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Torrões de Açúcar

16 de Dezembro de 2016 às 14h45

Ana Cecília Novaes

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            “O que não mata, engorda!”

            Disse, colocando mais quatro (além dos três anteriores!) torrões de açúcar em seu café expresso, tão negro quantos seus olhos que brilhavam ao ver cada quadradinho se dissolver em sua bebida. Revelando suas covinhas em um sorriso que combinava perfeitamente com cada ruga de sua face alva pelo tempo, segurou a xícara com as duas mãos e levou a bebida, ainda fumegante, até a proximidade de seu nariz, saboreando com os olhos cerrados o cheiro forte, e doce, de seu típico café noturno.

            - Ah! É o que eu sempre digo! Deixe que o aroma faça uma serenata aos seus sentidos, cortejando seu paladar com todos os segredos que se escondem atrás do que ele não consegue ver! Nada melhor do que uma xícara de café para amenizar os ânimos, não é, Gertrudes?!

            Olho para titia, que está ao meu lado, mexendo as mãos impacientemente, olhando de instante a instante para a porta do aposento onde nos encontramos. Ela volta sua atenção à xícara de torrões de açúcar com café, e depois para a senhora que a segura, em uma grande poltrona acolchoada, envolta em seu xale de tricô, sentada à nossa frente. Revirando os olhos em evidente desaprovação, titia responde, inquieta:

            - Ora, Dolores. Não creio que seja adequado à sua idade uma bebida tão forte, nesse horário, ainda mais com essa quantidade de açúcar. Francamente! O médico já lhe disse que devem ser tomados os devidos cuidados para com sua saúde que, todos sabemos, é frágil!

            - Eu estou apenas velha, minha querida Gertrudes! – respondeu a outra, com uma honesta risada. - Ao que me consta, a única recomendação médica que tenho atualmente é continuar viva! E isso eu estou cumprindo muito bem, com minha boa e velha xícara de café com torrões de açúcar!

            - Não vou discutir isso com você agora, Dolores. Temos problemas muito maiores hoje. – disse titia, olhando novamente para a porta, alguns segundos depois da última checagem neurótica. – Você não acha que está demorando demais?

            - Paciência, minha querida, paciência... Não se pode exigir pressa de quem está vindo ao mundo... É uma viagem e tanto, e uma boa caminhada depois disso... Deixe o tempo cuidar do que ele melhor sabe fazer: preparar.

            - Ora essa... Nunca vi ideia mais estapafúrdia! Fazer o parto em casa em pleno século vinte e um! Francamente, Dolores! Você deveria ter sido mais firme com sua nora, e não permitido tamanho absurdo! Ainda mais com você em suas condições delicadas, precisando de repouso e tranquilidade!

            - Gertrudes, não há motivos para alarde. Essa foi uma decisão dela, e meu filho a apoiou. E se você quiser saber, eu também. Tenho certeza que você, em sua indiscreta capacidade de averiguar cada detalhe à sua volta, percebeu o aparato médico organizado no quarto de minha nora. Todos preparados para a chegada do bebê. Além disso, minha tranquilidade e meu repouso só estão sendo ameaçados por sua evidente crise de ansiedade absolutamente sem motivos, diante um evento tão natural que é o nascimento de uma vida, minha querida... – disse Dolores, bebericando um gole de café com um sorriso maroto no canto de seus lábios, lançando um olhar de divertimento para mim.

            - Oh! Sem motivos?! Talvez eu seja a única cuja sanidade não foi derretida por essa quantidade absurda de açúcar usada nessa casa diariamente! Francamente! – disse titia, revirando os olhos. - E quer saber de uma coisa? Eu vou até lá saber se precisam de ajuda em alguma coisa! Talvez eu possa evitar que uma catástrofe aconteça nessa casa! – e levantou-se, desaparecendo no corredor.

            Dolores colocou sua xícara, já vazia, na mesinha de canto do seu aposento, e riu com algum esforço. Olhando com carinho para onde titia estava sentada, me disse:

            - A única catástrofe que ela vai evitar é um colapso causado por sua insaciável curiosidade! – E olhando para mim, falou – É uma pessoa maravilhosa, sua tia. Com suas neuroses, seus medos e exageros, e sua mania de bisbilhotar a vida de todos, é uma das pessoas mais doces e notáveis que já conheci!

            - Apesar de, a senhora quis dizer... – falei.

            - Como, minha querida?

            - Apesar das neuroses, dos medos e exageros, da mania de bisbilhotar, titia é uma pessoa maravilhosa... E não com tudo isso, como a senhora disse...

            - Ah, não! Exatamente como eu disse! Todas as neuroses por limpeza, os medos irreais, os exageros por preocupações infundadas e essa curiosidade implacável! Tudo isso faz parte dela, e faz com que ela seja quem ela é. Com essas singelas imperfeições, ela se torna nossa Gertrudes, que se encontra perfeitamente encaixada em nossas vidas, para nos ensinar a calar diante a irritabilidade, a sorrir diante o trivial, a continuar em frente diante os receios. Definitivamente, minha querida! Não é apesar dos defeitos dela, mas exatamente com eles, que ela se torna esse ser humano singular.

            Calei-me, um tanto constrangida por meu comentário, e desviei o olhar para observar o aposento onde estava. Um quarto aconchegante, com um papel de parede alegre e quadros, dos mais diversos, dispostos com bom gosto. Flores frescas em um arranjo de porcelana decorava uma mesa de canto, e uma janela ampla permitia que a luz natural invadisse o ambiente, trazendo consigo um vento primaveril. Uma cama ampla e repleta de almofadas ocupava grande parte do cômodo, e tudo seria perfeitamente harmônico com o astral da senhora sentada à minha frente, se não fosse um suporte com oxigênio que pendia ao seu lado, com um fino tubo saindo de um reservatório até suas narinas, além de um incontável número de recipientes das mais diversas medicações organizadas em sua mesa, ao lado de seu vaso de porcelana.

