O mês de setembro é, sempre, um convite para homenagear José Herculano Pires, o maior pensador espírita brasileiro de todos os tempos. Em vinte e cinco de setembro de 1914, Herculano retornava ao plano físico.
Assim como Kardec, viveu 65 anos incompletos e sua produção literária, além dos programas de rádio e TV, alcançou mais de 80 títulos. Poderia ser cognominado de “Kardec brasileiro”, facilmente. A conversão de José Herculano Pires ao Espiritismo já demonstrava o grande caráter de sua personalidade e a qualificação de sua presença no meio espírita: católico de formação até os 15 anos de idade, o jovem de Avaré (SP) foi guiado pela necessidade do raciocínio lógico e aplicado, a fim de conhecer melhor as “coisas do mundo”, passando antes pela Teosofia até acessar, pela vez primeira em face de um desafio proposto por um amigo, o conteúdo de “O livro dos espíritos”, em 1936, aos 22.
Precocemente, revelou sua veia literária (um soneto, aos nove, sobre o Largo São João, sua terra natal, depois, com Sonhos azuis – contos, aos 16, e Coração – poemas livres e sonetos, aos 18 anos de idade). Com 32 anos, publicou O caminho do meio, seu primeiro e mais elogiado romance e aos 44, licenciou-se em Filosofia com a tese “O ser e a serenidade” (depois, também, publicada como livro).
Se pudéssemos adjetivar Herculano lhe atribuiríamos a combatividade como sua maior marca. Numa época em que, ainda, o Espiritismo procurava o “seu chão” para fincar raízes, tanto em termos filosófico-doutrinários como sócio assistenciais, o professor denunciou e bradou forte e claramente contra todo e qualquer desvio, tentativa de adulteração e desconfiguração do edifício kardequiano, sendo, ainda, o interlocutor favorito dos programas de rádio e TV para debater com clérigos, parapsicólogos e cientistas, sobre questões transcendentais.
Homem múltiplo, na definição de seu biógrafo e amigo Jorge Rizzini (recém-desencarnado), conseguiu conciliar a trajetória espírita com atividades profissionais no âmbito do magistério, da filosofia, da parapsicologia, do jornalismo e do sindicalismo, foi servidor público (Banco do Brasil), além de ter atuado na esfera político-governamental, por diversas vezes. Participou do Governo Jânio Quadros, em São Paulo e chegou a colaborar na (meteórica e polêmica) gestão deste político à frente da Presidência da República, como chefe do subgabinete da Casa Civil (1961).
Produzia tanto e com inegável e inigualável qualidade, que, a seu respeito, dizia sofrer de grafomania, pois escrevia dia e noite. Publicou em torno de 85 livros (dos quais 62, espíritas) e mais de 15 mil laudas, sobre as mais variadas temáticas (Filosofia, Ensaios, Histórias, Psicologia, Parapsicologia e Espiritismo).
Conferencista ardoroso, com uma prodigiosa memória quanto às citações das obras fundamentais em suas exposições, foi, ainda, escritor e articulista de mão cheia. Nunca, entretanto, esteve de braços dados com a Federação Espírita Brasileira, talvez porque a contundência de suas manifestações não fosse o perfil desejado pelos dirigentes da Casa-Máter, sob os auspícios de Ismael e porque Herculano nunca aceitou, antes deixou sempre consignada a sua divergência com a federativa pela adoção de princípios e teses roustenistas naquela Casa e pela insistência na edição de Os quatro evangelhos. Mesmo assim, mereceu o status de “Kardec brasileiro”, de reconhecimento aos inúmeros serviços prestados à Doutrina Espírita tendo, entre seus livros, aquele que foi democraticamente escolhido em processo de consulta, “O espírito e o tempo” como o “livro espírita do século XX”, ao lado de “O problema do ser do destino e da dor”, do pensador francês León Denis. Esta obra herculanista, que recomendamos a leitura e o estudo, é um verdadeiro Tratado Antropológico do Espiritismo, base para a consideração da Mediunidade como base cultural da História da Humanidade.
