Notícias

Como Allan Kardec popularizou o espiritismo no Brasil, maior país católico do mundo

02 de Abril de 2019 às 10h40

Paris, 1857. O professor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, de 53 anos, estava prestes a colocar um ponto final em seu mais novo livro quando se viu tomado por uma dúvida: usar seu nome de batismo ou recorrer a um pseudônimo?

Sua mais nova publicação, "O Livro dos Espíritos", nada tinha a ver com os mais de 20 livros didáticos, de física, química e matemática, que ele já tinha escrito e eram adotados em escolas e universidades. Foi quando Rivail se lembrou de que, em uma das muitas sessões mediúnicas de que participou, um "amigo espiritual de vidas passadas" de nome Zéfiro havia dito que, na época do imperador Júlio César, entre 58 e 44 antes de Cristo, ele tinha sido um líder druida na sociedade celta. Seu nome? Allan Kardec.

"O recurso do pseudônimo tinha a vantagem de não expor Rivail numa época em que, embora a heterodoxia religiosa fosse tolerada, sempre se corria riscos", explica Mary Del Priore, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de "Do Outro Lado - A História do Sobrenatural e do Espiritismo" (Planeta, 2014). "Era também uma forma de proteger sua carreira editorial, sem dar chance de retaliação por parte de instituições de ensino religioso que tivessem adotado seus manuais".

Kardec levou quase dois anos para concluir "O Livro dos Espíritos". Em momento algum, se considerou o "autor" da obra. Na melhor das hipóteses, era apenas seu organizador. Não por acaso, a folha de rosto da primeira edição estampava a frase: "Escrito e publicado conforme o ditado e a ordem de espíritos superiores". Para realizar as "entrevistas com o além", Kardec conheceu e fez amizade com mais de dez médiuns - termo criado por ele para designar os "intermediários" entre os vivos e os mortos. Suas mais assíduas "colaboradoras" eram as irmãs Julie e Caroline Baudin, de 14 e 16 anos, e Ruth Japhet, de 19.

Quanto aos "amigos invisíveis", eram incontáveis: o filósofo grego Sócrates, o apóstolo e evangelista João, o cientista americano Benjamin Franklin... "Por ser inaugural, considero 'O Livro dos Espíritos', no formato de perguntas e respostas, a mais importante obra de Kardec. As perguntas correspondem ao papel dele na publicação. Já as respostas são atribuídas a 'espíritos superiores'.

Para os adeptos de Kardec, o livro é, literalmente, 'dos espíritos'", explica Emerson Giumbelli, doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Núcleo de Estudos da Religião (NER) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

"O Livro dos Espíritos" foi lançado no dia 18 de abril de 1857 e, em apenas dois meses, vendeu todos os 1.500 exemplares da primeira tiragem. Três anos depois, uma segunda edição, revista e ampliada de 501 perguntas e respostas para 1.019, chegou às livrarias. Logo, a doutrina espírita despertou a ira da Igreja Católica que considerava a necromancia, a suposta arte de adivinhar o futuro por intermédio dos mortos, um pecado mortal.

Por essa e outras razões, jovens médiuns eram internadas em hospícios e adeptos do espiritismo ameaçados de excomunhão. No dia 9 de outubro de 1861, a intolerância chegou ao ponto de o bispo de Barcelona, Antônio Palau y Termens, ordenar que 300 exemplares da obra fossem queimados em praça pública.

Mas, apesar dos pesares, Kardec procurava não se abater. Encontrava consolo no relato de leitores do mundo inteiro que atribuíam a seu trabalho o fato de não terem tirado suas vidas em momentos de desespero. "Afirmavam que só desistiram do suicídio por terem lido "O Livro dos Espíritos" e entendido que a vida continua através dos tempos.

E mais: que cada existência seria uma chance de evolução. Uma chance que não deveríamos desperdiçar", afirma o jornalista Marcel Souto Maior, autor de "Kardec - A Biografia" (Record, 2013), que deu origem ao filme homônimo, escrito por L.G. Bayão e dirigido por Wagner de Assis. Com Leonardo Medeiros no papel-título, Kardec tem estreia confirmada no dia 16 de maio.

Espiritismo à brasileira
Filho de pais católicos - o juiz Jean-Baptiste e a dona de casa Jeanne -, Rivail começou a se interessar pelo assunto por acaso. Ouviu falar do fenômeno das mesas girantes e, movido por curiosidade e desconfiança, resolveu investigar. Estava convencido de que, por trás das mesas que se erguiam do chão e se moviam em todas as direções, encontraria fios, ímãs ou roldanas. "Só acreditarei se me provarem que uma mesa tem cérebro para pensar e nervos para sentir", fez troça.

Em maio de 1855, Rivail saiu da casa de uma senhora chamada De Plainemaison completamente atordoado. Não conseguira desvendar, por meio de truques secretos ou traquitanas escondidas, o sobe e desce das mesas. Mesmo assim, não desistiu. Passou a investigar outro fenômeno, ainda mais intrigante: os cestos escreventes. Encaixado no fundo do cesto, com a ponta virada para baixo, um lápis "respondia" às perguntas formuladas pelos convidados em folhas de papel.

"Numa dessas sessões, em 30 de abril de 1856, a cesta se voltou para Rivail e, como se apontasse o dedo para ele, o lápis escreveu uma mensagem enigmática: 'És o obreiro que reconstrói o que foi demolido'", relata Marcel. Era a deixa para Rivail começar a organizar o que viria a ser "O Livro dos Espíritos".

