Glauber Filho cresceu entre a estruturação de filmes, séries e outros produtos audiovisuais. Antes mesmo de completar 20 anos, já se lançava como realizador. Fez seus próprios projetos, trabalhou com publicidade, flertou com o jornalismo. Mas é no cinema onde está sua maior realização. Atualmente professor dos cursos de Cinema e Audiovisual, Jornalismo, Publicidade e Propaganda da Universidade de Fortaleza (Unifor), ele argumenta os caminhos necessários para os novos profissionais.
Diretor de duas aclamadas produções – os longas “Bezerra de Menezes: O Diário de Um Espírito” e “As mães de Chico Xavier”, que tiveram grande projeção no circuito nacional – Glauber Filho reflete sobre o espaço dos filmes brasileiros nas salas de cinema. A luta por espaço com grandes produções estrangeiras ainda é real. E, em grande parte das vezes, elas acabam levando vantagem. Na entrevista, o professor e cineasta reflete sobre os caminhos da produção audiovisual brasileira, a necessidade de olhar para as plataformas de streaming, o olhar cinematográfico e, principalmente, a criatividade, o cuidado e o estudo necessários para quem deseja seguir carreira no audiovisual.
Unifor - Como o cinema entrou na sua vida? Quais os primeiros contatos?
Glauber Filho - Eu comecei nos anos 80, quando houve uma mudança de tecnologia na realização audiovisual, foi quando surgiram os videomakers. Era muito jovem, tinha uns 16 anos (1986) quando ganhei uma câmera de vídeo e, a partir daí, fui buscar a formação. Na época, montamos um grupo de realizadores e ficamos fazendo documentários e vídeos experimentais de arte. Fui buscar a formação na Universidade Federal do Ceará, no curso de cinema da Casa Amarela Eusélio Oliveira. E depois vieram outras - como na Escola de Cuba e no Instituto Dragão do Mar. Em 1995, o “Oropa, França e Bahia” - que é uma adaptação de um poema do pernambucano Ascenso Ferreira - foi meu primeiro longa. Antes disso, já tinha feito curtas-metragens, participado de festivais. Lembro que este primeiro filme teve exibição no Canal Brasil. Fui trabalhar em outras atividades do audiovisual, na área da publicidade e também do jornalismo, quando veio o convite de 2006 para fazer o filme “Bezerra de Menezes: O Diário de Um Espírito”. E depois o convite para fazer “As mães de Chico Xavier”, também da Estação Luz Filmes. Estas duas obras foram os filmes de distribuição nacional e tiveram um bom resultado de público. E, a partir daí, houve outros convites para fazer filmes que pudessem entrar no circuito comercial.
Você esteve em cartaz com um novo longa-metragem: “Bate Coração”. A obra utiliza o humor para falar de questões bem delicadas - como doação de órgãos, questão de gênero e preconceito. Como foram as filmagens e como está sendo a repercussão dessa obra?
Glauber Filho - É um filme da Estação Luz. É uma inspiração em duas peças teatrais do Ronaldo Ciambroni - que são “O Coração Safado” e “Acredite um Espírito Baixou em Mim”. Daniel Dias, Ronaldo Ciambroni e eu fizemos um trabalho de um roteiro que fosse original. E que tivesse essas temáticas da doação, do preconceito e tudo que pudéssemos trabalhar no humor. Porque o humor desarticula, desestabiliza, o humor é um espelho, o humor faz com que vejamos os nossos equívocos e preconceitos. Rir de si mesmo é um processo de cura, consciência, eu acredito! Acho que esse foi um bom caminho estético narrativo: ter uma comédia para falar de coisa séria. É um filme que tem o apoio do Telecine. Já fez o circuito de cinema e agora vai fazer o circuito de televisão. O filme vai para o Telecine e depois, provavelmente, estará indo para a Globoplay. O filme segue agora o caminho do streaming e também tem outros caminhos a seguir - que são as janelas internacionais. É um filme que vai participar das feiras e, de repente, podemos ter o filme “Bate Coração” sendo exibido em outro país.
Você também estreou na plataforma Netflix com o documentário “Meu Tricolor de Aço” – que fala do time Fortaleza Esporte Clube. Quais são diferenças na distribuição entre as salas de cinema e o streaming?
