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Chantilly com canela

13 de Janeiro de 2024 às 15h05

Ana Cecília Novaes

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Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!

https://open.spotify.com/episode/3m2DxYLBjPtVfBh7ltaUdN?si=7331ef072875449a

           - Você já sentiu falta de algo que nunca teve?

            Olhei para o lado enquanto limpava a borda de chantilly dos meus lábios, ainda sentindo o gostinho da canela que se misturava ao frapê de capuccino que eu havia pedido para aliviar as tensões daquela manhã. Não sabia exatamente o que responder, na verdade nem sabia ao certo se a pergunta fora direcionada para mim. Para ser bem sincera, eu estava tão imersa em meus pensamentos que nem sei dizer quando ele havia sentado ao meu lado na cafeteria, mas devo admitir que aquela figura teria chamado a minha atenção em outras circunstâncias.

            Um homem de porte médio, cabelos na altura dos ombros, já com algumas mechas grisalhas apesar de provavelmente não ter mais que quarenta anos. Olhos cansados, rosto abatido, um casaco excessivamente usado e até inadequado para o clima ameno que fazia naquela época. Mas sinceramente, até que caia bem nele, já que seu corpo como um todo exprimia uma certa energia de desleixo... ou melhor, exaustão.

            Ao que pareceu, a pergunta realmente era para mim, porque enquanto eu analisava o arquétipo ao meu lado, seus olhos, que até então miravam um copo vazio e limpo, envolvido fortemente entre seus dedos, se ergueram para encontrar os meus. Um olhar sofrido, repleto de melancolia e, ouso dizer, marcado por um pedido de ajuda silencioso e absolutamente urgente.

Algo constrangida por não saber do que se tratava, e considerando que ele poderia ter começado uma conversa comigo instantes antes e eu não havia prestado atenção por estar demasiadamente absorta em meus próprios pensamentos, comecei sem jeito:

            - Hum... – limpei a garganta, ganhando tempo. – Bem... sentir falta presume que havia, antes, alguma coisa, ou uma pessoa, ou um lugar, que agora está ausente... então, teoricamente, não dá para sentir falta de alguma coisa que nunca teve...

            - Parece certo... – murmurou ele, quase que em reflexão para si próprio, voltando o olhar para o copo vazio entrelaçado em seus dedos. – Mas ainda assim... não poderíamos traduzir como saudade um desejo, ou um desejo como saudade? E quando passamos a almejar algo que não temos, estamos na verdade sentindo falta de algo que nunca tivemos, como se nosso cérebro, nosso coração, nossa alma, gritasse em busca de algo nunca antes sentido ou vivido, por não tolerar um sentimento de vazio e incompletude?

            Surpreendida pela complexidade de suas reflexões, pensei em silêncio, e me vi olhando para aquele mesmo copo vazio e limpo, entrelaçado em seus dedos, me perguntando quantas vezes desejei ter ou viver, quando na verdade estava querendo ter de volta ou viver novamente algo absolutamente novo.

            - Nunca parei para pensar dessa maneira... – comentei, olhando agora para o meu próprio copo vazio, manchado pelo resto de frapê de capuccino com canela, algo que havia experimentado pela primeira vez hoje, e me perguntando o real motivo daquele pedido: sentir algo novo ou vivenciar algo que me faltava.

            - Você tem sorte. – Comentou ele, enquanto girava o copo de uma mão para outra. – A maioria tem, na verdade. Sentir que se deseja algo é muito mais prazeroso do que a sensação de que falta algo dentro de si... mas na verdade, as duas experiências são faces de uma mesma moeda. Passamos a vida buscando, almejando, idealizando, com a ilusão de que queremos algo absolutamente novo, mas quando conquistamos aquilo, comparamos a sensação de conquista com sentimentos que já temos dentro de nós. Veja que disparate! Comparamos a sensação de conquista de algo novo com uma base de sentimentos que são absolutamente conhecidos dentro de nós, então aquilo que é novo, deixa de ser, em essência, e se torna a vivência de algo que não tínhamos, mas que nos fazia muita falta. Percebe como mudamos a ótica dessa nova experiência? E com isso o brilho e o sabor desse “novo” diminui, já que tem uma sensação de familiaridade, e nos colocamos como eternos sedentos de um algo que não sabemos explicar, e que provavelmente nunca será efetivamente concretizado, já que sempre será comparado com um quê de familiaridade dentro de nós... e isso leva a um oceano de infelicidade e decepção... A busca pelo novo passa a ser inútil, já que nunca estaremos completamente preenchidos...

