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Luz Através da Janela...

31 de Outubro de 2021 às 21h10

 Segue mais um link de Podcast com o texto deste mês, para aqueles que gostam da versão em áudio (e com alguns efeitos especiais...)! Caso desejem acompanhar a leitura, segue o texto na íntegra abaixo! Espero que gostem! Um abraço!

https://open.spotify.com/episode/4nLAOAtS9ZDLScIKMpj1xP?si=07259ce6e03849bf

           - Ahn... uma lincencinha... por favor... ui, desculpe... ai! – murmurava, enquanto tentava bravamente me espremer junto com minha mala funcional entre os vinte passageiros que ocupavam aquele metro quadrado limitado e claramente mal ventilado do metrô. – Ufa! Ah, obrigada! – exclamei para o homem de bigode ao meu lado, quando senti que seu abdome saliente havia se deslocado alguns milímetros para a esquerda, me dando alguma vantagem contra o restante da massa humana que, atrás de mim, tentava também entrar no metrô. Mas logo percebi que meu agradecimento fora em vão, já que na verdade o homem estava ganhando impulso para, com seu abdome à mostra por baixo de uma curta e suada camiseta, mover pelo menos umas dez pessoas (incluindo eu) para o lado oposto onde ele (e seu abdome) estavam muito bem acomodados.

            Evitando a queda ao me apoiar em parte na porta já fechada e em parte em um “qualquer coisa resistente o suficiente para me sustentar e gosmento o suficiente para que eu não procurasse saber o que é”, me equilibrei novamente, agarrei como podia na minha malinha (ok, uma mala grande demais para apenas três dias de viagem, mas quem está contando?) e repassei em minha mente o trajeto que eu devia seguir para chegar até a casa da minha prima, bem no centro da cidade.

            - Eu desço na terceira ou na quarta estação? – Murmurei para mim mesma, tentando ler no painel à frente de um homem de dois metros de altura e quase o equivalente em largura o nome das estações daquela linha de metrô. “Raios... eu devia ter aceitado que ela me buscasse na rodoviária”, murmurei para mim mesma, percebendo que não sabia ao certo para onde ir e sentindo um discreto pânico escorrer junto com o suor na minha face. Mas honestamente, não seria justo, já que a minha ida até lá era exatamente para lhe dar apoio após tudo o que ela estava passando nos últimos tempos.

            Fiquei abismada quando li suas palavras recebidas em plena madrugada, e é como se pudesse ouví-las martelando na minha mente: “Querida prima, não aguento mais. Estou exausta, minha alma dói, meu coração está dilacerado. Olho no espelho e não me reconheço, e apenas deixo que a vergonha manche meu rosto, junto com minhas lágrimas. Onde foi parar a alegria? Será que deixei junto com os sonhos que enterrei? Será que ficaram embaixo da cama, onde minha filha se esconde quando ele chega embriagado, gritando comigo? Onde foi parar a leveza, o cantar? Será que ficaram no dia em que passei a me culpar pelo redemoinho que se tornou a minha vida? Me sentindo a pior mulher da face da Terra, merecendo todos os comentários depreciativos que ele lançava para mim, sempre que eu tentava explicar o porquê não tínhamos carne na mesa, já que ele estava sem trabalhar há meses? Me sentindo a pior mãe do mundo, ao abraçar a minha filha até que ela adormecesse chorando, com medo de que no dia seguinte a surra que ele me daria finalmente me levaria? Eu tentei, juro que tentei... tentei dar o melhor de mim, mas parece que nunca era o suficiente. E talvez nunca fosse, realmente. Parei de acreditar em mim, de ter vontade de lutar, ou talvez tenha faltado forças mesmo... Era mais fácil simplesmente seguir... Mudar parecia tomar uma energia que eu não reconhecia mais em mim mesma... Por muito tempo vivi esperando pelo amor que um dia achei que tinha... passei então a apenas viver... até que simplesmente passei a existir. E achei que fosse permanecer assim, até o dia em que ele partiu para cima da nossa filha. Foi como se uma avalancha tivesse surgido dentro do meu ser, e de onde não faço ideia tomei forças para protegê-la. E naquele dia, decidi que já chega. Não por mim, mas por ela. Me arrependo profundamente de ter permitido que ela vivesse tudo o que viveu até hoje, mas se não posso mudar o passado, está na hora de reconstruir meu futuro. Não sei como, mas vou. Estamos em um pequeno apartamento no centro da cidade tentando nos reconstruir. A janela é pequena, mas daqui podemos ver o Sol. E ele é lindo.”.

            Imediatamente fiz minhas malas e decidi ir até ela, para ajudar no que fosse preciso e possível. Fiquei abismada com o que ela havia me falado, mesmo porque ninguém poderia imaginar aquilo que ela estava vivendo... Sempre tão sorridente por fora, mas claramente em pedaços por dentro...

