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Espiritismo marca 150 anos da morte de Kardec diante de momento-chave

Para adeptos, escritor francês que codificou doutrina previu turbulências, que agora chegam à prática
31 de Março de 2019 às 20h55

Nas celebrações dos 150 anos da morte —ou desencarne, como creem os adeptos do espiritismo— do escritor francês Allan Kardec, considerado o pai da doutrina espírita, expoentes da crença afastam o médium João de Deus de suas fileiras, falam de acirramentos dos conflitos interpessoais da atualidade e reforçam a sinergia da filosofia com os avanços científicos.

Kardec, cujo nome de batismo é Hippolyte Léon Denizard Rivail, foi o responsável pela publicação do pentateuco espírita (conjunto de cinco obras literárias), pilar da filosofia que nasceu a partir da investigação científica de fenômenos chamados "mesas girantes", motivo de inquietação na Europa no século 19.

"Ele pensou ter encontrado nas manifestações das 'mesas girantes' evidências robustas da imortalidade alma, através da identidade dos espíritos comunicantes", afirma Dora Incontri, jornalista, doutora em educação pela USP e considerada uma das maiores especialistas em Kardec do país.

Ainda no primeiro semestre deste ano estão previstas a estreia de um documentário e de um filme a respeito do chamado codificador da doutrina espírita.

Dora, com Karim Soumaïla, assina o roteiro de "Em Busca de Kardec", o documentário. "A filosofia que ele estabeleceu, que é o espiritismo, que ele não queria que fosse uma religião, foi construída em diálogo com espíritos", afirma.

Já o filme dramatizado é baseado na biografia escrita pelo jornalista Marcel Souto Maior, que mostra a trajetória do professor Rivail até transformar-se no "pai do espiritismo".

Segundo Souto Maior, a obra de Kardec é estudada e colocada em prática hoje em cerca de 15 mil centros espíritas pelo país, tendo como máxima a frase cunhada como a essência da doutrina: "Fora da caridade não há salvação".

"Ela [a obra] sustenta uma rede de solidariedade cada vez mais integrada e ativa. É muito atual e cada vez mobiliza mais gente em torno das lições que difundiu", diz ele.

Souto Maior afirma ainda que, em nenhum país o espiritismo de Kardec ganhou tantos adeptos quanto no Brasil.

Um dos grandes responsáveis por isso foi o médium Chico Xavier (1910-2002).

Além de ações de caridade, o mineiro ganhou fama ao psicografar milhares de cartas e publicar mais de 400 obras.

Em 2010, segundo o Censo mais recente do IBGE, 3,8 milhões de pessoas se declararam seguidores da doutrina no Brasil. É o secto com maior índice de ensino superior (31,5%) e a maior taxa de alfabetização (98,6%).

Nesse total, porém, não estão outras correntes reencarnacionistas existentes no Brasil, como o candomblé e a umbanda, das quais os kardecistas buscam se diferenciar.

Tampouco estão incluídos aqueles que veem a doutrina como filosofia e não religião, ou que a seguem em paralelo com religiões como a católica.

Os espíritas também vêm, desde o final de 2018, empregando esforços para explicar que o médium João de Deus, 77, preso em Goiânia (GO) sob a suspeita de abuso sexual e outros crimes, não pode ser considerado um espírita.

"O próprio médium já se declarou não espírita. É preciso separar a pessoa da doutrina. Mesmo que ele fosse espírita, dentro da nossas imperfeições, podemos cometer erros, mas os ensinamentos apontam para seguir corretamente", diz Geraldo Campetti, vice-presidente da FEB (Federação Espírita Brasileira).

Ele diz que "segundo Kardec, uma coisa é ser médium, um instrumento entre o plano espiritual e o material, outra é o uso que se faz da mediunidade, que pode servir tanto ao bem quanto ao mal. Pode-se trabalhar pelo próximo ou por interesses particulares".

"É claro que é lamentável tudo o que aconteceu, é um alerta para que fiquemos cada vez mais vigilantes. O médium não é um espírito perfeito, pelo contrário, é um espírito bem endividado."

