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Carta de amor...

30 de Agosto de 2022 às 10h35

Ana Cecília Novaes

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Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!

https://open.spotify.com/episode/4wfgTxD2K5SroYIlnmnMhw?si=c0a66c1e196f4470

             - Anda, menina! Traz a aguinha fresca que eu e o Garibaldi estamos morrendo de sede! – bradou titia da varanda, enquanto ajeitava o guarda-sol para melhor proteger a cútis, ou melhor, os pelos alvos de seu bendito gato que repousava, ao seu lado, em uma cadeira de sol. Posso jurar que ele me lançou um olhar pomposo, acrescentando mentalmente “com cubos de gelo frescos, por obséquio”, mas resolvi ignorar a audácia daquele gato e simplesmente entrei rapidamente para dentro da casa, porque a minha vergonha estava maior que minha implicância com Garibaldi e toda sua pompa de gato rei.

Na verdade, eu estava torcendo para que toda vizinhança tivesse sido subitamente sugada por uma nave alienígena e estivesse, naquele momento, tomando chá em Marte, porque qualquer bizarrice seria mais comum do que aquilo: titia de saída de praia, deitada na varanda de sua casa, tomando sol junto com Garibaldi e, obviamente, eu, que não sei dizer não. Honestamente, quando ela me disse naquela manhã que estava meio desanimada, eu imediatamente tratei de dar várias sugestões para levantar seu ânimo, porque não aguento ver aqueles dois pequenos olhinhos tristes naquele rostinho enrugado que eu tanta amava. Sugeri pegarmos um trem para as montanhas, ou ir na cafeteria que havia aberto no final da rua (aliás, fiquei sabendo que por lá servem um perfeito macchiato italiano, caso seja do interesse de alguém...), mas quando ela disse que só uma coisa lhe faria feliz naquele dia, não hesitei em falar: “perfeito, vamos fazer!”, antes mesmo de saber do que se tratava. Por Deus, quando é que eu vou aprender?!

            Acontece que titia havia ouvido no rádio uma canção que lhe relembrou sua mãezinha e as tardes que passavam juntas fazendo a arrumação de casa e gostosos quitutes para toda a família. Ao que parece, elas tinham uma tradição de se dedicar a terminar tudo até o início da tarde para, na sequência, tomar sol de biquini no quintal de casa. Sim, foi o que vocês ouviram! Não é de se assustar que titia seja... ham... algo peculiar... Pelo que parece, é de família... Portanto, titia teve a brilhante ideia de fazer isso hoje, em homenagem à sua mãezinha, mas como sua casa não tinha espaço adequado no quintal, nada mais lógico do que ir para a varanda, óbvio...

            E ali estávamos os três, eu, titia e Garibaldi Feliciano, tomando sol de tanga e biquini na varanda, quando ela me deu um bom motivo para me esconder dentro de casa quando me pediu água. Estava eu na cozinha, olhando pela janela de trás e pensando em nada, em especial, fazendo hora enquanto enxia a jarra de água fresca para os dois pomposos, quando um vulto passou pelo canto do meu olho, me surpreendeu. Assustada, desviei a atenção para o local onde o vulto tinha passado e mal pude acreditar nos meus olhos...

            - Mas o que é isso?... – murmurei, enquanto abria a porta da cozinha para melhor enxergar a cena à minha frente: um menino, com uns quatorze anos no máximo, pulava de telhado em telhado das casas geminadas do bairro, se equilibrando entre um pé e outro, tentando alcançar a casa ao lado da de titia. Senti meu coração apertar quando o vi escorregar em uma telha quebrada, segurando-se com rapidez e habilidade na calha ao lado, seguindo seu percurso e finalmente parando na casa ao lado. Sem entender o que estava acontecendo e obviamente sem bom senso algum, resolvi pegar a escada de titia, encostar no muro e chegar próximo dele, para saber que palhaçada era aquela! Como se euzinha fosse resolver alguma coisa, mas como uma boa sobrinha de titia, não pude deixar minha curiosidade de lado, e fui atrás de saber aquilo que obviamente não era da minha conta.

            Subi rapidamente a escada, com medo que ele se afastasse, sem ao menos pensar em como eu iria descer, já que eu morro de medo de altura. Quando cheguei encima consegui vê-lo melhor, e se tratava de um jovem de cabelos escuros, com uma pele tão alva que chegava a brilhar com os raios de sol. Ele estava tentando desencaixar uma das telhas da casa ao lado da de titia, e por um instante imaginei que pudesse estar querendo invadir, e foi quando gritei:

            - Ei, você!