            Desviei o olhar do meu copo para o dele e, novamente, do dele para o meu, e disse:

            - Realmente, talvez estejamos fadados a sempre comparar o novo com a nossa base de vivências prévias, mas isso não precisa implicar em infelicidade se o fim não for o objetivo, mas a trajetória. O humano tem sim uma necessidade de buscar o novo, e ao alcançá-lo, buscar um novo “novo”, em uma incessante necessidade de sentir-se renovado por experiências únicas e tão inovadoras. Mas talvez o grande segredo seja em desfrutar da trajetória que nos leva a esse suposto “novo”, nos deliciando com cada pedacinho inédito de uma jornada que, em definitivo, não tem como ser igual a uma anterior. Ao chegar em meu destino final preciso encará-lo com os mesmos olhos que fizeram o meu primeiro despertar da vida, mas ao longo do trajeto posso optar por olhar os diferentes ângulos da jornada, absorvendo diferentes expressões de uma linda estrada que se torna única, em essência. E isso faz com que valha à pena buscar o novo, exatamente porque nunca estamos completamente preenchidos...

            “Sempre haverá um espaço para novas experiências, para um sonho novo, para uma gargalhada nunca antes ouvida... Sempre haverá lugar para um tom de pôr-do-sol nunca antes visto, ou para um mergulho em águas nunca antes exploradas. O fato de nunca estarmos completamente preenchidos deve ser a nossa força motriz para permanecer em busca, não pelo objetivo final, mas pela deliciosa jornada que nos leva até ele, e depois a um novo objetivo, e a mais outro, porque as trajetórias são as verdadeiras responsáveis por nos preencher, infinitamente, de novos sonhos, desejos e aspirações...

            “Hoje, por exemplo, vim em busca de alívio de angústias, e resolvi experimentar pela primeira vez esse frapê de capuccino com canela. O frapê em si não me trouxe muita novidade, aliás, minha tia Gertrudes faz um bem melhor com toques de cacau em pó, mas enquanto vinha para cá me deparei com uma frase em um ônibus que parou em frente à essa cafeteria exatamente quando eu entrava: ‘Seja você o próprio realizador de seus sonhos’. E enquanto estava aqui sentada tomando esse suposto novo frapê, que nada tem de inovador para mim, percebi que as angústias que vim aliviar aqui eram totalmente de minha responsabilidade, e cabe a mim encará-las e removê-las como obstáculos da realização de meus sonhos. Sinceramente, vale mais permanecer sonhando, insistir acreditando, e seguir caminhando, do que não ousar olhar pela fresta da janela de oportunidades, fechando-se para o mar de tantos “novos” que a vida pode nos oferecer, seja por medo de se frustrar ou pela possibilidade de nunca realmente se sentir completo, como se deseja...”

            Com lágrimas nos olhos, ele agora me encarava em silêncio. Dando um suspiro profundo, ele soltou o copo vazio e limpo que segurava e, olhando para o atendente do balcão que passava naquele instante, pediu, com a voz embargada:

            - Por favor, pode me trazer um copo de frapê de capuccino com canela?

            - Com ou sem chantilly? – perguntou o atendente, enquanto pegava o seu bloquinho para anotar o pedido.

            - Com, por favor. – E se virando para mim, completou com um sorriso cansado, mas esperançoso: - Estou sentindo falta de algo que nunca tive, e quero continuar tentando encontrar.