Não demorou muito para o espiritismo kardecista cruzar o Atlântico e desembarcar no Brasil. Por aqui, Kardec conquistou inúmeros "aliados". Dois dos mais importantes são o educador francês Casimir Lieutaud, que traduziu para a língua portuguesa, em 1860, Os Tempos São Chegados, a primeira obra espírita impressa no Brasil, e o jornalista brasileiro Teles de Menezes, que fundou, em Salvador, o primeiro centro espírita do Brasil, o Grupo Familiar do Espiritismo, em 17 de setembro de 1865, e o primeiro periódico espírita do país, o Eco do Além Túmulo, em 8 de março de 1869.

"Por sua inteligência aguda, bom senso extraordinário e alma caridosa, quem merece o título de 'Allan Kardec brasileiro' é o Bezerra de Menezes", aponta Marta Antunes Moura, vice-presidente da Federação Espírita Brasileira (FEB), referindo-se ao "médico dos pobres" que, reza a lenda, teria doado seu anel de formatura a uma mãe para ela comprar remédios para o filho adoentado.

Outro nome de destaque na consolidação do espiritismo no Brasil é Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier. Em 1932, aos 22 anos, lançou seu primeiro livro, "Parnaso de Além-Túmulo", antologia de 259 poemas assinados por nomes como Castro Alves, Olavo Bilac e Augusto dos Anjos. Até 2002, quando morreu aos 92 anos, psicografou 459 títulos - e doou os direitos autorais de todos eles, com registro em cartório, para obras assistenciais - e 10 mil cartas - algumas delas chegaram a ser aceitas como prova em tribunais.

"Inspirado na noção de santidade católica, Chico Xavier adotou votos monásticos como modelo de conduta e espiritualidade. Assim, ele se tornou referência moral não só para médiuns, como também para os demais adeptos da doutrina. Essa construção do estilo brasileiro de ser espírita, marcadamente católico, é o que chamo de espiritismo à brasileira", explica Sandra Stoll, doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP).

O rastro de perseguição que a doutrina de Kardec sofrera na Europa logo chegou ao Brasil. Já em 1874, o Jornal do Comércio acusava o espiritismo de produzir loucos: "Uma epidemia pior que a febre amarela", dizia um artigo da época. Em 1881, o bispo do Rio de Janeiro, Pedro Maria de Lacerda, publicou um manifesto em que chamava os seguidores de Kardec de "possessos, dementes e alucinados".

"Naquela época, o Brasil vivia sob os ditames do Império, que tinha o catolicismo como religião oficial. Mas, mesmo com o advento da República, a partir de 1889, a perseguição não cessou", relata o sociólogo e advogado Maury Rodrigues da Cruz, presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Espíritas (SBEE). "Os ataques sofridos não arrefeceram o movimento espírita brasileiro. Pelo contrário. Fortaleceram a união de seus membros em torno da defesa da liberdade de culto e da consolidação do espiritismo no país".

Mais vivo que nunca

No mês em que espíritas comemoram os 150 anos da morte, ou melhor, do "desencarne" de Allan Kardec, sua doutrina tem hoje, segundo dados do Pew Research Center de 2015, 13 milhões de adeptos no mundo inteiro. Só no Brasil, são 3,8 milhões. Isso significa que, a cada três seguidores de Kardec, um é brasileiro. Com isso, o maior país católico do mundo, com 123,4 milhões de fiéis, segundo o Censo de 2010, passou a ostentar outro título: o de maior nação espírita do planeta.

"O túmulo do Kardec no Père-Lachaise, em Paris, é, sem dúvida, dos mais visitados. A qualquer dia e horário, há sempre um brasileiro acendendo velas ou depositando flores no mausoléu", afirma Reginaldo Prandi, doutor em Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e autor de "Os Mortos e Os Vivos" (Três Estrelas, 2012), referindo-se ao cemitério francês onde estão sepultados, entre outras celebridades, o escritor Oscar Wilde, o músico Frédéric Chopin e o roqueiro Jim Morrison.

"A prática da caridade ajudou o espiritismo a ganhar força no Brasil. Ainda hoje, centros espíritas organizam bazares, recebem doações de alimentos e distribuem agasalhos no inverno".

O sucesso do espiritismo no Brasil, onde tem mais seguidores do que na França, pode ser explicado, ainda, pelo processo de "religiosificação" da doutrina no país. Essa é a opinião de Célia Arribas, doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Se, na terra natal de Kardec, o espiritismo tinha caráter majoritariamente científico ou filosófico; no Brasil, ganhou status de religião.

"Ao reforçar o caráter religioso do espiritismo, seus primeiros adeptos, oriundos de grupos socialmente privilegiados, como médicos, políticos e advogados, viram nisso uma forma de legitimar sua existência em solo brasileiro e escapar do Código Penal de 1890, que estabelecia punições, como multa e detenção, para quem praticasse o espiritismo", explica a socióloga.

Dados do último Censo apontam que, entre 2000 e 2010, o número de espíritas no Brasil cresceu 65%, passando de 2,3 milhões, algo em torno de 1,3% da população, para 3,8 milhões, cerca de 2%. Mas, se o número de fiéis é de 3,8 milhões, o de simpatizantes, segundo a Federação Espírita Brasileira (FEB), pode chegar a 30 milhões. "Muitos não se assumem como espíritas porque são católicos ou porque não enxergam o espiritismo como religião", explica Célia Arribas, da UFJF.

"Há também aqueles que vão aos centros atrás de alívio para alguma aflição pontual. É o que chamamos na sociologia de 'religião de clientela', um tipo de religiosidade de serviço que não cria vínculos".

Mesmo tendo crescido tanto, o espiritismo continua a ser uma confissão minoritária no país. Em número de adeptos, está atrás de católicos (64%) e evangélicos (22%). "São a maioria da minoria", define o sociólogo Reginaldo Prandi, da USP. "A doutrina espírita não está preocupada em fazer proselitismo ou converter ninguém. Está interessada apenas em fazer o bem e praticar a caridade". UOL