Em exibição nas telas de cinema de todo o país, o filme “Kardec”, obra baseada na biografia feita pelo jornalista Marcel Souto Maior sobre o codificador da Doutrina Espírita e que nos primeiros dias já arrastou milhares de pessoas às salas de cinemas, apresenta uma leitura interessante a respeito da pessoa e do trabalho realizado pelo professor Hypolite Léon Denizard Rivail. Se de um lado, o filme deixa a desejar para o público não espírita que for ao cinema no intuito de conhecer melhor o Espiritismo– razão pela qual muitos críticos de cinema tem sido praticamente unânimes ao afirmar que se trata de uma obra voltada para o público espírita, apesar de se apresentar como uma produção feita para todos os públicos -, por outro, o roteiro traçado pelo diretor Wagner de Assis ressalta algo pouco conhecido por boa parte dos próprios espíritas e que merece ser destacado. Refiro-me ao perfil contestador e, porque não dizer, subversivo do professor lionês que, na qualidade de mediador de uma mensagem revolucionária, não poderia ser diferente. Este que, como consta em sua própria biografia, foi um dos educadores de sua época a tecer fortes críticas ao sistema educacional público francês, questionando a qualidade deste e, indo mais além, questionou o próprio lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade ao lançar um olhar crítico para o quadro de misérias e de profundas desigualdades sociais que marcavam a sociedade francesa no século XIX.
Ao fazer um breve recorte a respeito do perfil do educador francês que, apesar da relutância, se deixou envolver com os fenômenos espíritas que agitavam a Europa na segunda metade do século XIX, e levou-o a adotar o pseudônimo de Allan Kardec, o filme dá ênfase ao espírito de ousadia e coragem do professor Hypolite que, levado pelo senso crítico e uma consciência social apurada, se contrapôs às duas mais poderosas instituições sociais: o Estado e a Igreja, ao questionar a relação extremamente danosa à liberdade de pensamento e de expressão que representava a intervenção religiosa na esfera da educação pública. Algo que, vale dizer, se deu antes mesmo deste se tornar Allan Kardec e provocar uma ira ainda maior do alto clero contra sua pessoa ao contestar a máxima de que fora da igreja não havia salvação.
Embora tratada de maneira breve e como forma incipiente para justificar o caráter de seriedade que acompanhava a pessoa do professor Hypolite e o seu envolvimento com os fenômenos espíritas que resultaria numa das maiores revoluções no campo do conhecimento espiritualista da história da humanidade, a abordagem acerca do seu perfil inquietante e destemido diante do que julgava injusto, traz para o grande público espectador, especialmente os que não leram a biografia escrita por Marcel Souto Maior, uma imagem mais fiel e integral de quem foi de fato o homem escolhido pela espiritualidade maior para se tornar o codificador da doutrina dos espíritos. Alguém que, como se pode observar, sempre se posicionou não apenas como homem de ciência, mas também politicamente, ao defender a importância da autonomia do pensamento crítico que deve nortear a formação cidadã de todo ser humano. Algo que, como o filme também demonstrou em várias cenas, acompanhou a sua condição enquanto Allan Kardec ao questionar, por exemplo, a postura do então imperador francês diante da apreensão da remessa de O Livro dos Espíritos feita em Barcelona e que terminou sendo incinerada pelos cardeais sob a maldição da censura e da condenação da Igreja Católica Apostólica Romana. Tempo em que, vale dizer, a França era regida por um imperador autoproclamado (Napoleão 3) e que o Estado sofria uma forte intervenção da religião (algo não muito diferente do cenário atual vivido no Brasil, vale dizer...).
Traçando um paralelo com o cenário político e social dos dias atuais vividos em várias partes do mundo e especialmente no Brasil, o filme termina provocando uma reflexão e, mais que isto, convida todos a uma autoanálise crítica, especialmente por parte dos seguidores da doutrina codificada pelo audacioso e contestador educador francês. Este que, para muito além da realidade descortinada com a revelação dos espíritos superiores, nos apresenta um testemunho de vida pautado num grau de sensibilidade e de consciência política e social apuradíssimo e sem o qual, muito dificilmente, nos tornaremos seres humanos melhores e aptos à transformação moral da vida neste planeta. A nos fazer ver que, se fora da caridade não há salvação, distante do engajamento da luta pela justiça social plena e efetiva capaz de proporcionar a melhoria das condições de existência de todos por aqui e, sobretudo, dos menos favorecidos, como nos faz ver o evangelho, não há salvação para a humanidade. Portanto, só por isso, vale a pena ver e rever "Kardec", o filme. Uma cinebiografia que, como tantas outras, nos transporta para além do mundo da ficção. A propósito, devido o sucesso de bilheteria, o filme deverá permanecer em exibição em Campina Grande até pelo menos. o final deste mês de maio.