            Percebendo a direção do meu olhar, Dolores comenta, com naturalidade:

            - Creio que, ao nascer, alcançamos esse mundo com uma venda nos olhos, e a única e simples missão de descobrir como retirá-la, de forma a enxergarmos o mundo da forma como ele misteriosa e belamente se apresenta. Vendados, sem saber por onde seguir, temos como opção nos deixarmos guiar pelos sentidos ocultos que nos envolvem. O aroma de um novo dia, que nos convida a recomeçar diante as cicatrizes de nossas quedas; o som da alegria que compartilhamos com quem amamos, e do silêncio que respeitamos diante lágrimas que não conseguimos secar; o sabor dos sonhos alcançados, e das realidades aprendidas; a sensação de quase tocar um futuro tão desejado, frente a distância de um presente que precisa ser vivido, sem pressa. Caminhamos assim, ao longo da vida. Vendado, trôpegos e entregues a uma força inexplicável que, dentro de nós, se movimenta como a certeza de que, mesmo diante todas as incertezas, simplesmente não podemos deixar de caminhar. E assim, esperamos o dia em que a venda nos é retirada, revelando o universo particular e maravilhoso que cada um moldou desde o dia em que foi colocado, cego, para desbravar a vida.

            “Nessa jornada, vamos recebendo algumas bagagens, umas mais suaves, outras mais pesadas, e a capacidade de carrega-las varia segundo nosso próprio particular. No início do meu adoecimento, quando me vi limitada em minha capacidade de andar livremente ou mesmo de utilizar meus pulmões com energia para gargalhar diante a vida, revoltei-me contra as minhas próprias limitações, e desejei que tudo terminasse o mais rápido possível, pois uma vida sem liberdade seria absolutamente inútil para mim. Em uma das longas noites em claro que passava chorando, no entanto, percebi que ainda existia uma faísca, muito sutil, mas presente, dentro do meu ser, que se recusava a enfraquecer, mesmo diante minha insistente tentativa de apagá-la completamente. Foi quando eu notei que a venda ainda não tinha sido retirada, e que era minha obrigação continuar seguindo, mesmo que temendo a escuridão que poderia surgir, porque eu não tinha direito de desistir de mim mesma. Por isso estou aqui, hoje, vibrando com as alegrias que a vida me oferece dentro das minhas limitadas liberdades! Não são torrões de açúcar que irão acabar com a minha saúde, mas sim, deixar de adoçar meus dias com a alegria de poder dizer: eu continuo caminhando, e acreditando. E nunca vou parar de caminhar, e acreditar!”.

            Dolores terminou sua fala com lágrimas nos olhos e uma voz ofegante. Percebi que estava com intensa dificuldade de respirar, e levantei-me para ir buscar alguém. Ela, no entanto, me chamou antes que eu alcançasse a porta:

            - Não se preocupe, minha querida! São apenas meus pulmões reclamando de minha tagarelice! Venha e me ajude a ir até a cama, por favor!

            Fui até ela e a conduzi, a passos lentos, acomodando-a entre as almofadas de sua cama.

            - Muito bem! Assim está melhor! – disse, puxando o ar e revelando um aspecto mais tranquilo. – O pequenino logo deve estar chegando ao mundo...

            - Como a senhora sabe? – perguntei.

            - Quando a vida se descortina para mais um viajor, o mundo se aquieta, em respeito ao choro que revela o receio de não alcançar o fim da estrada, nessa viagem às cegas... Mas em instantes é sentido o sopro de esperança da multidão de vozes que já está caminhando, e daquelas que já estão no final da estrada, vencendo, não apesar de, mas com todas as suas belas imperfeições.

            Nesse instante, um choro alto e forte irrompe da porta aberta, reverberando por toda a casa. Eu corro até o final do corredor a tempo de ver titia Gertrudes saindo da porta entreaberta, dizendo que o garoto nascera forte e saudável, graças à sua presença indispensável, evidentemente.

            Lanço um olhar discreto para o cômodo onde mãe e filho se enamoram pela primeira vez, trocando olhares confidentes, em verdadeiras juras de confiança e amor. Ao lado, o pai, incapaz de segurar as lágrimas de emoção e alegria, afagando docemente a face da esposa, e revelando, silenciosamente, seu compromisso de fazer com que valha a pena caminhar pela longa estrada na qual o pequenino acabou de aportar.

            Sorrio, sinceramente tocada pela cena, e retornou ao aposento de Dolores, para contar-lhe sobre seu primeiro neto.

            Entro no quarto, já revelando os detalhes do pequenino, quando percebo que algo está diferente. Olho para sua cama e vejo uma xícara de café, em seu colo, com três torrões de açúcar dentro. Uma mão ainda segurando a colher, e a outra pendente sobre o cobertor. Seu corpo, frágil, recostado em suas almofadas. E seu olhar, sereno, paralisado em um ponto invisível aos meus olhos.

            Compreendendo a cena, aproximei-me da cama vagarosamente. As lágrimas, antes de alegrias, mescladas com orvalhos de uma profunda emoção. E levando minha mão até seus olhos, sussurrei:

            “Agora que tua venda foi retirada, desbrava teu universo particular, e nos sussurra daí o quanto vale à pena continuar.”