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Afinal, é possível ouvir os mortos? Reportagem Revista Exame

05 de Julho de 2016 às 15h45
Cena do filme Chico Xavier: não existem hipóteses científicas que sustentem a concepção de algum tipo de alma que sobreviva à morte


Chico Xavier doou todos os direitos autorais dos mais de 400 livros que escreveu em vida. O gesto não era apenas generosidade do médium. Ele dizia que não havia escrito nenhum livro. “Eles escreveram”, repetia.

De acordo com a ciência, Chico não poderia falar com os mortos, claro. Tudo teria sido produzido pelo seu próprio cérebro. Se ele ouvia vozes, eram vozes produzidas por sua mente.

Afinal, a ciência mostra que a consciência (a mente, ou a alma) é fabricada pelo cérebro e está confinada nele. Ou seja, quando o corpo morre, a consciência desaparece.

Não existem hipóteses científicas que sustentem a concepção de algum tipo de alma que sobreviva à morte.

Mas, diante do acúmulo de casos como o de Chico Xavier, que não foi explicado pelas leis da natureza ou considerado categoricamente como fraude, um grupo de cientistas decidiu questionar a ciência - e não os médiuns.

A conclusão dos pesquisadores está no livro Irreducible Mind (“Mente Irredutível”, sem tradução para o português).

A obra parte da lógica de que fenômenos como a mediunidade, a telepatia e experiências de quase-morte são indícios de que o modelo teórico vigente nos meios científicos é incompleto.

Os autores defendem uma mudança na forma de encarar casos como o de Chico: tirá-los do campo do folclore e da superstição e analisá-los. Hoje, são ignorados.

Para o grupo coordenado pelo psiquiatra da Universidade da Virgínia (EUA) Edward Kelly, a ciência vem ignorando um princípio científico básico, o da “falseabilidade”, defendido pelo filósofo Karl Popper.

Popper dizia que era muito fácil - e perigoso - ficar catando evidências favoráveis para defender uma tese. Difícil era encontrar o argumento que a desmontaria de vez.

Para Popper, todo cientista sério deveria estar sempre procurando um furo na sua tese - e não o contrário.

Kelly e seus colegas defendem que a mediunidade pode ser um desses furos - e pode desvendar o mistério da consciência, que instiga filósofos e cientistas há mais de 2 mil anos.

Eles acreditam que parte do problema está em considerar mente e cérebro uma coisa só. Em Irreducible, os pesquisadores propõem que o cérebro seja encarado como um aparelho de TV.

A consciência seriam seus programas. Um defeito na TV pode alterar a qualidade da imagem, mas não necessariamente o conteúdo dos programas - eles não existem apenas dentro daquele aparelho.

Ou seja, sem a TV, não podemos enxergar nosso seriado favorito, mas ele existe mesmo assim. Só não pode ser assistido.

Funcionaria de um jeito parecido com a consciência: dependemos do cérebro para percebê-la, mas ela não está, segundo a proposta, confiada dentro do aparelho (o cérebro).

E isso garantiria sua sobrevida além do corpo, abrindo a possibilidade de explicar a ideia de que a consciência segue vagando por aí após a morte e pode se comunicar com os outras consciências, vivas ou não.

Kelly e os colegas não sabem dizer se estão certos nem têm provas irrefutáveis a favor dessa concepção. Eles oferecem a hipótese apenas para sensibilizar seus colegas da psicologia e da neurociência.

Querem que os cientistas tradicionais questionem suas convicções e prestem mais atenção em fenômenos hoje ignorados, como a mediunidade.

Os argumentos a favor dessas teorias ganham força com alguns estudos, como uma pesquisa publicada há dois anos na prestigiada revista científica Plos One.

Em parceria com a Universidade Federal de Juiz de Fora e com a Universidade da Pensilvânia, o psicólogo e neurocientista Julio Peres, da USP, viajou aos Estados Unidos com dez médiuns brasileiros.

Os voluntários eram destros e tinham entre 15 e 47 anos de experiência mediúnica - cada um com, em média, 18 psicografias por mês. Nenhum deles tinha transtorno mental diagnosticado.

No Centro de Radiologia e Medicina Nuclear da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia, os voluntários receberam uma substância radioativa para captar a atividade cerebral por meio de um exame de imagem chamado spect.

Peres e Andrew Newberg, o cientista americano conhecido por estudar o cérebro de freiras rezando e monges em meditação, avaliaram as diferenças nas imagens do cérebro dos voluntários em dois momentos: durante a psicografia e fora do estado de transe, escrevendo um texto comum, de autoria “própria”.

Os resultados mostraram uma diferença significativa. Em transe, enquanto supostamente escreviam guiados pela voz ou pela mão dos espíritos, os médiuns apresentaram níveis mais baixos de atividade no lobo frontal, que está associado à razão, à linguagem e ao planejamento.

“Esse resultado possivelmente reflete a ausência de consciência na psicografia”, explica Peres. Enquanto escreviam normalmente, essas regiões cerebrais, que costumam estar alertas durante uma tarefa intelectual, como a escrita, voltavam ao normal.

Os cientistas resolveram, então, comparar o conteúdo dos dois textos. Se era verdade que o cérebro estava com a capacidade de raciocínio limitada durante a psicografia, os pesquisadores levantaram a hipótese de que os textos produzidos em transe refletissem isso e fossem mais pobres.

Para a surpresa geral, ocorreu justamente o contrário. O conteúdo das psicografias era mais complexo e elaborado do que os textos feitos em estado pleno de consciência. Entre os médiuns mais experientes, essa variação era ainda mais perceptível.

“Os médiuns referem que ‘a autoria dos textos psicografados foi dos espíritos comunicantes e não pode ser atribuída a seus próprios cérebros’. Essa é, sim, uma hipótese plausível entre as várias possibilidades de compreendermos esses primeiros achados”, diz Peres.

Opiniões à parte, o estudo tem pelo menos uma conclusão clara: mesmo que tudo seja obra da mente dos médiuns, como diz a ciência, boa parte deles não tem consciência disso. Revista Exame