Muitos nomes célebres já levaram a bandeira verde amarela do Brasil para o mundo mas, se depender de alguns brasileiros, um dia chegará a hora de levar o país para... Marte.
A cada dia surgem novas notícias sobre iniciativas de exploração humana do Planeta Vermelho e, por trás delas, estão brasileiros que se dedicam diariamente a estudar este corpo celeste que está a milhões de quilômetros de distância da Terra.
Em comum, eles tiveram o interesse pelo que está além da Terra despertado pela chegada do homem à Lua em 1969 e enxergam na exploração de Marte uma prova das capacidades humanas. Também desejam que, um dia, brasileiros como eles possam ter mais oportunidades na exploração espacial - campo no qual o país está longe da elite mundial.
Ivair Gontijo: 'Se cheguei à Nasa, qualquer um no Brasil também pode'
Falando à BBC News Brasil diretamente da Califórnia, em meio a uma agenda cheia de teleconferências e viagens, Ivair Gontijo, 58, exibe resquícios do sotaque mineiro falando do caminho que o levou do interior do Estado brasileiro à Nasa, a agência espacial americana, em 2006.
Nos Estados Unidos desde 1998, para onde se mudou para cursar o pós-doutorado, Gontijo integra hoje a equipe do Jet Propulsion Laboratory (Laboratório de Propulsão a Jato, em tradução livre) da agência. Entre muitas outras realizações, o grupo equipou o robô Curiosity para sua até agora bem-sucedida jornada em Marte, onde colocou seus "pés" - em uma ação milimetricamente planejada - pela primeira vez em 2012.
Foi precisamente nesta etapa, a da aterrissagem, que Gontijo viveu os minutos mais tensos e felizes de sua vida.
"Liderei o grupo que construiu os transmissores e receptores do radar que controlaria a descida final em Marte. Imagina você fazer o trabalho todo de construir e lançar esse veículo, que então faz uma viagem de mais de nove meses para Marte. Os últimos sete minutos são cruciais (para o sucesso da missão). O radar era essencial para os últimos três quilômetros da descida", lembrou o engenheiro em entrevista à BBC News Brasil por telefone.
"Não tinha imagem, a gente só tinha as linhas do software (com dados enviados pela sonda). E isso chegando à Terra 14 minutos depois, então tudo já tinha acontecido. Quando ouvi meu colega dizer 'nós achamos o solo com o radar', foi muito emocionante".
Mas, antes destes minutos cruciais, foram anos até que Gontijo deixasse de ser apenas mais uma criança encantada diante da TV com a chegada do homem à Lua para, de fato, acessar a elite mundial das empreitadas espaciais.
Nascido em Moema (MG), o mineiro estudou em escolas públicas no interior de Minas até, após um hiato de alguns anos trabalhando em uma fazenda, prestar vestibular. Ele se graduou em física e fez mestrado em ótica na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
"Vim de escolas públicas, de uma família numerosa, meu pai morreu quando eu tinha 5 anos... Isso tudo torna importante dizer que, quando a gente é jovem, quase tudo é possível: o preço é alto, tem que trabalhar muito, mas alguma coisa vai dar certo no final. Se eu consegui chegar à Nasa, qualquer um no Brasil também pode", aconselha Gontijo.
A partir do doutorado, o mineiro foi para o mundo: estudou em universidades da Escócia e dos EUA.
A experiência profissional de Gontijo com lasers catapultou sua ida à Nasa, e o tempo e alcance da sua trajetória na agência espacial foram muito mais longe do que ele podia imaginar inicialmente. Agora, o mineiro e sua equipe olham para 2020, quando a Nasa lançará sua próxima missão com destino a Marte.
O mineiro tem trabalhado na preparação de um veículo semelhante ao Curiosity, mas com instrumentos desenhados para coletar materiais orgânicos e inorgânicos que um dia serão trazidos e estudados na Terra.
Falando em material "orgânico", estamos falando de... vida em Marte?
