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Abrigo

27 de Março de 2022 às 18h25

Ana Cecília Novaes

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Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!


https://open.spotify.com/episode/5kpO8jPn1XFFj4AArlO13P?si=988f3eb3e9934300

            - Por Deus, menina! – bradou titia. - Vamos, ande mais rápido!!!!! Não temos tempo a perder! – disse, enquanto envolvia com força e determinação um grande pacote rechonchudo de pelos em seus finos bracinhos. Há alguns metros dela eu me esforçava para acompanhar aqueles pequenos passos que impressionantemente se moviam ligeiros e incansáveis por aquelas ruas escuras, em uma noite fria de outono. Entre a iluminação vaga de um poste e outro, eu conseguia ver os olhos multicoloridos de Garibaldi Feliciano se movimentando desengonçadamente a cada passo que titia dava, e podia sentir seu desespero quando ela o apertava um pouco mais forte, provavelmente tentando dissipar a angústia que sentia naquele momento.

            Devo admitir que quando titia Gertrudes veio até mim mais cedo naquele dia, extremamente preocupada porque seu amado gato não dera o habitual miado rouco da manhã, eu simplesmente dissera “ele deve estar com sono ainda, titia. Está tudo bem.”, e não imaginara que isso se tornaria caso de segurança nacional. Mas obviamente minha doce titia não deixaria de observar minuciosamente o gato ao longo de todo o dia, e quando a noite chegou e ele não lhe deu seu habitual miado rouco de boa noite, ela se desesperou por completo. Disse que alguma coisa de muito grave estava acontecendo com seu amado bichano e deveríamos imediatamente ir em busca de ajuda. Já nem tentando argumentar, peguei meu casaco e me preparei para irmos à clínica veterinária que ficava há um quarteirão da casa de titia, mas ela me olhou séria e profundamente, e disse abismada: “Não seja tola! O caso é grave! Vamos ao único lugar capaz de curar meu pobre Garibaldi!”.

            Absolutamente perdida, simplesmente me deixei guiar ao longo dos quinze quarteirões de distância, e quando estava prestes a parar, absolutamente sem fôlego e me perguntando como uma senhorinha miúda daquela conseguia manter passos ligeiros e tão firmes, vi à minha frente uma espécie de galpão surgir... óbvio, absolutamente apagado. Puxando com dificuldade o ar pela boca, tentei dizer para titia:

            - A... essa... hora... da noite... claro que... tudo... está... fechado!

            Sem sequer direcionar o olhar para mim, ela seguiu para a rua lateral, descendo ao longo de seu declive e, no escuro, apalpando a parede, subitamente parou e bateu no que parecia ser uma grande porta de madeira antiga. Alguns segundos de silêncio foram interrompidos por passos firmes e ágeis, seguidos de uma claridade incandescente que surgiu quando um vulto abriu a porta e nos indicou o caminho para entrarmos.

            Segui titia ao longo de um corredor estreito até que chegamos em uma espécie de salão oval onde, ao que parecia, confluíam alguns corredores, além daquele de onde havíamos vindo. Olhava, curiosa e com um certo frio na barriga, cada saída, enquanto titia murmurava algo sobre o estado gravíssimo de Garibaldi para o dono do vulto que havia aberto a porta para nós, um grande homem com uma farta barba negra que se confluía com seu bigode e praticamente encontrava sua grossa sobrancelha. Vi quando ele concordou com a cabeça, em silêncio, e indicou um dos corredores para titia que, se virando em minha direção com um Garibaldi assustado em seus braços, me disse:

            - Fique aqui. Vamos ser atendidos. – e quando eu ameacei murmurar algo semelhante a “onde raios estamos?”, em instantes ela já havia desaparecido com seu gato e o homem pelo corredor a fora.

            Ouvindo a voz de um silêncio brutal, comecei a sentir meu corpo se arrepiar todinho e cogitei entrar pelo mesmo corredor por onde haviam ido, considerando que qualquer atendimento misterioso à meia noite no que parecia ser o subterrâneo de um galpão abandonado era melhor do que permanecer sozinha no subterrâneo de um galpão abandonado.

            Dando alguns passos em direção ao tal corredor, subitamente parei quando do corredor contrário ouvi um som. Inicialmente pareciam vozes falando ao mesmo tempo, mas subitamente o som se tornou melodia...

