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O que os cientistas sabem (e não sabem) sobre a constituição do Universo

Cerca de 95% do cosmo é formado por misteriosa matéria e energia escura
04 de Março de 2018 às 18h30

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RESUMO A composição do Universo ainda é um grande mistério. Cerca de 95% do cosmo é formado por algo cuja natureza desconhecemos: matéria escura e energia escura. Essa aparente ignorância, contudo, resulta de um feito notável da ciência e, para alguns, indica uma nova e profunda revolução em nossa visão do mundo.


Imagem mostra o aglomerado Abell 520, formado pelo choque entre dois aglomerados de galáxias; a distribuição de matéria escura (em azul) está deslocada em relação às estrelas das galáxias (em laranja) e ao gás quente (em verde) - NASA, ESA, CFHT, CXO


Em conversas informais com amigos, a pergunta mais frequente que me fazem quando descobrem que sou físico e trabalho em cosmologia é a seguinte: O homem realmente pisou na Lua? Acho divertido ver a incredulidade das pessoas. Imagino que ninguém duvide que o avião voe. Então, por que seria tão absurdo uma espaçonave viajar até nosso satélite natural?

Talvez o ceticismo se explique pela ideia de que o homem tocou o divino. Mas o céu, embora divino, também é acessível à ciência. Hoje, com telescópios e satélites, pesquisadores conseguem não só entender o Universo mas também desvendar sua forma e constituição.

Quem sempre morou em cidades grandes pode desconhecer o deslumbre de uma noite estrelada. É fascinante a intensidade do breu entre a infinidade de singelos pontos luminosos. Imaginar que alguns desses pontinhos de luz sejam aglomerados com milhares de galáxias –as quais podem abrigar massa trilhões de vezes maior que a do Sol– chega a causar angústia.

Cosmólogos têm esse hábito: exagerar na grandiosidade dos assuntos. Mas pense em todas as coisas que você conhece, como árvores, baleias, chips de computador, livros, montanhas, cometas, estrelas, planetas, bactérias, vírus... Tudo isso é feito do que chamamos matéria comum (ou bariônica) e –pasme!– representa só 5% da massa do Universo.

O restante é formado por dois elementos misteriosos que nunca foram detectados em experimentos na Terra e são fundamentais para a evolução do Universo. Eles são denominados matéria escura e energia escura. "Escura" porque não emitem luz como o faz a matéria comum. E isso torna sua detecção muito difícil.

A afirmação de que existem a matéria escura e a energia escura é consequência direta das observações cosmológicas. Mas, em cosmologia –área que estuda a estrutura e a evolução do Universo–, até questões corriqueiras são complicadas. Por isso, antes de falarmos sobre o cosmo, visitemos nossa vizinhança.

Você já pensou como os astrônomos sabem do que o Sol é feito?

O Sol está a míseros 150 milhões de quilômetros da Terra, o que, em astronomia, é tão perto quanto ao alcance das mãos. Aliás, a Nasa (agência espacial dos EUA) planeja lançar neste ano a sonda Parker, com a qual espera tocar a atmosfera solar. Esse, porém, não é o procedimento de investigação mais usado em astronomia e cosmologia.

Conhecer a constituição solar só foi possível porque os elementos químicos têm uma espécie de impressão digital. Cada um deles possui uma forma muito específica de absorver luz e devolvê-la ao meio. Sabendo disso, astrônomos podem dizer que o Sol é composto basicamente por hidrogênio (cerca de 75%), hélio (24%) e uma pequena quantidade de elementos mais pesados, incluindo metais.

Parece fácil, não? Na verdade, é um pouco mais difícil. A luz que chega à Terra vem apenas da superfície do Sol. Para conhecer o núcleo do astro, precisamos de boas teorias científicas para modelar tanto os fenômenos que ocorrem no interior de uma estrela quanto o que se passa com a luz no longo caminho até nós.

Ou seja, o que nossos telescópios detectam é a mistura (convolução) de três fatores: do que se passa no Sol, do que ocorre com sua luz viajando até nós e dos efeitos da atmosfera sobre essa mesma luz.

O estudo do Universo segue mais ou menos essa técnica: a partir da detecção da radiação eletromagnética (luz), extraímos informações sobre os objetos astrofísicos.

MODELO PADRÃO

Na década de 1920, o astrônomo norte-americano Edwin Hubble (1889-1953) observou que certas galáxias se afastavam da Terra. Isso era uma indicação da expansão do Universo –uma das maiores descobertas da ciência. Com a expansão, o Universo foi se resfriando. A partir de certa temperatura, isso permitiu à atração gravitacional moldar as estruturas que observamos.

Hoje, sabemos que os objetos astrofísicos organizam-se de forma hierárquica. Os planetas giram em torno de estrelas, que se movem ao redor das galáxias, as quais se agrupam em arranjos ainda maiores (aglomerados), e assim sucessivamente, até as grandes estruturas, como os chamados filamentos, que se estendem por quintilhões de quilômetros e separam regiões de uma vastidão quase vazia.

