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Canção de Ninar

01 de Maio de 2022 às 14h15

Ana Cecília Novaes

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Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!

https://open.spotify.com/episode/4UtN7p7xr1tBejbnVjG5ij?si=4162c10c2e1445d1


          Já era tarde da noite quando voltava assustada da estação de trem. Não haviam muitas luzes acesas naquela região, e os poucos postes restantes tremeluziam seus faróis como que acompanhando o uivar do vento que cortava frio aquele último dia de inverno. Eu, honestamente, já nem conseguia sentir mais as pontas dos dedos, por mais que os esfregasse contra o casaco grosso de lã, mas isso pouco me importava, no momento. A única coisa que eu queria naquele instante, muito mais do que uma xícara de café fumegante, aliás, era simplesmente encontrar o caminho que levava à pousada onde titia se encontrava há 3 dias para o seu tão aguardado “Retiro das senhoras da terceira idade e afins associado à causa dos bons costumes”. Há meses titia se preparava para esse tal evento, planejado por ela e suas amigas do baralho de segunda-feira, e devo admitir que não foi nada desagradável curtir três dias de sossego sozinha em casa (ou melhor, com Garibaldi Feliciano na minha cola, garantindo que eu cumprisse todas as exigências de titia sobre os cuidados adequados a sua bola de pelo felina), mas eu sabia que seria bom demais para durar muito quando o telefone tocou e escuto uma titia desesperadamente esganiçada do outro lado da linha:

            - QUERIDAAAAA! Você precisaaaaa vir até aqui IMEDIATAMENTE!!! É uma urgência!!!

            Ainda tentei argumentar que ter esquecido seu baralho especial de cartas escocesas para o jogo fantástico das senhoras não chegava a ser uma urgência, exatamente, mas sabendo como titia conseguia ser convincente (ou irritantemente exagerada), me apressei em deixar Garibaldi com a vizinha (juntamente com a lista de quitutes que ele deveria comer a cada 2 horas – francamente, titia... por isso esse gato é tão gordo!) e segui para a estação de trem mais próxima.

            Tudo parecia ir muito bem, e eu planejava chegar no fim da tarde, mas o destino evidentemente resolveu rir dos meus planos e simplesmente me fez dormir demais no trajeto, fazendo perder a estação certa. Tive de esperar o trem chegar ao final da linha para retornar e descer na cidade onde titia estava, mas daí já era tarde da noite e eu, sozinha numa estação de trem deserta e desconhecida, e sem bateria no celular, só tinha uma opção: andar.

            E ali estava eu, andando pelas ruas mal iluminadas de uma cidade estranha, tremendo até as pontas dos dedos dos pés e desejando apenas que algum carro ou ônibus passasse para me dizer ao menos a direção para onde devia seguir. Olhava para trás de instante em instante, dando de cara para uma escuridão que me assustava mais do que o silêncio que reinava, quando numa dessas checagens paranoicas por sobre os ombros e andando o mais depressa possível, senti todo o meu corpo estremecer ao colidir com...

            - Olha por onde anda, dona!

            Me equilibrando para não cair após o forte impacto corpo a corpo, senti meus olhos se adaptarem à escuridão e notei que diante de mim estava um jovem alto, muito magro, cabelos compridos e uma mochila semi aberta que devia estar nas suas costas, mas que agora estava no chão, junto com algumas folhas de papel que haviam caído dela, provavelmente devido à nossa trombada.

            - Me-me.... desculpe! – Murmurei, não sabendo se o ajudava a guardar suas coisas ou se continuava andando, ou melhor, correndo, porque até onde eu sabia, aquela podia ser uma tática de assalto muito bem planejada.

            Na iminência de começar a correr, realmente, parei subitamente quando meus olhos fixaram em uma foto que tinha caído de sua mochila, na qual, mesmo diante a penumbra da noite, eu conseguia ver o jovem carregando nos ombros um menino, com cerca de quatro anos, muito parecido com ele. Vagarosamente me abaixei para pegar a foto, sentindo uma energia diferente, quando rispidamente ele tirou a foto das minhas mãos e pegou de volta, dizendo:

            - Isso é meu.

            - E-eu sei... – murmurei, constrangida. – Desculpe, só queria ajudar...

            - Já ajudou muito não olhando por onde anda e me fazendo perder tempo... – falou, ainda hostil, enquanto colocava a foto no bolso da calça, com cuidado.

            - Desculpe, não sou daqui e estou um pouco perdida.

            - Então somos dois... – murmurou ele, com um tom diferente na voz, enquanto pegava mais alguns papéis no chão. Notei que uma folha solta havia caído em uma poça e ficava úmida, e me apressei em pegá-la antes que a água a destruísse por completo. Tentando tirar o excesso de água, notei que nela estava escrito: “Formulário de autorização para quimioterapia”. Discreta e silenciosamente, me aproximei e entreguei a ele a folha com cuidado. Ao vê-la, ele pareceu estremecer e ali ficou, parado, encarando o papel na minha mão. Estranhando a situação, eu estava prestes a deixá-la no chão, perto dele, quando ele se lançou de joelhos em prantos, gritando:

            - Meu Deus, por que????!!! Porque ele?????

