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Não sou um duende...

21 de Outubro de 2016 às 21h25

Ana Cecília Novaes

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            “Não sou um duende...”

            Disse, e repousou seus grandes olhos, levemente assimétricos, corados por uma estranha mistura de verde-musgo e marrom-terra, sobre mim. Eu, particularmente, não sabia se mantinha meu olhar sobre seu nariz protuberante e evidentemente comprometido por um resfriado inconvenientemente úmido e gotejante, ou se desviava a atenção para a corcunda sinuosa que despontava por trás de um macacão surrado, mas impecavelmente limpo. Indecisa entre analisar melhor as brotoejas que acenavam de seu pequeno rosto para minha curiosidade, e compreender como braços e pernas tão disformes poderiam fazer parte daquele corpo cuja altura não ultrapassava a maçaneta da porta, permaneci de pé, na soleira da casa de titia Gertrudes, segurando minha xícara de café e encarando-o.

            - Seu café vai esfriar, minha querida... – disse aquele que não era um duende, trazendo-me de volta à tona. – E nada pior do que uma xícara de café frio, não é mesmo? Mas talvez possamos discutir isso enquanto eu conserto a tubulação da cozinha da senhora Gertrudes... O que acha?

            - Tubulação da... Sim! A cozinha! O senhor é o encanador que minha tia chamou?

            - Ednaldo Alberes Silva, ao seu dispor! – disse, evidenciando seus ralos fios de cabelo ao retirar seu gorro xadrez para realizar uma saudação. – A senhora Gertrudes disse que necessitava urgentemente de meus serviços, já que “se nada for feito, a água vai invadir até as cinzas de meu falecido Damião, que descanse em paz!” – disse, imitando perfeitamente a fala dramática de minha doce titia.

            - O caso não é tão sério assim, como o senhor pode imaginar, mas entre... Vamos até lá para eu lhe mostrar o problema. – disse, abrindo a porta e permitindo que ele entrasse. Bamboleando pela evidente diferença de tamanho entre suas pernas, o homem seguiu até a cozinha, levando consigo sua caixa de materiais. Já sabendo o caminho, ele abriu o armário que escondia o cano de água e começou a averiguar.

            Recostei-me na bancada, ainda absorta pela figura peculiar que estava à minha frente, e perguntei:

            - O senhor já trabalha para titia há muito tempo?

            - Ah, sim! – respondeu com a voz abafada, já que neste momento ele já se encontrava dentro do armário (sim, ele coube dentro do armário!), verificando a tubulação. - Desde a época do senhor Damião, que Deus o tenha! Um homem extraordinário, devo dizer! Gostava de café tanto quanto você, mas usualmente o tomava quente...

            Olhei para minha xícara e beberiquei um pouco do líquido. Percebi, realmente, que já estava frio, e deixei-o de lado. Com a visão de suas perninhas agora despontando de dentro do armário, ouvi-o dizer:

            - Sempre que eu terminava meus serviços, o senhor Damião servia uma xícara de café com três gotas de baunilha e uma camada sutil...

            - ... mas não fina, de marshmallow derretido! Nossa, essa receita de titio era divina! Eu me lembro de quando vinha passar as férias na casa deles, e ele me acordava à meia noite para fazer essa bebida para mim, já que titia Gertrudes não gostava que eu tomasse café... – Sorri pela lembrança, e suspirei. – Ia fazer essa receita hoje, mas não tive coragem para ir ao mercado...

            - Você sabe que o mercado fica no final dessa rua, não é, minha querida? – disse o homem, que agora já se encontrava de pé, secando o suor do rosto com um paninho que retirara do bolso do macacão.

            - Sim, eu sei... Mas não tive ânimo de sair... Sabe como é... – disse, deixando meu olhar repousar sobre a elevação das costas dele.

            - Na verdade, não sei, minha jovem... Mas imagino que deve ser menos interessante que bombeiros pequenos e corcundas, que atraem mais atenção que uma xícara fria de café.

            Abaixei os olhos, evidentemente constrangida por não ter disfarçado minha inconveniente curiosidade.