Em seu livro A caminho de Marte - lançado em 2018, onde o cientista conta sua trajetória e, em paralelo, um pouco da história da exploração espacial - Gontijo explica que, embora tenha fascinado a humanidade por séculos, a possibilidade de vida no Planeta Vermelho "caiu de 100% para essencialmente zero" na década de 60. O balde de água fria foi jogado pela espaçonave Mariner 4 que, ao fotografar Marte, registrou um planeta frio e sem vegetação - sem água corrente e líquida, como era aventado. Esta primeira impressão foi corroborada por missões e estudos posteriores.
O interesse da Nasa hoje, diz Gontijo, não está em responder diretamente se há ou já houve vida em Marte, mas entender suas condições de "habitabilidade" - conhecimento que soma ao entendimento da formação da vida na Terra e quem sabe, em outras partes do universo.
Também não se trata, segundo o cientista, de preparar terreno para colonizar Marte em um futuro próximo. Ainda há obstáculos, em suas palavras "gigantescos", para que seja minimamente possível para um humano viver lá: é preciso encontrar soluções para sobreviver quase sem oxigênio e com muito gás carbônico (mais de 95% do ar), vento solar e uma atmosfera rarefeita.
"O lugar mais inóspito, mais terrível no planeta Terra, ainda é um paraíso comparado com qualquer lugar em Marte", diz.
"Mas toda essa exploração contribui para o acúmulo de conhecimento para o futuro. Imagina se Santos Dumont tinha ideia de para que suas invenções serviriam? Ou, há milhares de anos, se aqueles malucos que começaram a brincar com aquela coisa perigosa, o fogo, tinham ideia de que nos tornaríamos uma criatura tecnológica?", provoca Gontijo.
Thais Russomano: 'O interesse no espaço é parte de mim como é um braço, uma perna'
A "habitabilidade" de Marte apontada por Gontijo entra na área que há anos é estudada por uma conterrânea sua: a especialista em medicina espacial, a gaúcha Thais Russomano, de 55 anos.
"O que nos impede de ir a Marte é exatamente a minha área: o desconhecimento na área da fisiologia espacial, ou seja, como manter uma pessoa saudável e segura na viagem até o Planeta Vermelho, e depois, ficar lá", diz Russomano, que hoje vive em Londres e é professora na universidade King's College.
"O ser humano é terrestre: não somos aquáticos ou aéreos. A Terra nos molda e, à medida que a gente sai desse ambiente, o organismo começa a sofrer. Por isso, estamos sempre tentando simular a Terra nesse lugares. Estamos buscando comprimir a nossa evolução no espaço de décadas."
Exemplos de dificuldades são abundantes, e já começam na viagem de meses para o Planeta Vermelho: exposição a radiação cósmica, efeitos da microgravidade nos sistemas circulatório e imunológico, nos músculos e nos ossos e possíveis emergências à bordo.
Em solo marciano, os contratempos iriam da respiração à alimentação, passando pela variação de temperatura e tempestades de areia.
"Também tem todo o aspecto psicológico: o que vai acontecer com uma pessoa vendo a Terra como apenas um pontinho de luz?", questiona.
"Acredito que vamos chegar lá, mas temos que construir esse chegar lá. Nós já chegamos a Marte, temos robôs na superfície, isso não é um mistério. O mistério é como manter o ser humano viável", diz.
Russomano dedicou boa parte de sua vida a viagens pela Terra na busca por respostas a essas perguntas. Formada em medicina na UFPel (Universidade Federal de Pelotas), a gaúcha se tornou mestre em medicina aeroespacial nos Estados Unidos e PhD na Inglaterra. No Brasil, também fundou em 1999 o Centro de Microgravidade na PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).
Nessa trajetória, tentou conciliar uma carreira que representava para ela e a família um chão mais seguro - a medicina - com o grande interesse pelo espaço.
"Quando Neil Armstrong pousou na Lua, minha mãe conta que fui a única pessoa a ficar acordada na casa até tarde para ver (pela televisão). Eu era muito pequena, ela achou estranho", conta. "Criança, eu queria ser astronauta. Era uma coisa que nem minha família entendia direito. O interesse no espaço é parte de mim como é um braço, uma perna."