            Ignorando todo o bom censo e sentindo a dor dele saltar por todos os cantos do seu corpo, simplesmente me abaixei diante dele e ali fiquei, ao seu lado, em silêncio, aguardando. Alguns minutos se passaram até que seu choro alto deu lugar a lágrimas solitárias, e foi quando ele falou, com a voz rouca, e repleta de angústia:

            - Meu irmão... meu irmãozinho está no hospital há meses, com uma doença cruel que não responde a tratamento algum. Já vai entrar para o segundo protocolo de quimioterapia, mas os médicos não estão esperançosos e... minha mãe... – nesse momento ele para e respira fundo para conseguir continuar... – minha mãe não sai do lado dele um único segundo. Seus olhos fundos denunciam as noites em claro, orando por uma cura que, no fundo, ela sabe que... – silêncio. – Porque? Porque ele? Uma criança tão amável, doce... a única pessoa que conseguia tirar o melhor de mim... Tantas coisas erradas que já fiz, tantos arrependimentos, e ele sempre com aquele olhar singelo, me fazendo acreditar que em algum lugar dessa minha alma ainda tinha algo de bom. Com aquele sorriso espontâneo, uma gargalhada cheia de vida... uma vida tão jovem, tão curta, e já está tendo que enfrentar tanta coisa... ele não merecia isso... ela não merecia isso... porque não eu, porque??? Eu simplesmente não mereço, não mereço estar aqui!!!

            E ele chorou novamente, cobrindo seus olhos com as mãos, fazendo com que a manga da blusa escorregasse, revelando inúmeros cortes em seus pulsos. Olhei para o lado e vi, em sua mochila entreaberta, uma faca pequena, mas afiada o suficiente. E nesse momento compreendi. Deixando que as lágrimas escorressem também pelos meus olhos, falei, quase que em sussurro:

- No seu choro brada o desespero, a força de quem quer lutar, mas que está cansado demais para seguir. Cada lágrima escorre a dor que transborda, o desejo de um novo alvorecer mas o medo de sair da própria penumbra. Eu vejo em você a sombra de um passado de ilusões, de decepções, de vazio, de tanto arrependimento... mas eu consigo ver também luz. Luz de quem está cansado demais para caminhar, mas persistiu seguindo, apesar de tudo. Luz de quem muito caiu, mas a cada queda encontrou forças no invisível, e se reergueu. Essa luz que seu irmão podia ver em você, e que o fazia transbordar em primavera de possibilidades, mesmo que por alguns instantes. Eu vejo luz, eu vejo força, eu vejo garra. Garra para fazer ser diferente, para fazer seu irmão se orgulhar de tudo aquilo que, na singela inocência dele, ele sabe que está dentro de você. Ele hoje trava as suas próprias batalhas e é hora de retribuir a ele a força de viver que tantas vezes ele já te deu. É hora de erguê-lo no ar e fazê-lo acreditar que ele pode voar, travar grandes saltos no infinito, porque independente de onde essa estrada vai leva-lo, ele merece percorrê-la de forma formidável. É hora de retribuir a ele a bravura, a garra, e mostrar que sempre haverá um novo amanhecer digno de ser admirado. Pegue-o no colo e embale-o como ele tantas vezes fez com você, e diga que vai ficar tudo bem. Porque vai. A dor vem, enfrentamos juntos. A tristeza corrói, choramos lado a lado. A vontade de desistir assola, a encaramos de frente e dizemos que sempre há motivo de continuar, porque nunca é chegado o fim, verdadeiramente. A vida se faz a cada segundo, então não desperdice o seu aqui. Vá, vá para seu irmão, vá para sua mãe, e viva com eles plenamente o presente que hoje se faz recorte de uma linda lembrança que o futuro suspirará como passado. Apenas viva, vivam... porque a vida, meu caro, é presente raro, inigualável, inafiançável, sem trocas ou devoluções. É quase como uma canção de ninar: brevemente intensa, do tamanho exato para trazer conforto, e paz.

Não consigo precisar quanto tempo durou aquela nossa conversa, quando ele se levantou e me abraçou profunda e intensamente, e seguir. Também não sei ao certo quanto tempo fiquei ali parada, com os olhos ainda embargados, quando notei um último papel que ele deixara para trás. Percebi que era uma canção, que começava assim:

Bem, eu conheço a sensação

De se encontrar preso à beira do abismo

E não há cura

De se cortar com uma navalha afiada

Eu estou lhe dizendo que

Nunca é assim tão ruim

Aceite isso de alguém que já esteve onde você está

Caído no chão

E você não tem certeza

Se você pode aguentar mais

 

Então, só tente mais uma vez

Com uma canção de ninar

E aumente isso no rádio

Se você pode me ouvir agora

Eu estou tentando te alcançar

Para que saiba que você não está sozinha

E se você não sabe

Estou muito assustado

Porque não estou conseguindo te falar pelo telefone

Então basta fechar os olhos

Oh, aqui vai uma canção de ninar

Sua própria canção de ninar

 

Por favor, deixe-me tirá-la

Dessa escuridão e levá-la para a luz

Porque eu tenho fé em você

Que você irá passar por mais uma noite

Pare de pensar sobre

O caminho mais fácil

Não há necessidade de apagar a vela

Porque você não chegou ao fim

Você é jovem demais

E o melhor ainda está por vir


Ele talvez tenha feito para o irmão, talvez para a mãe, ou para ele mesmo... Mas não importava... Afinal, todos precisamos de uma canção de ninar, uma hora ou outra...