            Ele ergueu os olhos para mim, negros como a noite, e percebi que estavam vermelhos e inchados. Foi quando notei que ele vestia um pequeno terno preto, e seu cabelo, agora despenteado, parecia ter sido cuidadosamente arrumado há pouco tempo. Ele abaixou os olhos e continuou a tentar tirar uma das telhas do telhado, e eu, agora com mais cuidado, tentei perguntar:

            - É... posso perguntar o que você está fazendo?

            Ele pareceu me ignorar e deixou um soluço escapar, enquanto eu o via, inutilmente, lutar contra a telha. Quando a frustração lhe invadiu, deu um tapa na telha e se pôs a chorar, sentando-se no telhado e abraçando as pernas, escondendo o rosto entre elas.

            Sentindo meu coração partir ao meio ao vê-lo naquele desespero, continuei subindo a escada e, indo contra todos os meus instintos de sanidade e sobrevivência,  me sentei ao seu lado e passei meu braço por sob seu ombro, e deixei que chorasse. Alguns minutos se passaram, e ali ficamos, observando os raios de sol se despedirem do dia, quando ele finalmente falou, fungando:

            - Foi o último pedido do meu avô.

            Olhei para ele, sem entender, e com os olhos mirando o horizonte, ele disse, lentamente:

            - Meu avô, meu melhor amigo, meu ídolo... as minhas primeiras lembranças da vida sempre o tiveram como protagonista, e que sorte a minha! Ele sempre foi uma pessoa cheia de vida, brincalhão, de bem com todo mundo. Tinha uma mania irritante de ver sempre o lado bom das coisas, e sempre achava um jeito de trazer o que havia de melhor nas pessoas. Me lembro de uma vez em que uma mulher começou a brigar no ônibus porque não tinha lugar para todo mundo e ela tinha que ficar em pé, e ele, que também estava de pé comigo ao seu lado, com um sorriso doce e amável, falou: “Que sorte a nossa termos pernas bonitas e saudáveis para nos sustentarmos diante todos, e fazermos um belo de um show!”, e a pegou nos braços e começou a dançar, de uma forma desengonçada e tão esquisita, que a mulher simplesmente caiu na gargalhada, assim como todo o restante do ônibus. Eu lembro como se fosse hoje do rosto dela se transformando de uma armadura rígida para um sorriso leve, e esse era o grande segredo dele. Tocar as pessoas de uma forma simples e especial, e fazê-las ver a vida com lentes mais doces e gentis. Lembro que eu implorava aos meus pais para me deixarem passar os finais de semana com ele, e as minhas férias eram todas em sua companhia. Quando eu ainda tinha medo de escuro, ele deixava a luz do corredor acesa, a porta do quarto entreaberta, encostava na minha cama e dizia, bem baixinho: “Não deixe o escuro ouvir que você tem medo. Ele é como uma fofoca: só existe enquanto alimentado. A escuridão é só uma tela onde a luz vai poder pintar as cores. Basta deixar a porta das possibilidades aberta, e permitir-se viver a aquarela da vida!”. E dali só saia quando via que eu adormecia, seguro e feliz. Quantas tardes de horas a fio ouvindo suas histórias mirabolantes, e tenho certeza que a maioria delas era inventada, e eu honestamente não me importava, e muito menos aqueles bons e velhos amigos que se juntavam a nós nas tardes de domingo, para escutar seus contos. Acho que a sua forma de desenhar a vida e o brilho com que trazia a realidade à tona se transformavam em força para todos nós, enfadados da realidade, que buscavam uma nova cor ao dia.

“E foi em uma dessas que ele contara sobre o seu grande amor de infância, o mais lindo que qualquer poema de amor já presenciara, como dizia ele. Uma troca inocente de olhares se tornou um diário frio na barriga ao ir no batente da varanda para espiar se ela estava ali, aguardando também lhe ver, e ela sempre estava. Ele dizia que as suas almas eram capazes de conversar à distância, e por isso não eram precisas muitas palavras para traduzir o que um coração queria dizer ao outro. Como os pais dela eram muito rígidos, e ele muito tímido, ele costumava subir nos telhados e, pulando de casa em casa, chegava até a casa dela e dava três batidinhas na telha que ele sabia que dava para o quarto dela. Abria um vão em uma das telhas e de lá jogava uma cartinha de amor para ela. Em resposta, ela deixava uma rosa no batente da varanda de sua casa, indicando que havia recebido a carta, e apreciado. Algum tempo de um amor silencioso se passou até que ele tomasse coragem para se declarar abertamente a ela e seus pais, mas nesse mesmo dia seu pai o mandou para o internato, e lá ficou, por anos, sem poder dizer a ela o quando a amava. Meu avô contava com olhos de lágrimas o quanto sofria a cada dia que se arrastava distante de sua amada, e o quanto sentiu sua alma dilacerar quando, ao voltar para a cidade, anos mais tarde, a vira com outro homem e seus três filhos, em uma praça. Ele poderia jurar que em seu rosto não mais estava o brilho que sempre vira, mas resolveu nem se aproximar, pois sabia que todo o futuro que eles poderiam ter tido, estava no passado. Com simplicidade ele contava que encontrara em minha avó sua espevitada companheira de jornada, mas eu via, e podia sentir, que seu verdadeiro amor havia ficado para trás.”

