio subiu pela minha coluna e tratei de descer rapidamente a escada, ainda a tempo de ver Garibaldi entrar no quarto que, graças a Deus, era o meu e de titia! Fui atrás dele, mas sem conseguir tirar da mente a fala de Ed, mas principalmente a pergunta: quem, afinal, era ele...