            - Como as pessoas se submetem a vidas de tanto sofrimento assim? – perguntei indignada a mim mesma, mas aparentemente alto demais, já que ouvi uma voz ao meu lado responder.

            - Às vezes elas simplesmente soltam o leme do barco de suas vidas, e uma vez percebendo que a maré as leva, se esquecem de que sempre podem retomar o controle, por mais difícil que seja.

            Olhei para o lado e me deparei com uma jovem mulher de cabelos negros bem curtos, grandes olhos negros intensificados com um forte rímel, a mão direita se apoiando no corrimão e a esquerda segurando o que parecia ser uma caixinha de som.

            - Perdão, o que disse? – perguntei, sem saber se era realmente comigo que ela estava falando.

            - É muito mais simples permanecer no fluxo do rio que já está sendo percorrido do que remar contra a corrente e buscar uma nova direção. Mudar gasta energia, gera muito medo. O desconhecido é um grande buraco negro de possibilidades, mas insistimos em apostar no pior, e com isso preferimos permanecer naquilo que, mesmo gerando dor, ainda sim é seguro, porque é real e palpável.

            - Mas o sofrimento não era para ser um estímulo de mudança? – perguntei, deixando a conversa fluir já que estava indignada com a situação da minha prima. - Principalmente numa situação em que diariamente se está sendo massacrado e reduzido ao nada?

            - O ser humano é capaz de modificar a sua percepção do sofrer de forma a justificar a sua inércia e resistência à mudança. Muitas vezes o sofrimento acaba sendo camuflado, justificado, ou mesmo racionalizado de forma a se transformar em simples acasos da vida, impedindo que uma decisão seja efetivamente tomada para a modificação da realidade. E em outras situações, a pessoa entra de tal forma no turbilhão de sentimentos que envolvem sua realidade que se deixa levar, abandonando suas forças a cada esquina, já que vai sucumbindo a uma tortura silenciosa e diária de decepções. Vai deixando de acreditar que ela vale à pena, e vai sucumbindo, deixando que a vida passe por ela.

            “Mas sabe o que ninguém conta para essas pessoas? Que elas têm um valor inestimável, e que se não estão encontrando forças para lutar, há milhares de mãos estendidas para lhes ajudar a escalar o monte de seus desafios, e vencer. Sempre há chance de reescrever a própria história, mesmo que o tempo pareça ter passado rápido demais, deixando apenas pegadas solitárias. Mas se abrirem bem os olhos, verão que há centenas de pegadas que estão caminhando juntas, ora carregando umas às outras, mas sempre dando força para continuar. Para continuar a lutar. Para acreditar que amanhã será melhor.

            “Não vivemos em um mundo perfeito, e há milhares de pessoas que sofrem. Fome, doenças, privações, abusos das mais diversas formas... Negligência, agressões, ausências. Crianças que mal aprendem a sonhar, porque a realidade é por demais cruel. Mulheres que se perdem em si mesmas, em busca de um amor que deveria ser próprio. Homens que se lançam ao desespero pelos espinhos de tantas decepções. Mas o que seria de nós se simplesmente desistíssemos? Tem que haver gente chata, gente insistente, com mania de acreditar. Gente que se recusa a sucumbir e bate o pé dizendo: amanhã vai ser diferente porque eu vou fazer ser diferente. Não podemos mudar o mundo de um dia para o outro, mas podemos mudar a nós mesmos, e como uma onda essa mudança vai se propagando até alcançar quem precisa apenas de um sopro para voar. É a vida, e merece ser vivida da forma mais bela e pura possível. Se ainda não há beleza e pureza suficiente para todos, façamos a nossa parte para criar uma aquarela que valha a pena ser compartilhada e vivida por quem se prendeu nas cinzas e se esqueceu da fênix exuberante que pode ser.”

            Boquiaberta, tentei me recompor para continuar a conversar e absorver mais luz daquela estranha, mas era tarde demais. A vi passar entre os demais passageiros com uma destreza impressionante, e estando posicionada mais ou menos no centro do metrô, percebi que ela ligou a caixa de som, fechou os olhos e, como que se entregando absolutamente à tudo aquilo em que acreditava e começou a cantar, como que em um tributo à ninguém em particular, e a todos, em especial...

 ...

            Eu havia perdido a estação onde deveria ter descido, mas não tinha problema. Tempos depois me encontrei, assim como à minha prima, que com um sorriso simples e genuíno nos lábios, um que eu nunca havia visto antes, me mostrou o Sol através da pequena janela de seu mais novo lar. E vendo o brilho em sua alma, a leveza em seu espírito e a força que transbordava, mesmo que ainda tímida, em seu olhar, concordei com ela: Ele realmente é lindo.