Já há algum tempo, existe uma movimentação de dimensão internacional em prol da legalização do aborto voluntário. Só neste ano de 2018, tivemos notícias da aprovação do ato na Irlanda, e ainda do entrave da proposta no senado argentino.
Sem dúvida, esta questão é cercada de polêmicas e controvérsias, discursos inflamados e, muitas das vezes, falta de compreensão de todos os lados. Neste contexto, cada um de nós, como ser essencialmente político, social, se sente convidado a refletir e se posicionar diante do tema.
Particularmente, partirei de um local de fala de quem é tanto espírita como feminista para conduzir este post. Não pretendo fazer a minha opinião representar todas que se enquadram neste mesmo lugar, mas sim fornecer uma visão que construí em cima das minha vivências pessoais como mulher, apoiada sobretudo naquilo que a Doutrina nos ensina. Da minha parte, igualmente, empreendo um grande esforço para entender as diferentes perspectivas e posicionamentos dentro deste assunto, sem julgamentos, principalmente daqueles que estão fundados em visões de mundo das quais não compartilho - mas que, certamente, respeito.
Então aqui realizamos uma reflexão de cunho espírita. E, como espíritas, sabemos das grandes implicações cármicas que um aborto voluntário deve acarretar, no que tange aos comprometimentos que isso pode gerar à mãe, ao pai, e aos transtornos que envolvem o filho ou filha abortado. Isto porque o indivíduo que irá reencarnar está engajado no seu processo de retorno à Terra desde a fecundação, e mesmo às vezes, desde a aproximação romântica daqueles que irão concebê-lo. Ao abortar, planos são frustrados, ressentimentos entre os envolvidos são criados, e por fim, uma grande oportunidade – a de evoluir – é perdida. Por isso, quanto à interrupção voluntária da gestação, o Espiritismo tem um posicionamento muito claro: abortar é tirar a vida, e tirar qualquer vida é transgredir a lei de Deus, posto que é só a Ele que cabe tal decisão (Livro dos Espíritos, Q. 358). Gerar e criar um filho torna-se, então, uma missão designada por Ele.
No que diz respeito a uma ampla vertente do movimento feminista, geralmente denominada “pró-escolha”, vemos que as mulheres clamam pelo direito de decidir sobre seu próprio corpo, na crença de que no feto, não há vida, ou se há, essa vida é considerada menos relevante do que a da mãe. Isto, em geral, pode se dar porque a compreensão de vida destas pessoas, muitas das vezes, não é tão alargada quanto aquela que nós, espíritas, temos. Outra coisa é a crença de que a mulher é proprietária do seu corpo: quanto às decisões que cada uma efetua acerca de si, sem se deixar afetar por imposições do outro, este ponto é muito válido. Mas nesta mesma visão alargada de nossa existência, conforme a Doutrina Espírita, nosso corpo é senão um instrumento concedido a nós por Deus - sem falar no feto que, igualmente, não nos pertence.
De qualquer forma, cada um de nós tem a liberdade de tomar suas próprias decisões e colher as consequências de seus atos. Não cabe ao espírita fazer proselitismo, buscar por “fiéis” ou arrebatar multidões para o centro, tampouco julgar o que os outros fazem. Cabe a nós sim, buscar compreender, não julgar, e sobretudo, acolher.
E é por isso que devemos entender o que se chama de “recorte social” dentro da argumentação de quem defende a legalização do aborto: o fato de que, mulheres negras e pobres sofrem de forma mais intensa o peso daquilo que uma sociedade machista/racista impõe. Devemos compreender o que é que, em geral, leva uma mulher a abortar: o medo, a falta de apoio, o abandono da família e do companheiro, a falta de recursos financeiros ou de equilíbrio emocional. Como julgar alguém em situação tão desfavorável? Será que cada um de nós agiria diferente nas mesmas circunstâncias? Então por que julgar? Esquecemos, novamente, da trave em nosso olho para ver somente o argueiro no do irmão?
Diante disto, outro ponto elementar desta discussão é acerca da criminalização de quem aborta, ou seja, a forma com que a sociedade lida com as mulheres que já abortaram. Estas mulheres não precisam de nossos rasos julgamentos, senão de nosso verdadeiro amor. Que possamos, enquanto cristãos, estarmos abertos ao regenerador sentimento da empatia e da benevolência. Ter a disponibilidade para entender que aquilo que hoje é óbvio para nós – a integralidade do espírito e a amplitude da vida – pode não ser óbvio para os outros. Entender o momento evolutivo de cada um. Que as nossas crenças ocupam espaço em nossas vidas, mas que não correspondem, necessariamente, à visão de mundo do outro. Cabe somente a Deus julgar tal ato e, de acordo com a Sua lei de justiça, amor e misericórdia, aplicar as expiações necessárias para que a mulher quem abortou, assim como para que seus indutores, se redimam com o Universo.
Todavia, devemos voltar ao ponto nevrálgico da discussão: como espírita, é coerente ser contra ou a favor da legalização do aborto voluntário? “Afinal, apesar de eu mesmo ter as minhas crenças, o Estado é laico” – é o que muitos afirmam. Mas eu sempre penso na forma com a qual, apreendendo as grandes máximas do Evangelho, é fácil deduzir logicamente como agir quanto às questões morais humanas. E é aí que me vem à mente, com muita serenidade: “não podemos esconder a luz sob o alqueire”. As crenças espíritas são uma adesão pessoal, mas suas leis devem ser pensadas em uma aplicabilidade universal. Portanto, não penso que seja conveniente defender a legalização do aborto.
Não é sobre fazer disso uma imposição ao outro, porém creio que é tomar com convicção aquilo que sabemos, como Espíritas, ser o caminho para uma verdadeira transformação social: o entendimento da amplitude da vida. Este é o mote por trás deste texto. Ainda, se imposição fosse o caso, estaríamos defendendo da ampla criminalização do ato - o que aqui não se aplica.
Independente da perspectiva de que há vida ou não em um feto, é prudente considerarmos que o aborto é uma violência ao próprio corpo feminino, em termos de sua saúde física, bem como emocionais e psicológicos. E assim, podemos ainda nos inquirir: “mas o que fazer diante do fato consolidado de que mulheres abortam diariamente? A mera negativa não soluciona os problemas, não salva as mulheres que morrem”. De fato. E sobre isto, penso na forma com a qual estamos inseridos em um sistema político que está muito acostumado, ou melhor, viciado a tomar medidas paliativas, agir em cima das consequências e de problemas concretizados em nossa sociedade no lugar de trabalhar as causas. Portanto, por que não direcionar investimentos em políticas preventivas? Em campanhas de educação sexual, na desconstrução da masculinidade tóxica e do ideário de que a maternidade é um fardo da mãe, na conscientização sobre o uso adequado de métodos contraceptivos...enfim.
Creio que podemos virar nossos rostos 180˚ e olhar para os fatos que geram as circunstâncias de um aborto voluntário em vez de viabilizar, social e institucionalmente, sua realização.