Teria Deus criado almas masculinas e femininas, fazendo estas inferiores àquelas? Eis toda a questão. Se assim fosse, a inferioridade da mulher estaria nos decretos divinos e nenhuma lei humana poderá transgredi-los. Tê-las-ia, ao contrário, criado iguais e semelhantes? Nesse caso as desigualdades, baseadas na ignorância e na força bruta, desaparecerão com o progresso e o reinado da justiça (KARDEC, Revista Espírita, Janeiro 1866, p. 15).
Allan Kardec, codificador da Doutrina Espírita, sempre se mostrou altamente sensível às questões pertinentes aos direitos das mulheres. N’O Livro dos Espíritos, publicado pela primeira vez em 1857, já existe uma sessão que aborda a igualdade dos direitos do homem e da mulher, quando no século XIX, em verdade, a classe feminina ainda se organizava de modo disperso para lutar por oportunidades igualitárias. Sobre este tópico, falaremos de modo mais aprofundado em outra oportunidade. Mas com isso, pode-se dizer que Kardec e a Doutrina Espírita estão, neste sentido, à frente do seu tempo.
Hoje trataremos do artigo publicado na Revista Espírita de janeiro de 1866, cujo nome é “As Mulheres Têm Alma?”. Uma pergunta claramente motivada pelas circunstâncias históricas em que Kardec se encontrava, e que apesar de ser considerada ridícula pelo próprio codificador, para muitos povos daquela época (principalmente os orientais), teria uma resposta negativa.
Naquele tempo, as mulheres eram tidas como seres supostamente inferiores, moral e intelectualmente, reduzidas a um instrumento disponível para o prazer masculino. Sem dúvida, na atualidade, nós mulheres ainda sentimos os ecos deste tipo de pensamento no nosso cotidiano. E com vistas nesse aspecto, Kardec afirma que é deste tipo de preconceito que nasce a inferioridade legal da mulher, coisa que, do século XIX até agora, não foi totalmente apagada dos códigos societais. Exemplo disto é quando Kardec menciona que a faculdade de Montpellier havia recentemente concedido o quarto diploma de bacharelado a uma mulher. A notícia se espalhou nos círculos sociais com certa agitação, e alguns consideravam este algum tipo de “monstruosa anomalia”.
Por sua vez, a submissão à estas condições parece nos ter sido ensinada, imposta pela cultura, como um hábito. Mas com o passar do tempo, não mais aceitamos ser ofuscadas, animadas pela força de nosso intelecto e vontade própria. A aceitação do fato de que uma mulher era portadora de uma alma própria ajudou a abrir caminhos para que nós tivéssemos acesso à educação e mais respeito, todavia, muito do que se fazia ainda tinha um ar de uma mera concessão ou condescendência, em vez da legitimação de direitos que nos eram genuínos.
Pouco a pouco, a emancipação da mulher passou a fazer parte de um sonho que deveria ser conquistado num embate com o conservadorismo que se perpetuou durante os séculos. Nas vias deste processo, o Espiritismo viria a corroborar que a demanda por igualdade se trata de algo fundado em leis universais:
Com a Doutrina Espírita, a igualdade da mulher não é mais uma simples teoria especulativa; já não é uma concessão da força à fraqueza, mas um direito fundado nas próprias leis da Natureza. Dando a conhecer essas leis, o espiritismo abre a era da emancipação legal da mulher, como abre a da igualdade e da fraternidade (KARDEC, Revista Espírita, Janeiro 1866, p. 18).
Naturalmente, quando Kardec se refere à mulher como fraca, ele está falando sob a concepção cultural dominante daquele tempo. Mas mais importante do que isso é perceber como ele próprio estabelece o diálogo que nós nos propomos a dar continuidade aqui, entre feminismo e espiritismo.
Por fim, Kardec nos lembra em seu artigo que o sexo e o gênero só dizem respeito à matéria, porque na vida espiritual, tais coisas não existem. Nossas experiências em corpos femininos ou masculinos se correspondem diretamente com nossas necessidades evolutivas.