Glauber Filho - Esse universo acompanha as evoluções tecnológicas e, ao mesmo tempo, acompanha os processos de mudanças como, por exemplo, questões culturais, de padrões culturais e dos usos das novas tecnologias. Nós conseguimos ver que a sala de cinema, hoje, tem um público na faixa etária entre 16 a 26 anos. Depois disso, o público prefere ficar em casa assistindo filmes no streaming. Mas isso está mudando. Não que o público mais adulto esteja indo para o cinema - mas os mais novos e adultos estão também buscando as plataformas streaming, cada vez mais um formato de série. Eu acredito que as salas de cinema terão que se reinventar. Vão ter que criar outras formas de se assistir filmes e isso significa mudanças de cultura e tecnologias - já conseguimos ver isso em algumas salas. Mas o streaming está em expansão, está em pleno desenvolvimento. Conseguimos perceber que os conteúdos realizados e a lógica são outras. Os conteúdos são pensados para o streaming e depois se pensa no cinema.
Quais as diferenças entre produzir conteúdo para cinema e streaming?
Glauber Filho - O streaming funciona muito bem no formato série, que não é possível, pelo menos no ponto de vista do atual mercado, para salas de cinema. Assim, quando apresentamos um projeto, pedem para pensarmos também na versão em série. Hoje por exemplo estou com um projeto que segue este caminho. É incrível! Para se ter ideia das diferenças, o primeiro Cine Hollywood, do diretor Halder Gomes, fez uma boa margem de público nos cinemas. Foi um filme lançado pequeno por causa do investimento, mas conseguiu fazer por volta de 400 mil espectadores. Mas quando foi para televisão e para o streaming, o público ampliou indo para aproximadamente 6 milhões de espectadores.
A sua parceria com a Estação Luz já rendeu boas produções - como os filmes “Bezerra de Menezes: O Diário de Um Espírito”, “Área Q” e “As Mães de Chico Xavier”, que ganhou uma grande repercussão nacional. Todos os filmes têm uma temática recorrente ligada ao espiritismo. É um tema com o qual você se identifica? Como encara a responsabilidade?
Glauber Filho - Geralmente me perguntam “qual é a sua religião?”. Eu paro um pouco para poder falar sobre isso. E digo “às vezes eu sou espírita, às vezes eu sou ateu, às vezes eu sou católico, às vezes eu sou evangélico, às vezes eu sou do candomblé, às vezes eu sou do xamanismo”. Mas sinto que eu tenho uma ligação muito forte com a espiritualidade. Eu faço essa espiritualidade. Ela está no aspecto criativo também. Gosto desse lugar criativo, imaginário e dessa estética que me possibilita construções de narrativas como o realismo fantástico, por exemplo. Esses filmes são bastante convidativos nesse sentido. É lógico que tem toda uma questão que envolve a moral da doutrina espírita e a própria cultura espírita. A relação de trabalho com a Estação Luz é sempre uma negociação nos caminhos e decisões narrativas, assim caminho com a produtora até chegar a uma concordância - porque tenho uma certa teimosia para algumas coisas. Por exemplo, o “Bate Coração” é um filme que tem uma temática espiritualista. Tem uma origem espírita, mas ele foge do aspecto formal doutrinário, não é um filme de uma adaptação de uma obra psicografada e não é uma biografia. Ele se amplia! E eu acho isso muito interessante: o cinema buscar esses outros caminhos também, até mesmo as propostas que têm origens específicas.
Todas essas produções conseguiram números altos na bilheteria e podem ser consideradas sucessos, mas, como sabemos, os filmes nacionais, em sua maioria, não arrastam grandes multidões. Como nosso cinema pode brigar com espaço em um mercado tão competitivo? Os blockbustters de super-heróis, por exemplo, costumam ficar com praticamente todas as salas. Como é possível competir nesse cenário?