Russomano estudou em uma escola particular no curso primário e em uma pública no segundo grau. Conta sempre ter sido muito estudiosa e que figurou entre os primeiros da turma.
"Minha mãe costumava dizer: estudar é um prêmio, pois nem todas as crianças têm essa chance", lembra.
Russomano, como Gontijo, diz esperar que mais crianças brasileiras possam ter no espaço uma oportunidade de conhecimento e carreira.
"Sei muito bem o que é vir de um país não tão estabelecido. Não podemos nos comparar com uma Rússia, Estados Unidos, ou Alemanha. São países com uma tradição de décadas, que acumulam grandes feitos."
A nomeação do astronauta Marcos Pontes como ministro da Ciência e Tecnologia representou para os cientistas uma esperança de que este tipo de investimento no país possa finalmente decolar.
O sonho da colonização
Se estudos acadêmicos ajudaram a abrir as portas do espaço para Gontijo e Russomano, há brasileiros de olho em Marte apostando em caminhos diferentes.
É o caso da advogada e professora Sandra Feliciano, de 55 anos. Todo dia, ela dedica três horas de seu tempo para estudar inglês e diversos assuntos ligados ao Planeta Vermelho.
Sua dedicação é voltada para um objetivo distante - literalmente. Ela quer se mudar para Marte. Ela foi a única brasileira entre 100 candidatos a passar na mais recente etapa do Mars One, um projeto de colonização humana do Planeta Vermelho liderado pelo engenheiro holandês Bas Lansdorp. Pelo cronograma, apenas 24 serão selecionados para a viagem - sem volta.
No entanto, os planos do Mars One, além de serem vistos com desdém e ceticismo por cientistas que acompanham a ideia desde seu anúncio, sofreram, em fevereiro, um duro baque: a empresa declarou falência.
Mas Sandra acredita que a dificuldade será superada com a chegada de novos investidores, o que, segundo um comunicado no site do Mars One, está em negociação.
"São muitos fatores, muito dinheiro é necessário", diz a paulista nascida em Bauru e que há décadas vive em Porto Velho (RO). "O tempo de espera faz parte do processo seletivo. O perfil (de colono) exigido inclui a resiliência."
Se a missão for concretizada, os 12 homens e 12 mulheres selecionados seriam enviados ao espaço em pequenas cápsulas a cada dois anos.
O projeto prevê ainda o envio de veículos espaciais a Marte para estabelecer a estrutura da colônia: satélites para garantir a comunicação, módulos habitacionais e unidades que produzirão água e oxigênio, além de uma estufa para plantas terrestres.
Críticos apontam para a dificuldade do projeto em conseguir grandes financiadores e o fato de que os módulos necessários à sobrevivência dos colonos ainda não estão em produção. Engenheiros do prestigioso MIT, nos EUA, afirmaram que, sem um equipamento para equilibrar os níveis de oxigênio e gás carbônico produzidos por plantas na estufa, os colonos podem sufocar em 68 dias.
Apesar do ceticismo e críticas ao projeto, a brasileira continua tocando sua rotina que inclui a pesquisa de formas de produzir proteína em ambiente marciano. Sandra faz atualmente testes com branchonetas, um crustáceo minúsculo de água doce que existe no Brasil. A candidata a colona diz que é promissora a produção deles em ambientes internos a serem eventualmente instalados em solo marciano.
"Muitos projetos científicos serão realizados em Marte. Quero ajudar a levar projetos do Brasil", conta.
Sandra é fascinada por ciência desde criança e ela também ficou encantada com os passos de Neil Armstrong e conta ter escrito mais de 10 livros de ficção científica.
Para Sandra, o consumo intenso de recursos na Terra e riscos externos, como de um meteoro, devem forçar os homens a se tornarem uma "espécie multiplanetária".
"Faz parte da natureza humana enfrentar, desbravar. Nossa espécie é curiosa." BCC