            - Não se preocupe, minha querida... – disse, sorrindo honestamente. – Estou acostumado com os olhares, e mesmo cochichos já não me atingem mais a alma... E já não era tempo, para alguém que nasceu como eu, e sempre atraiu a atenção de todos. Engraçado que, quando criança, achava que ser escolhido para fazer o papel de monstro nas brincadeiras era motivo de orgulho. Com o tempo, no entanto, fui aprendendo a ler o tom de deboche, medo, aversão e palhoça. Escutava a voz do ridículo, quando meus passos não conseguiam acompanhar os de mais ninguém. Sentia os dedos da crítica quando não alcançava alturas desejáveis, ou mesmo os padrões exigidos por uma beleza ilusória. Passei a me esconder, recusava a sair de casa, e passei anos a fio tentando negar a mim mesmo, acreditando que talvez, se eu fechasse bem os olhos, o mundo passasse a não existir. Ou, se eu tivesse sorte o suficiente, eu passasse a não existir para o mundo.

            Pausando para respirar, olhou através da janela e, em seguida, através dos meus olhos. E continuou:

            - Eu me sentia tão vazio, como se um buraco negro se abrisse dentro do meu estômago e sugasse toda a minha energia. Não fazia mais questão de chorar, já que as lágrimas tinham se cristalizado na minha garganta, abafando a minha capacidade de gritar ou mesmo de respirar. Eu só queria poder acordar um dia sem ter que sentir o fardo de ser eu.

            “Eu estava à beira da loucura quando, um dia, bateram à minha porta. Eu ignorei, mas insistiram tanto que eu fui obrigado a ir exigir que me deixassem em paz. Quando abri, me deparei com uma criança da minha altura, vestida com uniforme dos escoteiros, os olhos brilhando e um sorriso de orelha a orelha, com uma caixa de biscoitos para vender nas mãos. Ao me ver, ela fechou o sorriso e inclinou a cabeça para me ver de perto. Depois de um tempo, abriu novamente o sorriso e afirmou, com segurança ‘você é o duende mais bonito que eu já vi!’. Absolutamente paralisado, pois esse fora o mais próximo de um elogio que eu já recebera, falei: ‘Eu não sou um duende’. E ela disse: ‘Mas é claro que é! Só um duende pode ter os olhos tão bonitos como o seu! Mamãe diz que vocês ficam por aí, escondidos, porque o mundo não tem os tesouros suficientes para dar de presente a vocês... Mas se encontramos um... Ahá! É sorte para toda a vida! Você é meu duende da sorte! Pode ficar com os biscoitos’. E falando isso, me abraçou e, deixando a caixa comigo, foi embora. Foi esse o primeiro abraço que recebi na vida.”

            Ele interrompeu a fala para secar uma lágrima que escorria de seus olhos, e continuou:

            - Desse dia em diante, eu agarrei a oportunidade que a vida me deu. Reconheci que minhas pernas pequenas não me permitiam correr na velocidade que a ansiedade humana exige, mas me garantem o caminhar sereno, e a certeza de chegar. Percebi que minha altura não me permitia enxergar atrás dos muros, mas meus sonhos passaram a ser altos o suficiente para que eu pudesse contorna-los. Minha face não é a mais bela de todas, mas a beleza que vejo no mundo que me cerca compõe um quadro muito mais grandioso que a minha pequenez humana. E percebi que eu sou o único capaz de decidir o desfecho da minha própria história. Os outros podem apontar, cochichar, debochar, ou mesmo se afastar... Mas não é deles a responsabilidade de viver e ser o melhor que eu posso ser. Essa tarefa é minha, e só minha. E não são eles que determinam a minha felicidade. Essa sou eu quem alcanço, no final do meu próprio arco-íris particular, porque eu não sou um duende, mas sou, definitiva e orgulhosamente, eu.

            Completamente surpresa e atordoada com o que tinha acabado de ouvir, não consegui emitir som algum. Ele, então, pegando seu material, falou sorrindo:

            - O conserto será rápido, mas preciso comprar uma peça que se desgastou devido à ferrugem. Por gentileza, diga à sua tia que voltarei amanhã para terminar o serviço. Tenha uma boa tarde, minha querida!

            E saiu.

            Creio que permaneci onde estava por um bom tempo, pois somente quando titia chegou de seu habitual jogo de cartas no clube de senhoras, eu me dei conta que ainda estava em pé, na cozinha.

            Nunca mais voltei a ver Ednaldo, pois segui viagem no dia seguinte, pela manhã. Quero pensar, no entanto, que ele aceitou minhas sinceras desculpas por não ver a grandiosidade do homem que tive o prazer de conhecer. Espero que tenha apreciado a xícara de café com três gotas de baunilha e uma camada sutil, mas não fina, de marshmallow derretido que deixei para ele na bancada, junto com o recado:

            “Quero acreditar que além do horizonte, não muito longe daqui, existe um lugar onde gigantes como tu são aplaudidos de pé pela nobreza singular de uma alma que revela a beleza mais íntima do ser humano”.