Glauber Filho - Os filmes brasileiros são retirados do circuito. Literalmente, mandam retirar os filmes brasileiros. Se a gente pegar um cenário, assim, de 20 anos, vamos ver que o cinema está bem competitivo e com uma economia bastante forte, apesar de tudo. É lógico que como todo e qualquer meio de produção, como toda e qualquer economia, precisa ter políticas públicas de regulação. Então, é necessário que essas políticas públicas regulem as salas de cinema no sentido de ter uma reserva para o conteúdo nacional, porque, afinal de contas, isso é um produto industrial nacional. Tem que ter essa reserva. Por outro lado também tem uma questão do aspecto da cultura. A partir do momento em que não produzimos mais cultura em nosso país, vamos consumir a cultura do outro e a gente vai perdendo de certa maneira a nossa identidade. Mesmo os filmes que não conseguem essa distribuição de mercado acabam ocupando os circuitos de festivais, têm uma característica mais artística e menos comercial e são bastante importantes para as nossas identidades e reflexões da Arte. As políticas públicas também devem apoiar esse tipo de filme! Mas, se a gente pensar no cinema enquanto várias possibilidades, vamos ver, por exemplo, que a animação brasileira é muito forte. Vários canais que são internacionais têm animação brasileira. Tudo isso é o conteúdo nacional fruto de políticas de anos e anos do setor. E a quantidade de conteúdos que são feitos no Brasil em relação às séries também é elevada. Conseguimos ver hoje com a Rede Globo, por exemplo, em todas as suas plataformas. Os conteúdos são cada vez mais estéticos cinematográficos e são conteúdos que são vendidos no mundo todo. A economia do audiovisual é algo muito forte e rentável. No mundo, ela representa a terceira maior economia, principalmente quando se refere à economia americana, e o Brasil precisa chegar nesse patamar também. Em um determinado momento, o cinema brasileiro conseguiu contribuir para o PIB e teve um ano que foi muito maior do que a indústria têxtil. Muitas vezes não conseguimos pensar no cinema nesse lugar, com este impacto também. Eu acho que se houver políticas públicas para ter reservas de mercado, de salas e de taxação para recursos de produção e para, principalmente, pensar em toda a lógica de distribuição do conteúdo nacional em salas de exibição, financiamento para salas de exibição no interior e nas periferias, o cinema nacional consegue driblar essa lógica de mercado na qual o cinema internacional, pelas grandes distribuidoras, fica retirando os nossos filmes das salas.
O Brasil já teve altos e baixos em relação à sua produção de cinema. A produção dos anos 70 levou milhares de espectadores aos cinemas e nos anos 2000, talvez com o boom de “Cidade de Deus”, houve uma retomada do cinema brasileiro e muitas produções nacionais voltaram a lotar as salas. Em que momento estamos agora? Já é possível desenhar o cenário atual em termos de produção, de qualidade, de aceitação do público?
Glauber Filho - Estamos colhendo os frutos de 20 anos de políticas. Hoje temos uma grande interrogação, porque há um processo de desmonte que é inconcebível. Em relação ao público, conseguimos ver o público cada vez mais gostando do cinema nacional. É lógico que vamos encontrar aquele público que tem um preconceito. Antigamente havia uma questão tecnológica, mas, hoje, temos filmes com qualidade maravilhosa e competitiva, de repercussão internacional. Em 2019, tivemos um filme cearense, por exemplo, ganhando o Festival de Cannes, que foi o filme do Karim Ainouz. Tivemos o “Bacurau” também, do pernambucano Kleber Mendonça, que recebeu prêmios importantes em festivais internacionais. Os realizadores brasileiros estão sendo chamados para fazer grandes produções no mundo todo. O Fernando Meirelles, por exemplo, fez agora o filme “Os Dois Papas”. Há toda uma articulação nesse sentido de percepção do que é o cinema nacional é planetário e as suas ramificações também.
Talvez essa seja a pergunta de um milhão de dólares: mas o que faz um filme lotar as salas de cinema e ter sucesso de público? Só não vale dizer que é ser um bom filme, pois sabemos há filmes com histórias bem fracas que lotam as salas.
Glauber Filho - Essa pergunta vale mais do que um milhão de dólares, porque até os americanos se fazem essa pergunta. É difícil saber o que vai lotar uma sala de cinema. Hoje, o gosto do espectador é muito transitório. O que podemos levantar são alguns fenômenos de filmes que conseguiram grandes públicos. Primeiro é uma originalidade. No caso do Brasil, a originalidade no cinema brasileiro tem um lugar, vamos dizer, de grande aceitação na comédia. Na lógica da distribuição o que mantém o filme em uma sala de cinema é a primeira semana do lançamento. Se a primeira semana na sala garantiu uma lotação, ele vai ter uma vida longa. Se ele não lotar a sala de cinema, provavelmente o filme vai durar apenas 15 dias e aí há um processo gradativo de retirada.
Isso significa, então, que ele tem que ter um bom aporte para um bom planejamento de marketing e investimento de lançamento, pois não tem nenhuma relação com a qualidade do filme. Então, se pegarmos como exemplo um filme de custo de três milhões de reais - que é um orçamento baixíssimo, se comparado à produção americana que é de duzentos milhões de dólares - ele teria que ter um milhão de reais só para lançamento. Muitas vezes, o que acontece é que nós temos filmes excelentes, e se eles tivessem esse aporte e se tivessem esse trabalho de marketing, com certeza teria uma lotação de salas. Percebemos alguns fenômenos. Por exemplo, o “Cine Hollywood”, que se tornou um evento pela irreverência e originalidade- mesmo com poucos recursos para lançamento o filme conseguiu performar muito bem. O filme “Bacurau”, outro exemplo, do Kleber Mendonça Filho, teve todo uma questão da politização do filme no Festival de Cannes. Isso chamou a atenção da imprensa internacional e da imprensa nacional. Aí você tem uma mobilização sobre o filme e as pessoas vão assistir. No “Tropa de Elite”, houve um vazamento do filme e os comerciantes de cópias pirateadas começaram a vender o filme em DVD. Se isso foi planejado ou não, o marketing do filme deu certo, porque as pessoas começaram a falar que a obra tinha sido vazada antes do lançamento nas salas de cinema. Teve repercussão nacional e quando foi para o cinema ocorreu um sucesso de público. Contudo, para um filme se tornar “evento” e driblar a carência de investimento de marketing e lançamento será sempre uma interrogação.
