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Permanecer

07 de Abril de 2017 às 16h55

Ana Cecília Novaes

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             - Oh, céus! É um colapso, tenho certeza! – disse titia Gertrudes, colocando a mão direita na testa e usando a esquerda para verificar se o pequeno sofá onde ela teatralmente iria finalizar sua cena estava confortável o suficiente.

            - Por Deus, titia! Não seja tão dramática! – falei, enquanto dobrava mais algumas peças de roupa e empilhava ao lado da mala, já aberta, pronta para ser organizada. - A senhora sabia que eu iria ficar apenas alguns dias na cidade, e olha que acabei ficando mais tempo que o esperado! Já se passaram quase dois meses, e eu preciso ir.

            - Iiiir? Ir para onde?! – exclamou, estridente, enquanto se acomodava entre as várias almofadas do sofá do quarto de visitas onde eu havia me instalado. – Você não tem destino certo!

            - Essa é a ideia! Seguir viagem sem rumo, parar em cidades aleatórias, me hospedar em pequenas bibocas e conhecer gente nova, aprender com suas histórias, receber o que eles têm a oferecer! Inclusive a senhora sabe que eu cheguei até aqui assim! Não planejei visitá-la. Acontece que, por um acaso, o trem que peguei passou por aqui e resolvi descer, lembrando que não a via há muito tempo.

            - Oh, meu coração! – disse, colocando as mãos no peito e estendendo a cabeça no encosto do sofá. – Estou sentindo acelerado! Oh, céus! Terei um colapso em instantes, e você será a responsável por isso, mocinha, pode ter certeza!

            - Ora, titia! Faça-me o favor! O único colapso que a senhora está tendo é nervoso, e não há razão alguma para essa cena toda! Sou-lhe grata pela acolhida, mas não posso viver aqui eternamente!

            No exato momento em que titia se preparava para retrucar em larga escala de gestos e gritos agudos, a campainha tocou. De imediato, ela se levantou, passou as mãos pelo robe, garantindo que não houvesse nenhuma dobra, ajeitou rapidamente os cabelos e foi até a porta. Em instantes ela retornou ao quarto com uma senhora de meia idade, cabelos alvos e sorriso simpático que, pacientemente, prestava atenção aos choramingos de titia.

            - Você não acha, Durvalina, que é uma falta de consideração dela ir embora assim, tão de repente? Sem avisos ou comunicado! Simplesmente acordou hoje, e resolveu partir! – e deixou-se cair no sofá, sem perceber, no entanto, que seu amado gato, Garibaldi Filiciano, havia se esgueirado pela porta e se instalado confortavelmente entre as almofadas. Sentindo o peso da (no momento, não tão amada) dona, o bichano soltou um miado desesperado e pulou do sofá, correndo porta a fora. Titia, compadecida, correu atrás, sumindo por entre os corredores da casa.

            Olhei para Durvalina e lancei um meio sorriso, constrangida pelo comportamento de titia. Ela sorriu amavelmente e respondeu:

            - Não se preocupe, querida. Conheço sua tia há anos, e sei bem que Gertrudes não perde uma oportunidade de drama!

            - Sim... titia sabe ser impossível, quando quer. – falei, começando a colocar as roupas na mala. – Honestamente, esses dois meses foram desafiadores... Titia tem uma rotina própria, e tudo, absolutamente tudo, deve ser do seu jeito. O horário de acordar, o lado que sento na mesa, a forma como devo fazer o café, o horário do café! Dia de feira, dia de ir à praça, dia de encontrar com as amigas. Céus, ela controla tudo à sua volta, e quando pode, todos à sua volta. Além disso, toda situação se transforma em um episódio dramático com ela! Como visita, simplesmente aceitei seu comportamento, sem reclamar de nada, mas francamente... – disse, colocando a última peça de roupa na mala – Não aguentaria mais um dia nessa casa.

            Durvalina me observou retirar a mala da cama, silenciosamente, e colocar próximo à porta. Quando terminei, me virei para ela e disse:

            - É hora de partir. E esse, na verdade, sempre foi meu plano. Me desafiar a enfrentar o mundo, aprendendo das formas mais inusitadas. Sem destino, sem hora para chegar ou partir. Apenas... Seguir.

            Ela sorriu para mim, suspirou e disse:

            - Entendo, minha querida. Não há nada mais emocionante do que ver o mundo se abrir à nossa volta, repleto de oportunidades e aprendizados. A vida esconde oportunidades maravilhosas, que só se desabrocham quando nos propomos a enfrentar o medo do desconhecido e seguir, mesmo diante a incerteza do que vem adiante. Isso se chama entrega. Isso se baseia na fé. Mas devo lhe dizer... Há algo tão importante quanto seguir, se entregar, e partir... É permanecer.

            “Conviver com sua tia, com cada detalhe de sua peculiaridade, de suas manias, de suas imperfeições... Ai se encontra o verdadeiro desafio, devo dizer. Porque é fácil seguir estrada, conhecer pessoas novas que permanecerão em sua vida por instantes, deixando marcas pontuais, mas não rastros contínuos, pois que houve apenas o encontro de um recorte de sua vida com a deles. Seus defeitos não chegam a ser perceptíveis e, se o são, não vale a pena buscar lidar com eles. Afinal, é só um momento, uma passagem, e logo irá passar. Buscar o diálogo com sua tia, compreender suas particularidades e fazê-la entender as suas, perceber suas qualidades e amar seus defeitos, permitindo que ela também o faça com você... Porque, afinal, somos todos formas geométricas imperfeitas, repletas de arestas que devem ser aparadas com o convívio, a compreensão, o respeito, e o amor. E só somos capazes de fazer isso quando convivemos, diariamente, com aqueles que são colocados nas nossas vidas para nos ensinar, e para serem ensinados por nós.

            Entenda, meu bem... Não estou lhe dizendo para ficar indefinidamente, pois que você tem seu caminho a seguir. Mas talvez ainda não seja hora de partir. Vocês duas ainda têm muito o que aprender, uma com a outra, e calar não é solução para nada. Da convivência vem o diálogo, e do diálogo harmônico vem a depuração de nossas próprias imperfeições. O aprendizado não se encontra muito longe do seio familiar, e você pode se surpreender com o que pode descobrir ao se permitir ser, verdadeiramente, junto àqueles que lhe rodeiam no ambiente da família. Creio que hoje, seu desafio maior não seja ir, mas permanecer.”

            Nesse instante, titia retornou ao quarto com Garibaldi no colo, alisando seus pelos e lançando-lhe pedidos desesperados de perdão. Olhou para Durvalina, e em seguida para mim. E perguntou, desconfiada:

            - Ora, o que vocês andam aprontando?

            Desviando o olhar que, até então, repousava na senhora à minha frente, sorri para titia, e falei:

            - Nada demais, titia. Apenas me perguntando se vou gastar o mesmo tempo que usei para fazer a mala, desfazendo-a. A senhora sabe como é... Ainda nos faltam algumas xícaras de café, muitas prosas, e alguns tantos sorrisos.