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Véspera de Natal

15 de Dezembro de 2019 às 17h45

Ana Cecília Novaes

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                 - UM “BATE O SINO” COM CHANTILLY EXTRA E COBERTURA DE CARAMELO PARA A MESA QUATROOOO! – urrou o pobre coitado atendente em direção a uma pequena abertura na parede que provavelmente separava a cozinha da cafeteria do que agora parecia ser uma convenção de caos, suor e “cheguei primeiro”. Honestamente, devo admitir que estava extremamente penalizada por Jonny, como dizia seu crachá, que devia estar se lamentando por ter se oferecido para trabalhar em plena véspera de Natal, pensando na hora extra que iria ganhar. Tendo em vista suas feições de desespero ao tentar equilibrar quatro bandejas e dois expressos em seus raquíticos braços de adolescente, suponho que ele, assim como eu, não imaginara que justamente naquela noite a linha de trem iria cancelar as três útimas viagens em decorrência de um problema em um dos vagões, levando à multidão de passageiros desolados (e irritados) a buscar abrigo no local mais próximo que, para sua conveniência (e provável motivo de futura terapia a Jonny), estava com o cardápio de Natal em promoção de última hora.

                Devo admitir que o lugar tinha seu toque de aconchego, com vários pisca-pisca na vitrine e uma árvore de Natal pequena, mas festiva, desejando “Feliz Natal!” a cada um que abria a porta. Observando o engenhoso mecanismo que o dono da cafeteria deve ter usado para sincronizar a campainha da loja a esse mecanismo da árvore, conclui que, definitivamente, o Natal era uma época que não passava batido naquele lugar (para tristeza de nosso querido Jonny, que a cada “Feliz Natal” sentia o suor da exaustão descer sobre seu rosto de espinhas e desespero).

                Não posso dizer que estava em um lugar privilegiado, considerando que compartilhava o assento com uma senhora que não parava de falar de seu neto Joe (advogado bem sucedido, que ‘provavelmente irá processar a linha de trem por essa afronta à sua querida avó, estou avisando...’), e uma adolescente com um capuz na cabeça, absolutamente incongruente com o calor que fazia ali dentro, em meio à multidão de clientes. No entanto, não posso reclamar, dado que sentar-se era um luxo naquele momento. Ser atendido... já era outra questão...

                Eu era uma das várias passageiras que viu seus planos de Natal serem frustrados pelo inconveniente do trem, mas não posso dizer que estava arrasada em decorrência disso. Eu estava indo à casa de titia Gertrudes para as festas natalinas, e não! Não me entenda mal! Estava ansiosa por revê-la, mas havia algo em sua última conversa ao telefone que me fizera agradecer pelos acasos do destino: “Na ceia vou te apresentar ao filho da sobrinha da irmã da Dolores do pôquer de segunda, minha querida! O tempo está passando e você não está ficando mais nova a cada dia!”. Considerando meu grau de motivação para conhecer o fulano de tal, simplesmente me aconcheguei entre a avó orgulhosa e a garota estranha e respirei tranquila, aguardando Jonny trazer meu velho e bom chocolate quente.

                Olhando para lugar algum, em particular, acabei por repousar os olhos em uma família que havia milagrosamente conseguido só para si uma mesa à minha frente, com assentos duplos, que no momento acomodava um homem com as roupas alinhadas e extremamente irritado que brigava com a mulher à sua frente, cuja beleza claramente se esconda por detrás das olheiras profundas, resultado de prováveis noites ninando um bebê que, no momento, urrava no seu colo. Ao lado do homem (que dizia para a mulher dar um jeito de acalmar a criança), um adolescente mexia no celular, impassível ao caos ao redor, e à sua frente, ao lado da mulher, um garoto, com cerca de seis anos, estava sentado com os cotovelos à mesa, as mãozinhas sustentado o rosto e o olhar admirando o cardápio, com a boquinha sorrindo, claramente desejando tudo o que tinha naquele especial de Natal. Algo naquele rostinho me chamou a atenção, de forma que acabei por fita-lo por tempo suficiente para que ele me notasse. Mas nesse instante, o homem (provavelmente seu pai), com um grito, mandara que tirasse os braços da mesa e decidisse logo o que comer, já que o pedido ia demorar muito “considerando a incompetência do atendimento daquele lugar”, como disse quando Jonny passou ao seu lado. O garoto, em resposta ao grito, logo retirou os braços da mesa e abraçou o corpinho, abaixando o olhar e permanecendo em silêncio em meio ao caos.

                A intensidade de seu silêncio foi tão profunda que quase conseguia ouvir sua respiração, mesmo em meio aos gritos de pedido e à conversa alta ao redor, mas o som foi gradualmente desaparecendo quando um “Feliz Natal” soou da árvore da entrada. A maioria dos clientes estavam calados, encarando a porta, e praticamente somente o homem ainda discutia com sua esposa e seu filho que mantinha um choro manhoso. Imagino que ele também tenha percebido que sua voz ecoava no lugar, pois virou o olhar ao seu redor até se deparar (e eu o segui com os olhos) com o objeto de observação do restante dos presentes: um senhor de idade, com vestes finas e rasgadas e uma longa barba por fazer, abraçando o seu próprio corpo como a tentar disfarçar o odor que exalava de sua silhueta magra e consumida.