Na visão dos espíritas, o clima prevalente de atrito entre as pessoas tem relação com o que chamam de "momento de transição", que é marcado por questionamentos de valores.

Campetti avalia que "estamos vendo pessoas perturbadas querendo conturbar" e pessoas embarcando em processos de precipitação de opinião, de tomada de atitude intempestiva e que acabam favorecendo a polarização e tencionando as relações.

"O espiritismo leva a mensagem de paz e de esperança, e somos convocados a agir. É um momento decisivo, crucial, com o recrudescimento dos enfrentamentos, e não há como ficar parado", diz.

"Precisamos dar apoio para que as pessoas entendam o que é essencial na vida. A doutrina se prepara para um momento de regeneração, para dar uma base às pessoas para trabalharem por seu restabelecimento moral."

Para o jornalista André Trigueiro, um dos palestrantes a respeito do espiritismo mais conhecidos do país, "para os espíritas, estaríamos deixando a categoria de 'mundo de provas e expiações' —onde a dor e o sofrimento ainda predominam— para 'mundo de regeneração' --onde a evolução ética e moral determinariam vivências menos dolorosas que as atuais".

"O agravamento das tensões, no nível em que experimentamos hoje, costuma marcar de forma aguda esses períodos de transição. A doutrina espírita previu esse momento conturbado, e assinalou a importância de seus seguidores se pautarem sempre pelas lições morais do evangelho, especialmente a prática da caridade", afirma.

Os avanços científicos em torno das manipulações genéticas, do sequenciamento do DNA e também as novidades tecnológicas parecem não levar desconforto aos espíritas, mas, sim, entusiasmo, uma vez que a doutrina afirma se ancorar no respeito à ciência.

"O espírita, ao se considerar cientista, tem de ser amigo do avanço da ciência. Outra visão seria sociologicamente tentar entender se os espíritas são amigos da ciência, mas aí não seria uma postura filosófica", diz o professor da USP Alysson Mascaro.

"Isso é postulado por Kardec: 'A ciência acima de tudo'. É um postulado, inclusive, do iluminismo do século 18, aplicado nessa leitura de Kardec no século 19."

Trigueiro diz que "Kardec utilizou a metodologia científica para eliminar o risco de fraudes e mistificações".

"A atualidade do espiritismo se manifesta pela lógica de seus postulados [de Kardec] que revelam as leis que regem a vida e o universo. É o que se convencionou chamar de fé raciocinada", afirma.

"Assim, os princípios básicos da doutrina permanecem perenes na linha do tempo."

QUEM FOI ALLAN KARDEC
Nascimento
Em 3 de outubro de 1804, em Lyon, na França, como Hippolyte Léon Denizard Rivail, em família católica

Pseudônimo
A adoção do pseudônimo não é consensual, mas uma corrente defende que foi como um marco de um novo período em sua vida intelectual, a partir do espiritismo

Estudos
Estudou até a adolescência na escola de Pestalozzi, no Castelo de Yverdon, na Suíça, o que o influenciou a adotar o livre pensamento baseado na razão

Ele foi professor e tradutor, com profundo conhecimento da língua alemã, e amante dos estudos filosóficos

Como pedagogo, trabalhou pela democratização do ensino público e publicou livros acadêmicos que proporcionaram a ele fama entre os estudiosos da época

Espiritualidade
Por volta de 1855, começou a se interessar e participar das “mesas girantes”, como eram conhecidos os fenômenos de movimentação de objetos (mesas, em geral) recorrentes na Europa daquela época

Aprofundou-se no estudo do fenômeno ao perceber inteligência nas repostas obtidas pelas batidas das mesas e, depois, por psicografias de médiuns

Produção
Publicou cinco livros a partir de 1857, iniciando com “O Livro dos Espíritos”

Morte
Em 31 de março de 1869

Seu corpo foi enterrado em um mausoléu, em Paris, onde está a inscrição: “Nascer, morrer, renascer ainda e progredir sem cessar, tal é a lei”

Fonte: Federação Espírita Brasileira, e os pesquisadores Dora Incontri e Marcel Souto Maior





Folha de São Paulo