 

Shake it out

 

... e percebi que se tratava de uma canção. Uma canção doce e suave, mas ao mesmo tempo tão forte. Como que instintivamente, deixei que meus passos fossem guiados pelo ritmo, e seguindo pelo corredor, fui percebendo que a música ficava mais forte, até chegar ao seu ápice exatamente quando me deparei com um cômodo simples, mas aconchegante, que a princípio parecia uma sala, mas que fora adaptada para abrigar algumas camas. O ambiente era simples, mas aconchegante, com alguns cobertores na cama e almofadas alegres. No centro do cômodo, no pequeno espaço restante, seis mulheres estavam sentadas em roda, em cadeiras de madeira, com os olhos fechados, parecendo permitir que a música invadisse suas almas, em plenitude, enquanto uma delas tocava a canção no violão e todas cantavam.

            A canção acabou e elas abriram os olhos, sorrindo. Notei que eram bem diferentes uma das outras, com diferentes tipos de tom de pele, cabelos ondulados, longos, lisos e curtos, tamanhos distintos... mas todas elas tinham algo em comum, que eu não conseguia identificar, mas que parecia uni-las qual irmãs. Foi enquanto eu observava atentamente uma delas que percebi que havia me aproximado o suficiente para ser notada, e foi quando uma delas me olhou e, sorrindo, falou:

            - Olá! Você deve ser nova por aqui!

            Percebi que todas olhavam para mim com curiosidade, e sentindo meu rosto corar, respondi, sem jeito:

            - Ham... N-na verdade... entrei no corredor errado...

            - Ah, isso acontece o tempo todo aqui, não é meninas?! – respondeu uma jovem alta, de cabelos ondulados cor de mel e os olhos grandes e intensos cor de amêndoas. As outras riram e uma mulher ao seu lado completou:

            - Por Deus, isso aqui é um labirinto! – falou, apontando a saída do corredor. – Eu mesma, na primeira semana, levei quase uma hora para acertar o corredor e chegar até aqui! – falou, sorrindo.

            - Bem, pelo menos isso é o que nos mantém seguras, não é? – escutei uma mulher falando, mais baixa do que as outras, bem emagrecida e com olheiras profundas. Diferente das demais, ela abraçava seu corpo como que em proteção, falava mais baixo e evitava o olhar das demais, deixando que o cabelo cobrisse a maior parte de seu rosto.

            - Ora querida... Não se preocupe... – disse a alta de cabelos ondulados, se aproximando dela e tocando levemente o seu ombro. Percebi que a outra contraiu completamente o corpo e se afastou do toque, enquanto a moça ao seu lado recolhia sua mão, lançando a ela um olhar compreensivo. – Aqui estamos todas seguras, acredite.

            Observei enquanto uma das mulheres, de cabelos curtos e ruivos, se levantava e seguia até o canto do cômodo, onde um antigo e desgastado teclado encontrava-se posicionado. Sentando nele, ela lindamente permitiu que seus dedos se movessem como plumas, lançando um som sublime no ambiente, enquanto falava:

            - Aqui estamos todas juntas, cada qual com sua história, cada qual com sua dor... Não compartilhamos os mesmos passos, mas temos a mesma sombra nos perseguindo, o mesmo medo de fechar os olhos e despertar no pesadelo que foi a nossa realidade. Por dias, meses ou mesmos anos deixamos de acreditar em nós mesmas, em nossa força, em nossa determinação. Permitimos que uma nuvem escura nos cegasse, e permitimos, mesmo que de forma inconsciente, que a nossa vida estivesse nas mãos de um outro. Um outro que não soube nos valorizar pelas joias preciosas e raras que somos, nos fazendo acreditar que não valíamos a pena, e que não merecíamos ser amadas. Um outro que nos subjugava e mexia tanto com nossos corações e mentes que nos fazia crer que éramos nós as culpadas pela tristeza que brotava e florescia em nosso ser, pelo vazio que amanhecia conosco diariamente, pelas marcas físicas e mentais que ele deixava em nós. Um outro que mentia e nos fazia acreditar em fantasias. Um outro que nos fazia mergulhar em rios de promessas de mudança, e depois afogar em mares de decepção. Um outro que inúmeras vezes nos implorava por perdão, e quando os recebia de nossas almas esperançosas, pisava em nossos sonhos sem piedade e compaixão. Um outro, e tantos outros, eles e elas de tantos nomes e sobrenomes, que nos fizeram chegar ao limite entre escolher a morte em vida ou a nós mesmas.

