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Extra açúcar

02 de Junho de 2016 às 00h35

Ana Cecília Novaes

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“Extra açúcar”...

            E eu apertei de novo, e de novo, e de novo... e nada aconteceu. Mas pelo amor de Deus! Já fazia meia hora que eu estava travando uma batalha com a única máquina de café expresso do hospital que tinha latte nas opções daquele painel multicolorido onde o botão “extra açúcar” fora feito apenas para enfeitar, aparentemente, já que minha mistura de café expresso com uma camada generosa de espuma de leite no topo continuava no suporte da cafeteira com um gosto amargo, aguardando a boa vontade do açúcar em nos brindar com sua aparição.

            - Anda... desce... – murmurei, apertando o botão pela vigésima vez.

            - Não está funcionando. – escutei alguém dizer atrás de mim – Vive quebrando, e o técnico desistiu de voltar para consertar.

            Virei-me para a direção da voz e vi uma jovem sentada, a cabeça encostada na parede, os olhos cerrados com os cílios repousando em evidentes olheiras que davam a seu rosto pelo menos uns cinco anos a mais do que ela provavelmente deveria ter. As roupas amarrotadas pareciam estar acostumadas com a posição adotada pela mulher, já que seu corpo encolhido se encaixava perfeitamente na cadeira aparentemente desconfortável daquela sala de espera.

            - Ah... – respondi, decepcionada – Obrigada por avisar.

            - Você não vem muito nesse setor, vem? – ela perguntou, sem se dar ao trabalho de abrir os olhos.

            - Aqui na ala da UTI? Não. Estou passando a noite com minha tia-avó, que está em observação na ala clínica... A máquina de café de lá não tinha latte no cardápio... Mas talvez tivesse extra açúcar, não é? – falei pensativa, ainda encarando o botão do painel, fortemente tentada a fazer mais uma investida... ‘Ah, como eu gosto de latte com extra açúcar’, pensei – Enfim... -  disse, dando de ombros – Nada é perfeito, não é mesmo?

            - Na verdade, é sim... Mas as pessoas são idiotas demais para reconhecer... Idiotas, idiotas, IDIOTAS!

            A mulher falou tão alto que dei um passo para trás, segurando o meu latte pouco adocicado, me preparando para sair pela única porta que separava o meu mundo seguro daquela provável bomba de insanidade que compartilhava a sala comigo. Mas, subitamente, ela começou a chorar, e lágrimas se transformaram em soluço, que se transformou em uma tentativa frustrada de conciliar a respiração com a dor que escapava dos lábios, dos olhos e de cada parte daquele ser que, se repente, se tornou tão pequeno, e frágil.

            Fiquei parada olhando para ela, estarrecida. Não é questão de egoísmo, eu juro, mas admito que pensei porque justo eu tinha que estar ali! Eu, que ficava constrangida em simplesmente travar uma conversa casual em um elevador, e fingia mexer no celular em salas de espera para não ter que trocar frases informais e simpáticas. Eu só queria uma bebida quente e adocicada no meio da noite, pelo amor de Deus! É pedir demais?!

Cedendo às risadas que o destino muito provavelmente estaria dando, neste exato momento, deixei minha bebida na máquina e fui até o banheiro buscar papéis para lhe entregar. Um tanto constrangida, sem saber se tinha o direito de tocar seu ombro e dizer que estava tudo bem (afinal de contas, o que era esse “tudo” que obviamente não deveria estar nada bem?), fiquei em silêncio, sentada ao seu lado, esperando.

            Depois de algum tempo, ela conseguiu parar de soluçar, e permaneceu num choro fraco, mais calma. Esperançosa de que minha presença ali não seria mais necessária, lancei a ela um olhar discreto, pelo canto do olho, e sussurrei:

            - Você está bem?