O cinema tem um papel que vai além do entretenimento? Qual seria esse papel?
Glauber Filho - A arte e a cultura têm um papel de reconhecimento, identidade e transformação. De que se faz um brasileiro? De que se faz um cearense? Como é um cearense? Por que eu posso dizer que sou um cearense, um brasileiro, a partir de que? A partir do lugar que nasci ou a partir da minha língua? A partir dos meus valores culturais, a partir do sol da chamada terra do sol, com esse céu azul que me faz mais cearense? Todas essas questões fazem parte da Cultura e da Arte. O cinema tem esta função de mostrar quem somos. O cinema é importante nesse contexto. Um país sem cultura, ou sem percepção desta, é um país que pode ser tomado, porque ele não existe.
Em uma entrevista que eu li sua você dizia que um profissional de cinema não necessariamente precisa ter uma formação acadêmica, porque ele pode aprender na prática execução das tarefas do fazer cinema, mas que a formação superior é um diferencial para ele. Qual é esse diferencial entre a escola da vida e uma faculdade de cinema, uma universidade?
Glauber Filho - O tempo de construção do saber é mais largo, é mais extenso. Para você buscar este saber, você terá que ser autodidata. Você vai ter que ir atrás desse conhecimento e, muitas vezes, são raras as vontades que conseguem fazer isso. Geralmente pelas conjunturas estamos muitos ligados aos lugares de sobrevivência, e não temos tempo para o tempo, principalmente para o tempo do saber. Então aprender a fazer cinema, uma técnica específica, principalmente, quando está ligado à competência de manejo da tecnologia é algo rápido e fácil. Porém, não refletem e não há pensamentos sobre o cinema no sentido mais amplo. Quando trazemos esse conhecimento, principalmente para uma universidade, além da questão do desenvolvimento da competência da tecnologia, há toda uma reflexão crítica. É como se trouxesse esse conhecimento num grande pacote - não fechado, óbvio - mas dissesse: “aqui está tudo que você precisa para caminhar no saber”. E isso hoje é necessário para fazer cinema, para ser um cineasta. A pesquisa e os elos de trocas de experiências que você constrói dentro de uma universidade são importantes também. É importante pensar na universidade no sentido planetário e também pensar na universidade no sentido da articulação que faz com a cidade, com o estado, com os grupos sociais, com outros mundos. Buscar isso fora é possível, mas se está espalhado, pode ser uma viagem bastante solitária e para poucos. E precisaria ter muita disciplina. A construção da crítica é difícil quando você está só. Então, assim, para ser um cineasta e aprender a mexer nos equipamentos, você pode acontecer sem passar pela universidade. Mas passando por uma o saber se amplia com um enorme diferencial de qualidade.
Para além de funções mais conhecidas – como diretor, roteirista, diretor de fotografia, produtor – há uma gama de profissionais necessários quando pensamos na concepção de um filme. Quais áreas estão sendo pouco exploradas? Onde os novos profissionais podem investir?
Glauber Filho - Temos profissionais de várias áreas que estão dentro do audiovisual, que estão no cinema e que são necessários. Vejo que o que está faltando ainda é uma articulação desses outros saberes e essa compreensão que tudo isso é cinema, tudo isso é audiovisual.
Que tipo de profissional está saindo do curso de Cinema da Unifor?
Glauber Filho - É um profissional criativo; um profissional que pensa, elabora, produz a arte; é um profissional crítico. Ele sai também com o domínio de tecnologias. E, sobretudo, é um profissional que articula com esses outros saberes. Dentro da universidade, encontramos vários outros cursos que são mais próximos - pelo menos na sua origem e matriz - que são os cursos de Comunicação Social. Mas é possível transitar na área da Computação, da Informática, da Arquitetura, da Administração, da Economia, do Jornalismo, da Publicidade. É um profissional que tem essa experiência aqui dentro da universidade. Esse é o diferencial. O profissional que sair daqui da Universidade de Fortaleza sai crítico, criativo e com domínio das tecnologias e com a compreensão do que faz em diversas atuações.