Em astronomia, há uma relação íntima entre o micro e o macro. Assim, para entender a proporção de elementos químicos do Sol, precisamos conhecer a história térmica do Universo. Cientistas em todo o mundo –como os do grupo Cosmo, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio– desenvolvem conjuntamente pesquisas para ampliar nosso conhecimento nessa área.

Os resultados do esforço internacional têm sido muito positivos. Nas últimas cinco décadas, essa comunidade estabeleceu o chamado modelo padrão da cosmologia. Isso significa que a maioria dos cientistas da área concorda em adotar uma única descrição do Universo.

De acordo com esse modelo, os elementos químicos mais leves, como o hidrogênio e o hélio, foram formados no Universo primordial, ou seja, o período mais longínquo que conhecemos: cerca de 13,7 bilhões de anos no passado.

O que aconteceu antes? Não sabemos; é uma incógnita. Até o momento, a ciência não tem dados suficientes para afirmar se o Universo foi criado em um dado instante ou se é eterno.

A parte da história que conhecemos começa com um universo extremamente quente e com altíssima densidade, como um caldeirão de partículas elementares (elétrons, quarks, fótons, neutrinos etc.). Em seguida, temos a formação dos elementos químicos leves (do hidrogênio até o berílio), fase denominada nucleossíntese primordial.

Todos os outros elementos químicos da natureza –mais de cem– formaram-se em reações nucleares das estrelas. Por isso, o astrônomo norte-americano Carl Sagan (1934-1996) costumava dizer que nós, humanos, somos restos mortais de uma estrela, por sermos constituídos de vários elementos pesados, como o carbono e o ferro.

O fato de encontrarmos na Terra essa diversidade de elementos químicos nos diz que o Sol é uma estrela de segunda geração. Ou seja, antes dele, houve um astro que se desenvolveu por milhares de anos e explodiu, ejetando material para o espaço sideral. A partir da nuvem de dejetos, por um processo parecido com a sedimentação, formaram-se tanto o Sol quanto nosso Sistema Solar (planetas, asteroides, luas etc.).

Mas vale lembrar: galáxias, aglomerados, buracos negros, Sol, Terra, animais, plantas etc., tudo isso representa só 5% da massa do Universo. O restante é matéria escura e energia escura.

Se não podemos vê-las, como os cosmólogos sabem que existem?

ESCURO

Quando um astrônomo aponta seu telescópio ou outro equipamento para o céu, a única coisa que consegue observar é a luz que emana dos objetos astrofísicos. Ou seja, só consegue ver o que está "aceso" ou o que reflete a luz de outro objeto.

Como a matéria escura não emite luz própria, ela escapa à observação direta. Entretanto, um astrônomo atento é capaz de identificá-la por sua única forma de interagir com a matéria comum: atração gravitacional.

Ao estudar o movimento das estrelas, o astrônomo nota que a quantidade de matéria produzindo atração gravitacional é maior que a esperada. Por um tempo, considerou-se que a massa faltante poderia ser formada de pequenos planetas ou mesmo buracos negros. Porém, ao combinar observações com dados cosmológicos, conclui-se que a matéria invisível não poderia ser constituída de algo que conhecemos. Ou seja, matéria escura existe, mas não sabemos do que é feita.

Se a matéria escura já produz certa surpresa, a energia escura é ainda mais instigante. Como a matéria escura, ela interage apenas gravitacionalmente, mas, em vez de gerar atração, produz um tipo de repulsão gravitacional.

Até pouco tempo atrás, acreditava-se que tudo que existia produzia atração gravitacional. Mas a energia escura produz o efeito contrário: sua "antigravidade" é responsável por fazer com que a expansão do Universo ocorra de forma acelerada –fenômeno descoberto em 1998.

Hoje, a observação do céu –uma das práticas mais antigas da humanidade– é uma área de intensa renovação. Há quem diga que a matéria e a energia escuras são sinais de uma revolução em nossa visão de mundo. Algo tão profundo quanto foram a mecânica quântica (teoria que lida como os fenômenos atômicos e subatômicos) e a relatividade geral, formulada por Albert Einstein (1879-1955).

Recentemente, abriu-se uma nova janela para o Universo, com a detecção das ondas gravitacionais ("oscilações" do espaço). Embora seu uso em cosmologia seja embrionário, essa ferramenta promete a possibilidade de estudarmos o cosmo por uma perspectiva nova e independente dos dados observacionais que temos atualmente.

A ciência evita ideias preconcebidas. Entre suas tarefas está perguntar o que é a natureza e buscar respostas por meio de experimentos. Até o momento, todas as evidências apontam para o fortalecimento da concepção de um Universo com matéria escura e energia escura.

A história tem nos ensinado a não subestimar ideias científicas, por mais inovadoras que sejam. O que nos cabe é desvelar os segredos por trás das respostas que a natureza nos oferece.

Felipe Tovar Falciano, 40, é doutor em física pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, onde desde 2009 é pesquisador na área de cosmologia e gravitação.


Folha