            Tomei seu silêncio como uma educada camuflagem de algo do tipo “óbvio que não, mas não vou compartilhar meus problemas com uma completa estanha”, e estava me preparando para levantar, quando ela disse:

            - Estou... tão... cansada... – respirou fundo, engoliu mais alguns orvalhos salgados, e continuou – Eu sei que não é algo bonito de se dizer, mas estou... tão esgotada... Já faz quarenta dias que meu filho nasceu, e trinta e cinco que está nessa UTI. Eu me levanto todo santo dia, erguendo um corpo que precisa dormir por mais algumas horas, mas que não tem segundos a perder longe de seu bebê. Sorrio para meu marido, meus pais, nossos amigos, dizendo que vai ficar tudo bem, e venho até aqui, para sorrir para funcionários, médicos, enfermeiros, implorando que fique tudo bem. Espero a cada manhã que me tragam uma notícia melhor do que a do dia anterior, mas tenho que me contentar com o mesmo “quadro estável, e inalterado”, porque é muito melhor do que o primeiro “corre risco de vida”, quando ele nasceu. É muito melhor do que o “existem risco altos na cirurgia”, uma semana após seu nascimento, ou o “a senhora tem que se preparar para o pior”, logo após o procedimento. Sorrio para cada notícia que me dilacera o coração, porque não percebia o quanto era incrivelmente feliz com todas as dores nas costas, os enjoos, as pernas inchadas! O quanto tudo era perfeito, quando eu podia acreditar que meu filho estava bem dentro de mim, só esperando para vir ao mundo e ser... saudável. Mas estou tão cansada de levantar todos os dias e esperar algo melhor, e tudo permanecer exatamente igual. Levantar e passar os dias aqui, visitando-o e olhando para aquele corpinho que luta para se manter vivo, enquanto eu me sinto tão fraca para acordar e encarar o mesmo dia, de novo... Para sorrir para todos... Por isso fiquei aqui hoje, dormindo na sala de espera. Para me esconder um pouco desse mundo, e ter o direito de chorar... Meu Deus, eu sou uma pessoa horrível!

            E falando isso, ela desabou em um choro copioso, novamente. Sem conseguir me conter, e lançando fora toda e qualquer polidez, a envolvi em meus braços como uma criança e a embalei, deixando que as minhas lágrimas se confundisse com os soluços de uma dor tão particular, mas tão evidente, que chegava a ferir a minha alma.

            Ficamos assim por um tempo, até que nossos rostos já não pudessem mais ser lavados pela emoção. Foi quando eu falei:

            - Você não é uma pessoa horrível. É uma esposa, uma mãe, uma amiga que se faz arrimo para que não haja um desabamento coletivo. É uma mãe, que a cada dia motiva seu bebê a continuar lutando, porque cada dia surge como uma nova chance de vida. É uma mulher de garra, que consegue continuar despertando, quando muitos iriam escolher se esconder em seu mundo particular. Você não é uma pessoa horrível, mas é apenas uma pessoa que não precisa guardar toda essa luta em si. Se dê o direito de ser humana, de chorar junto aos seus, mas de se reerguer junto com eles, porque ninguém nunca deu a garantia de que seria fácil... A única certeza que temos, porém, é que não estamos sozinhos, não importa qual sofrida seja a caminhada. Não se feche em seu casulo, não se esconda de quem te ama, não queira ser perfeita, não demonstre que tem mais força do que pode carregar. Pode ser difícil, doloroso, e extremamente amarga a sua jornada, mas você pode adocicá-la recebendo um sorriso de quem lhe ama e está caminhando junto com você. Dê apenas uma chance, e não desista de tentar consertar, mesmo se sentir-se quebrada e dilacerada a cada dia. E a mera possibilidade de um amanhã melhor vale a pena a tentativa de continuar tentando.

            Permanecemos abraçadas por um tempo que não sei precisar. Na sala, não se escutavam mais soluços, ou o som estridente da dor. Apenas o barulho da máquina de café ligada, com o seu painel reluzente e um botão quebrado de “extra açúcar”, para os desavisados. Mas não importava... Afinal, uma dose extra de açúcar pode ser mais saborosa, mas não é dela que se tira todo o prazer e as maravilhas de um latte. É da simples ousadia de superar os limites, e a si próprio, a cada dia.