                Era óbvia a sensação de desconforto de todos que ali se encontravam, uma vez que, mesmo diante ao conglomerado de pessoal, todos conseguiram se afastar dele o suficiente, de forma a deixa-lo em uma espécie de círculo no centro da cafeteria, em uma espécie de espetáculo de horror. Uma senhora pegara sua filha de cinco anos que até então corria pelo local pisando nos pés de todos, e a abraçou em seu colo, como a protege-la de uma invasão alienígena. A senhora ao meu lado segurou o respiração, como na expectava de um grande desastre natural, e vi um homem do outro lado do recinto cruzar os braços, na defensiva. Imagino que alguém esperasse que outro alguém fizesse ou dissesse algo, mas em um acordo silencioso e coletivo, todos lançaram um olhar a Jonny, que se viu com a árdua tarefa de resolver a situação. Aproximando-se lentamente do senhor, ele começou:

                - Er... hum... d-desculpe... hum... s-senhor... – tentou, claramente nervoso com sua voz de transição adolescente, oscilando entre um fino medroso e um grave incerto. Olhando ao redor e sentindo a cobrança silenciosa por uma atitude, continuou. – Aqui não damos comida de graça, senhor. Tenho que pedir que saia.

                O homem, claramente constrangido, olhou ao redor e, em uma voz baixa, talvez com receio de ofender, falou, sem olhar nos olhos de Jonny:

                - Mas... eu tenho como pagar...

                - Ora, francamanete! – murmurou uma moça sentada atrás de mim, em tom de deboche, para a amiga ao lado.

                O homem, no entanto, colocou a mão com as unhas sujas e crescidas lentamente em um dos bolsos que não estavam furados e mostrou um conjunto diverso de moedas, estendendo a Jonny. Este parece ter sido pego de surpresa, e ficou encarando o senhor à sua frente, mas foi logo retirado de seu estado de transe quando ouviu ao seu redor:

                - Isso daí está uma imundice!

                - Não toque nisso e na minha comida, pelo amor de Deus!

                - Parte disso deve ser roubado, inclusive...

                O homem, ainda com a mão estendida, arriscou um olhar a Jonny, e murmurou:

                - Passei a semana limpando carros para conseguir juntar esse dinheiro para ter o que comer, ao menos no Natal. Por favor, não quero incomodar... só quero algo que isso possa comprar...

                Jonny suava e olhava ao redor, sentindo a cobrança e as críticas veladas. Por fim, disse:

                - O senhor está incomodando os clientes. Por favor, saia.

                O olhar de tristeza do homem foi inenarrável. Imagino que a fome que sentia já há uma semana doía menos do que cada olhar que estava recebendo naquele instante. Cada julgamento velado, cada silêncio cortante, cada isolamento estampado no rosto de quem via a pintura da luta, mas não conhecia a história da batalha. Suspirando, ele colocou as moedas de volta no bolso, e se virou em direção à porta, passando em frente à árvore festiva e às luzes coloridas, contrastando com o cinza de suas roupas e de sua caminhada.

                Quando a porta se fechou atrás dele, a multidão de clientes respirou aliviada, como se até então estivessem segurando o fôlego de forma a não se contaminar com o ar compartilhado com o homem. Estranhos se tornaram bons conhecidos ao comentar sobre a cena ridícula que havia acontecido, e mesas passaram a ser compartilhadas para que cada um emitisse melhor a sua opinião sobre como estabelecimentos como aquele deveriam ter seguranças na porta para evitar tamanho constrangimento aos clientes. Afinal haviam crianças ali! Que absurdo!

                Foi em meio a esse burburinho que voltei meus olhos à mesa da família... O pai agora conversava com um outro homem de terno e gravata sobre as questões políticas e econômicas do país; e a mãe, que havia conseguido fazer seu bebê dormir, recostava o rosto na janela e absorvia um instante de paz. O adolescente continuava em seu fantástico mundo do celular, e o garoto... ora... para onde o garoto fora?

                Olhei ao redor em busca da sua pequena silhueta quando o vi, na ponta dos pés, fazendo seu pedido a Jonny. Considerando que o humor de todos havia melhorado com o novo assunto em comum, o atendente resolvera dar ao menino o que ele pedira de imediato, e então o vi equilibrando, com seus pequenos bracinhos, uma bandeja farta, com dois sanduíches “Noite Feliz”, duas grandes canecas de “Bate o Sino” e duas sobremesas “Então é Natal”, para finalizar. Imaginei o xingatório que ele provavelmente iria ouvir do pai quando chegasse à mesa com aquele lanche muito maior do que iria aguentar, mas o garoto não foi em direção à família, e sim, à porta. Ninguém deu conta de sua ausência, e intrigada com seu comportamento, levantei e o alcancei, já fora da cafeteria.

                Recebendo o frio cortante da noite, deparei com uma das cenas mais emocionantes que já havia presenciado: o menino entregava a sua bandeja ao senhor que havia sentado do outro lado da calçada, abraçando o próprio corpo. Não haviam palavras, e na verdade, nem era preciso. Ele apenas se aproximou, sentou-se ao seu lado com a bandeja no colo e lhe deu uma versão de cada item do seu pedido. O homem, com lágrimas escorrendo abundantemente de seus olhos, apenas aceitou com um sorriso, e se pôs a comer, junto o menino. E ali ficaram, dois estranhos, homem e menino, compartilhando um silêncio que, ao meu ver, sussurrava muito mais do que as palavras podiam dizer.

                Eu permaneci na porta da cafeteria, me deleitando com aquela cena, me permitindo receber de corpo e alma aquela sensação de plenitude e gratidão, porque naquela noite eu vi um menino com rosto de salvação, eu vi um homem acolhido na manjedoura, eu vi estrela a brindar um mundo novo, eu vi esperança em forma de amor.

                O sino bateu, e a meia-noite chegou. Já era Natal.

                E eu vi Jesus nascer nos braços da inocência.