            “E todas nós chegamos a esse limite, de uma forma ou de outra, despertando. Despertando para um amanhecer repleto de possibilidades, onde somos muito mais do que acreditávamos ser. Um amanhecer que nos iluminou os olhos e alma, e nos mostrou o quão maravilhosas somos, por dentro e por fora... o quão fortes nos tornamos simplesmente pelo movimento de suportar, e o quão capazes éramos de assumir as rédeas de nossas vidas, porque de sobreviventes merecíamos ser protagonistas de nossas próprias histórias. Um amanhecer que revelou quantas mãos estendidas haviam ao nosso redor, prontas para nos resgatar desse tornado onde nos encontrávamos, esperando apenas que disséssemos sim. Sim, eu me amo. Sim, eu me valorizo. Sim, eu posso. Sim, eu sou. Sim, eu mereço ser feliz!

            “Algumas de nós em nome de seus filhos... outras em nome de seus próprios corações... algumas com cicatrizes no corpo, e todas com feridas na alma... E aqui estamos, juntas, porque juntas somos mais fortes. Juntas nos lembramos que somos capazes de percorrer a estrada da vida de forma leve e deliciosamente valorosa. Juntas vamos refazer a nossa história, porque merecemos. Estamos aqui, seguras e unidas, fazendo a aquarela do nosso futuro e não permitindo que o nosso passado nos incapacite e nos impeça de voar. Sempre, sempre é tempo de recomeçar, porque a vida foi feita para viver, e não apenas sobreviver. E a gente pode chorar, porque sempre tem um colo para aconchegar. E a gente pode gritar, porque há muito o que transformar. E a gente pode sorrir, porque não há motivo de ter medo de ser feliz. E a gente pode cantar... Cantar pela vida, e por nós... Cantar por nossas vozes, e por todas aquelas que ainda estão caladas, em busca de seu próprio som. Por isso eu te digo, minha querida... Você não está sozinha, juntas permaneceremos... Eu e todas nós permaneceremos ao seu lado, você sabe que seguraremos sua mão. Quando ficar frio, e parecer o fim... Quando não houver para onde ir, você sabe que não iremos ceder... Não, não iremos ceder... Então continue aguentando firme... Porque você sabe que conseguiremos, nós conseguiremos... Apenas seja forte... Porque você sabe que nós estamos aqui por você.”.

 

Keep holding on

 

            Com olhos em lágrimas, percebi que ao final todas se abraçavam e aquela pequena moça abatida se permitia ser envolvida por amor, enquanto deixava que os fantasmas de seu passado tão próximo escorressem ao longo de seus olhos, aliviando sua alma. Era uma conexão transcendental, era uma força descomunal, e vinha de cada uma delas.

            Discretamente fui me direcionando para o corredor e voltei para o cômodo oval, onde encontrei uma sorridente titia Gertrudes acariciando um Garibaldi Feliciano que ronronava e miava alegremente em seu colo. Ao me ver, ela falou animada:

            - Eram só gases, afinal! O pobrezinho não conseguia miar por causa do desconforto!

            - Que bom titia! – falei, enquanto éramos direcionadas para fora pelo homem barbudo, que parecia nos empurrar com os olhos para sairmos o mais rápido possível. Sussurrando para titia, perguntei: – Afinal, que lugar é esse?

            Olhando para mim com o canto de olho, titia me disse uma das maiores lições que eu ouviria:

            - Ora, minha querida, nem tudo precisa de nome. Às vezes se trata apenas de deixar que o coração traduza o que as palavras não conseguem expressar. O que acha que é esse lugar?

            Olhando para trás, vendo o homem fechar a porta de madeira atrás de nós, dei um suspiro de fé e sorri, falando:

            - Aqui é acalanto, é aconchego, é esperança. É abraço, é colo, é ciranda. Aqui é paz, amor e liberdade. Aqui é, afinal, abrigo. De corpo, de alma, de nós.