“E honestamente, quando o câncer bateu em sua porta e lhe fez lutar bravamente por quase dois anos, eu achei que não mais havia espaço em sua vida para aquelas histórias, aquela irreverência, aquela alegria. Mas ah... meu avô realmente não existia! Eu podia ver o quanto sofria de dor, diariamente, mas ele se recusava a reclamar, e dizia: “A dor só existe porque tem um corpo para abriga-la, e que bom que esse meu corpo está aqui, firme e forte!”. Mesmo no dia mais difícil em que o vi quase cair ao chão por não mais se sustentar de pé, ele sorriu com esforço para mim e disse: “agora é você quem vai ter que dançar com as moças do ônibus, meu caro.”. E no seu último dia de vida, já com dificuldade até para falar, murmurou ao meu ouvido: nunca deixe de acreditar que você é quem faz a sua história. Você é capaz de ser o herói ou vilão da sua própria jornada, então escolha. Escolha sorrir, em dias chuvosos. Escolha dançar, sem música ou razão. Escolha cantar com o vento, como se ninguém estivesse escutando. Escolha se desafiar, e ousar. E escolha, verdadeiramente, amar. Ame com toda a alma, com todo o coração, e não se arrependa. Porque o que se pode deixar de herança mais preciosa nesse mundo é a marca de uma vida bem vivida, repleta de um amor que se perpetuará acima de qualquer marca do tempo. Eu te peço, meu menino, espelho da minha alma, que faça uma última peripécia para seu velho avô. Entregue essa última carta a ela, com três batidinhas e muitas e muitas doses de um amor que nunca se foi.”.

Fungando, ele tirou um papel dobrado, algo amassado, do seu bolso, e me mostrou, deixando que abundantes lágrimas silenciosas escorressem do seu rosto:

- E logo depois de me falar onde era a casa, ele deu um último suspiro e se despediu dessa vida. Eu já não estava suportando a dor no velório dele e escapei para vir até aqui, realizar seu último desejo! E eu não consigo abrir a porcaria dessa telha!!! – bradou o menino, dando um tapa do telhado.

Olhei com carinho para aquele que provavelmente era o retrato aventureiro e matreiro do próprio avô. Tentei puxar na memória quem era a dona daquela casa e me lembrei da figura pequena e doce de uma viúva que, sozinha, passava os dias com seu papagaio. Sorrindo, me inclui naquela missão de imediato, e ergui um pouco a cabeça, analisei bem o telhado e, comparando com o desenho mental que eu tinha da casa de titia, falei, com animação:

- Mas veja! Não é aqui que fica o quarto dela! É daquele outro lado! Vem!

E me erguendo com cuidado, pus a andar pelo telhado da casa, seguida pelo menino, que mal se continha de tanta esperança. Com alegria, exclamei:

- Ali! Está vendo? Ali tem uma telha já desencaixada! Aposto que é o lugar!

Nos aproximamos e abaixamos no local, e olhei para o menino. Ele fechou os olhos solenemente, puxou o ar com força e deu três batidinhas. Ajudei a puxar a telha e ele passou a cartinha por ela, deixando passar também uma linda e primorosa história de amor.

Não sei dizer quanto tempo ficamos ali, eu e ele, olhando o pôr do sol e nos permitindo a sensação de missão cumprida. Também não sei dizer ao certo quanto tempo demorei para descer do telhado, dado meu medo de altura, mas com certeza os gritos histéricos de titia sobre uma água fresquinha que nunca chegou devem ter ajudado. A única coisa que sei ao certo é que, no dia seguinte, eu vi uma rosa no batente da varanda da casa ao lado, e posso jurar que, ao fundo, uma canção era cantada, do outro lado da vida...