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A presença do homem diante de si mesmo

16 de Janeiro de 2020 às 17h15

Antonio Carlos Tarquínio

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Alguns dias atrás faltou-nos a energia em casa. Com as mudanças climáticas em curso, as chuvas e os ventos aumentaram de intensidade, e o resultado tem sido a queda de muitas árvores com a conseqüente danificação da rede elétrica.

Foi a oportunidade de vivenciar algo assaz interessante.

Permaneci por algum tempo estudando à luz de velas e, imediatamente transportei-me para os tempos idos em que os estudiosos não dispunham de luz elétrica. Minha primeira descoberta foi a de aprender a folhear as páginas do livro com delicadeza a fim de não apagar as velas.

Diante do insistente apelo da família, abandonei o texto, meio a contragosto, e me reuni a ela, na mesa da cozinha, onde todos ouviam um pequenino rádio a pilha.

Enquanto Maîte, a filha menor, lavava a louça, escutávamos, interessados, as notícias que nos chegavam sobre o inesperado apagão.

Num lapso de instante passei a considerar como eram felizes as famílias que assim reunidas trocavam impressões e idéias a respeito do que lhes acontecia.

Hoje, o apelo visual é tão forte, tão intenso, que simplesmente abandonamos o hábito de cultuar a prática de ouvir, e escutando ver e perceber o outro. A “outridade” dos outros nos passa assim despercebida e, na mesma medida, nossa capacidade específica de auto-percebimento.

A certa altura, minha companheira, se virou para mim e disse: “as mangas estão maduras”. Como não havia luz suficiente no ambiente para se ver as mangas, deduzi que a apreensão do estado de maturação da fruta havia se realizado por outro meio. Sim, foi seu perfume incensado no ar que nos avisou que era hora, que chegara o tempo oportuno (kairós) de consumi-la.

Há um período na história da filosofia em que surgem os diretores de consciência. A partir de Sócrates, o apelo para o cuidado de si (epimeleia heautou) será vigoroso, certo, infrangível. É do conhecimento de todos que a chave do melhoramento moral 2 , do aperfeiçoamento do homem, consista no conhecimento de si, e que o caminho de autoconhecimento passe pelo exame de consciência.

Então é que se impõe a pergunta: Por que estamos hoje tão apartados, tão distanciados dessa praxis de transformação interior prescrita pela filosofia antiga e indicada por ela, desde os primórdios como o real caminho de ascensão espiritual?

Por que entregamos ao olvido, o poderoso conhecimento que nos possibilitaria, sem mais, abrir as portas de nossa autotransformação?

Pode-se buscar possível resposta a essa interrogação com o percebimento de que a forma de presença do homem ante a si mesmo, já de algum tempo para cá, sofreu um sério deslocamento, uma vez que perdeu a centralidade que antes possuía.

Nós, hodiernamente, não estamos mais presentes perante a nós mesmos como os antigos soíam estar.

Donde o homem não mais se ver capaz de transformar-se, este não consegue enxergar a si mesmo como sujeito de sua própria mutação. Por outro lado, o homem moderno, o homem contemporâneo quer e acredita, em ordem crescente e veloz, estar no controle e ter o poder de mudar o mundo… este deve adaptar-se ás necessidades e até mesmo ás idiossincrasias caprichosas da humanidade.

O exemplo significativo da vontade de poder de mudança do mundo é a cirurgia plástica. Se não gosto de meu nariz ou de minha boca, posso, hoje, mudá-los à vontade, dado que o consenso reza que ninguém está obrigado a conviver com um item, chamemos assim, de sua “personalidade” de que não goste.

O status quo leva-nos a uma percepção de nós próprios como epiderme, como superfície. Não nos damos conta de que com essa ontologia epidérmica perdemos o Ser que nós somos. Esquecidos da essência e de nossa verdade mais profunda, quando pensamos em nos cuidar, tratamos apenas da casca. Mas ninguém sai impune de tal perversão de valores e a prova disso é a enorme quantidade de pessoas, no mundo todo, doentes de tristeza “horizontalizados na angústia”. (O assunto me faz lembrar uma frase de Emmanuel: “para a enfermidade da alma, somente os remédios espirituais são aplicáveis”).

Diz-se que atualmente a maioria das pessoas não dispõe de tempo para perder tempo com assuntos como a busca da verdade, ou para a reflexão sobre a essência dos valores. Dizem – “isso é filosofia e a filosofia não serve para nada. Melhor deixar essas coisas de lado e simplesmente viver a vida.”

E, enquanto agem assim, quanto mais ignoram a necessidade de reflexão sobre esses temas vitais, tanto mais vivem de forma inconsciente e inconsequente valores e verdades intextos no caminho de suas vidas.

Um filósofo espírita disse uma vez que “a filosofia é o sistema de indagação que auxilia a pensar”. Só o entendimento iluminado e aclarado por nós próprios através do estudo e da meditação é capaz de auxiliar-nos no sentido da captação, ainda que precária, de nosso ser essencial. Somente tal azáfama tem o poder de se fazer manifestar aos nossos olhos clarificados, o ser, ainda que parcialmente, que nos habita a casa física, aquela essência situada, para além do meramente epidérmico.

A intuição que acabo de descrever pode ser concebida como uma forma diferente de o homem estar na presença de si mesmo, onde seus pensamentos podem ser apreendidos, apanhados no ato de seu poder de transformação. Então, somente então, seriamos capazes de compreender em sentido lato o conselho do grande filósofo estóico Epicteto:

"Eis porque os filósofos recomendam não se contentar com o aprender, mas acrescentar, além disso, a reflexão (meleten/meditação) e em seguida o exercício (askesis). Porque com o passar do tempo nós vamos adquirindo o hábito de agir de uma maneira oposta ao ensinamento recebido, e as opiniões que nos são familiares vão de encontro às retas opiniões. Ora, se nós não nos familiarizarmos com as retas opiniões, nada mais seremos que comentadores de julgamentos dos outros (de dogmas alheios) 3"