Jornalista, colaborou com periódicos (jornais, revistas e boletins) e dirigiu, durante seis anos o jornal Diário Paulista, tendo sido redator, secretário, cronista e crítico literário, alcançando a respeitável marca de dois mil artigos em 12 periódicos.
Pedagogo e Educador, foi responsável, através de várias iniciativas, pela difusão da Educação Espírita como cadeira pedagógica, sendo o primeiro daqueles que propugnaram pela existência de Faculdades Espíritas. Editou e lançou (1970) a revista “Educação Espírita”, construída sobre o paradigma “o educando é um espírito encarnado”, lamentavelmente de curta duração, pela falta de apoio e o desinteresse dos espíritas e a dificuldade, inclusive, de participação dos pedagogos espíritas, sem interesse em produzir artigos e matérias para o periódico. Isto fez com que Herculano adotasse quase uma dezena de pseudônimos – muitos dos quais conhecidos até hoje, em razão de incursões do professor em órgãos noticiosos, assinando como tal – dos quais o mais famoso era Irmão Saulo.
De sua existência física, vivida intensamente, sobressaem os caracteres de seu Espírito imortal: profundidade e coragem, sobretudo para a edificação de pontes permanentes e sólidas entre o conhecimento espírita e as vertentes da cultura contemporânea.
Curioso é que as mesmas superstições que eram consideradas por Herculano, jovem, como impeditivas a que ele se interessasse pela Doutrina Espírita, muitas vezes, figuram presentes nos dias de hoje, em face de tanta acomodação e desinteresse dos espíritas pelo estudo, abrindo campo propício às adulterações, inserções de teorias e práticas esdrúxulas, além, é claro, da perigosa e prejudicial visão personalista daqueles que insistem em “interpretar” a seu talante as questões da vida, dispostos a encontrar e a proferir “soluções milagrosas” para os problemas existenciais. Nunca tivemos profusão tão grande de obras ditas espíritas, mas que não guardam a menor sintonia com os princípios genuinamente kardequianos, do mesmo modo que a regra de aprovação de mensagens “ditas” espirituais, foi completamente abandonada por instituições e editoras, seja por comodismo, por não desejarem causar melindres ou, até, seduzidas pelos lucros das vendagens de obras que “encantam” pela fantasia e misticismo.
Religioso, por tradição, formação e excelência, Pires sempre alertou os adeptos espiritistas do risco que o igrejismo salvacionista, o fanatismo e a mitificação (idolatria de guias, médiuns e/ou dirigentes) poderiam causar à proposta libertária do Espiritismo. Tanto é que, veementemente, pontua: “Os beatos das religiões dogmáticas trocaram de pele, mas não perderam suas manhas. Substituíram os ritos católicos pelos passes e preces, a água benta pela água fluídica e os rosários de repetições medrosas pelos colares de contas de ifá, na magia primitiva das religiões mágicas da selva, negras e indígenas” (em “O mistério do ser ante a dor e a morte”).
Herculano nos provoca a doce e agradável saudade, sempre que o revisitamos em cada leitura, sempre que republicamos um texto ou uma citação de artigo ou livro, no Facebook, especialmente no grupo “Espiritismo COM Kardec” (https://www.facebook.com/groups/Espiritismo.COM.Kardec/), assim quando escrevemos sobre algum tema, com inspiração naquilo que ele ensinou. Todos representativos do sinal e expressão de alerta àqueles que desejam um Espiritismo plural, permanente, alteritário e produtor das grandes transformações evolutivas (individuais e coletivas). Este é o maior legado que ele nos deixou, um talento que devemos fazer multiplicar, como recomendou aquele Carpinteiro de Nazaré.
Ler e estudar Herculano e, sobretudo, entendê-lo e aplicá-lo no cotidiano de nossas instituições e no seio de nosso movimento, é o maior sinal de que as sementes que ele lançou vicejaram e já produzem frutos, a cem por um.
Esteja sempre conosco, nos inspirando, Professor!